Cinema: Uma Amazônia luxuriante

O barqueiro. A esposa. E dois irmãos. Baseado num conto de Milton Hatoum, O rio do desejo é um filme sobre amores. Assim como o tempo, as águas correm inexoráveis e, com a selva quente, úmida e lúbrica, arrasta personagens e suas tragédias

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Chegam aos cinemas dois longas-metragens belos e fortes ambientados na Amazônia. Nesta quinta-feira entra em cartaz O rio do desejo, de Sérgio Machado, rodado no Amazonas. Na próxima semana é a vez de Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho, filmado no Acre.

Comentei Noites alienígenas em outubro passado, quando exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Vamos, então, ao Rio do desejo.

Batizado anteriormente de Cidade ilhada, o filme se baseia no conto “O adeus do comandante”, do escritor amazonense Milton Hatoum, que criou narrativas suplementares inéditas para desenvolver melhor alguns personagens e adensar a breve história original. Foi sua contribuição ao roteiro, que contou ainda com a participação de Maria Camargo e George Walker Torres, além do próprio diretor, Sérgio Machado.

Tantas mãos escrevendo poderiam ter gerado uma mal costurada colcha de retalhos, mas não: a narrativa é tensa e enxuta, sem nenhuma cena dispersiva ou supérflua.

O início é veloz. Numa cidade à beira do Amazonas (Itacoatiara, pouco a leste de Manaus), dois episódios de violência contra a mulher empurram o policial Dalberto (Daniel de Oliveira) para uma decisão crucial: largar a corporação e comprar um barco de passageiros. Ao mesmo tempo, ele conhece e se apaixona por Anaíra (Sophie Charlotte), com quem decide se casar.

Tragédia instalada

Anaíra vai morar na casa que Dalberto divide com o irmão mais velho, o fotógrafo Dalmo (Rômulo Braga), e o mais novo, Armando (Gabriel Leone), “empresário” de uma banda brega pop da região. Estão instaladas as bases da tragédia.

Depois do começo acelerado, o filme entra num ritmo fluvial, de tensão crescente, que remete a seu próprio título. Enquanto o grande rio flui de modo contínuo e inexorável como o tempo, no mundo interior dos personagens e das suas inter-relações – o mundo do desejo, em suma – as coisas se passam de modo muito mais acidentado e turbulento.

O motivo do amor por uma mulher dividindo irmãos, de ressonância bíblica e mitológica, é recorrente na literatura e no cinema. Guarda semelhanças com o drama do primeiro longa de Sérgio Machado, Cidade baixa, embora ali não se tratasse de irmãos de sangue, mas de amigos íntimos.

Borges desenvolveu esse argumento num conto célebre, “A intrusa”, levado ao cinema em 1979 pelo argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen. Mas, se o relato de Borges é lacônico e seco, marcado pela imensidão silenciosa dos pampas, aqui a atmosfera é quente, úmida e luxuriante como a selva equatorial.

Um argumento suplementar, que corre em paralelo ao drama afetivo, é a aventura em que Dalberto se lança ao ceder às pressões para transportar em seu barco cargas ilícitas para outros países. A situação do barqueiro honesto levado ao crime pelas circunstâncias lembra o enredo de To have and have not, romance que o autor, Ernest Hemingway, considerava “infilmável” e que no entanto teve três versões cinematográficas.

Pequenas epifanias

A paisagem amazônica, exuberante e excessiva, ameaça em alguns momentos se sobrepor ao drama dos personagens, e a bela fotografia de Adrian Tejido fica a um passo do pitoresco. Mas há pequenas epifanias, como nas duas passagens análogas em que uma enorme revoada desenha no céu uma dança imprevisível, ou nas cenas sob a luz avermelhada da câmara escura de Dalmo.

Barcos de todos os tamanhos, de canoas a transatlânticos, singram o grande rio, estabelecendo o ritmo caudaloso e implacável da tragédia, pontuado aqui e ali por cenas breves e literalmente cortantes, como as de facões de cozinha sendo afiados na pedra, peixes sendo retalhados, uma vaca içada por correias para um barco de carga. Bruscos planos de ligação que intensificam a carga dramática, falando mais sobre o mundo interior dos personagens do que contribuindo para a trama propriamente dita.

A essência da tragédia, como se sabe, é o fato de todos terem razão, ou pelo menos suas razões, e serem arrastados por uma força que não dominam: os deuses, o destino, o acaso ou… o desejo, como é o caso aqui. Sérgio Machado e sua equipe conseguem criar um mundo muito concreto, sensorial, em que essa força invisível está presente o tempo todo.

Formas do amor

Contribui para a consistência do resultado o ótimo trabalho de todo o elenco. À turbulência erótico-afetiva dos personagens principais contrapõem-se duas âncoras quase silenciosas, dois portos mais ou menos seguros na tormenta: do lado dos irmãos, a velha empregada Dona Dalva (Petta Catão), que “cuidou dos meninos” desde pequenos; do lado de Anaíra, sua mãe amorosa e altruísta (Gilda Nomacce, excelente como sempre). E há a figura ausente, mas quase palpável, da mãe dos três irmãos, que há anos abandonou a família para viver seu próprio desejo.

Tudo somado, Rio do desejo é um filme de amor sob todas as suas formas – amor erótico, platônico, fraterno, maternal, filial (com evidentes laivos edipianos) – e os desastres que frequentemente surgem do entrechoque entre elas. Não é pouca coisa.

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