Semântica: a espantosa presunção dos “na verdade”

Usada de forma irresponsável, expressão evoca percepção de veracidade, mas revela insegurança e vácuo de ideias. Antecede platitudes, usadas para interditar discussões, até as mais insossas. Urge uma campanha nacional contra este tosco tampão

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Certas locuções adverbiais me dão preguiça. Não estou falando daquelas indefinidas como “de vez em quando” (isto é “quase sempre” ou “raramente”?) ou “de modo algum” (que, vai entender, quer dizer o mesmo que “de modo nenhum”). Estas me deixam meio confuso, mas é só isto. Preguiça mesmo eu tenho de uma locução adverbial específica: “na verdade”. Ela tem sido mal frequentada, usada de modo irresponsável, prostituída para fins escusos, e isso tem concorrido para manchar sua reputação, talvez de modo irreversível.

Ela pertence a uma família bastante tradicional, a das “locuções adverbiais de afirmação”, que têm um longo histórico de serviço às discussões e arengas, cumprindo a função de encadear pontos dissertativos, desmentir hipóteses e propiciar arremates de argumentação. Ultimamente, no entanto, ela tem sido usada por sabichões presunçosos que, se parece com ela quererem encaminhar as considerações finais, estão antes tratorando os argumentos anteriores e nivelando tudo por baixo.

Examinemos com mais cuidado sua parentela.

Um dos irmãos de “na verdade” é o “de fato”, que difere dela porque estabelece sua afirmação através da invocação da factualidade das coisas sendo ditas, isto é, fia-se na concretude objetiva dos fatos, atitude muito sensata. Outros irmãos de “na verdade”, esses gêmeos, são o “por certo” e o “com certeza”. Aquele embasa sua afirmação no efeito retórico de um par opositor, o “certo-errado”, que tem alguma ressonância moral, mas que avisa a que veio. Este invoca a “certeza”, cujo uso costuma ser muito pessoal, afirmado em primeira pessoa, e que por isso não passa por desonesto porque tem o valor do testemunho – não nos passa nenhuma rasteira retórica.

A mãe de “na verdade” é a locução adverbial “sem dúvida”, categórica mas muito elegante. Pense bem, se ela menciona a ausência de dúvida para constituir seu efeito de afirmação, é porque já considerou a dúvida como parte do processo de pensamento – ora, é isto o que se espera de quem constrói um argumento, certo? Por fim, temos o pai de “na verdade”: “com efeito”. Trata-se de um senhor respeitável e venerando, quase fidalgo, que com uma combinação ímpar de firmeza e sutileza consegue ter a mesma eficiência de um “efetivamente”, mas com a fluidez de uma expressão.

Na família de “na verdade” há também um tio-avô, o “na realidade”. Era um sujeito brilhante, inteligentíssimo, até que começou a enveredar pelo caminho filosófico do subjetivismo e do relativismo. Diz-se que ficava dias trancado em casa, parou de tomar banho e não comia direito, e volta e meia saía falando que não sabia mais se as coisas de fato existiam. Perturbado, virou ermitão, foi viver numa caverna e só aparece eventualmente. Hoje são poucos os que ousam empregá-lo. Mas, também, pudera: a fronteira pós-moderna entre o real e o falso foi tão borrada que a loucura solipsista do tio-avô quase faz sentido.

Pensando bem, há semelhança entre as decadências de “na realidade” e “na verdade”. Ambos foram pegos de surpresa por um assalto a nossa capacidade de percepção do real. Se bem que tragédia mesmo foi a do tio-avô, a situação de “na verdade” é farsa.

O uso mal-ajambrado de “na verdade” a que me refiro é aquele que muitos já devem ter tido o desprazer de presenciar em discussões informais, em almoços de domingo, ou naqueles grupelhos e WhatsApp. Vou tentar recriar esquematicamente uma delas:

Debatedor #1: O céu é azul. Basta olhar para cima agora e você vai ver que é.

Debatedor #2: Sim, mas espere chegar seis horas da tarde pra tu ver, é laranja.

Debatedor #3: Você fala isto porque hoje tem sol. Em dia de chuva é cinza.

Debatedor #4: Na verdade, isso é tudo questão de quem olha.

Alguns dirão que exagero. Quisera eu! Excetuando o tópico discutido, que simplifiquei para fins didáticos, a mecânica da coisa é mais ou menos esta. As pessoas envolvidas na conversa apresentam suas observações, algumas mais interessantes, outras mais lugar-comum, e aí alguém, que estava à espreita, usa o “na verdade” e atravessa a coisa toda. É o coito interrompido da discussão.

Quando o debate começa a escalar e já se estabeleceram pontos de vista distintos, que podem ajudar a se iluminar mutuamente pela dialética da conversa, vem esse agente anticlimático e reduz tudo a uma platitude medíocre e sem sal, na qual nenhuma das partes se identifica exatamente. O babaca do “na verdade” enfia esse tampão tosco e o resultado é quase sempre um dos seguintes: ou as pessoas desistem da arenga por preguiça de tirar o tampão, ou então a coisa escala na belicosidade para tirar o tampão na base da força. Ou seja, dois caminhos ruins.

Se dá preguiça com uma discussão insossa como aquela sobre a cor do céu, imagina com um assunto de maior complexidade, como política, filosofia, moral, arte, costumes, história. Imagine você estar discutindo (informalmente, bem entendido) as ações de combate ao coronavírus e alguém chega e tasca um “Na verdade, isso é tudo pro governo poder roubar.” Ou suponha um debate orbitando ao redor de alguma manchete policial sangrenta: esgotados os detalhes objetivos, entra-se no domínio dos motivos do crime, das inclinações psicológicas do criminoso, do significado filosófico do ato, e aí algum imbecil manda: “Na verdade, o ser humano sempre foi assim.”

Existem vários desses tampões: “a culpa é do governo”, “o ser humano sempre quer se dar bem”, “a culpa é do PT”, “isso é tudo uma mentiraiada”, “essa é a natureza humana”, “isso é uma conspiração”, “não tem o que fazer”, “sempre foi desse jeito, não vai mudar nunca” etc. O “na verdade” costuma preceder todos eles.

Por isso lanço uma campanha: vamos constranger o babaca do “na verdade” elucidando o peso da evocação do conceito de verdade. O cerne do “argumento” desse sujeito é a atitude, porque é debaixo dela que se esconde a insegurança ou o vácuo de ideias. Quando esse sujeito fala, ele dá uma pausa depois do “na verdade”, para efeito retórico, e é ali que precisamos agir. Diga coisas como: “Tem certeza que você quer começar a frase com todo o peso de ‘na verdade’?”; “Olha que o que você disser em seguida tem que ser muito bom, tem que ser uma síntese dos argumentos anteriores se quiser se arrogar a condição de ‘verdade’”, ou “Veja bem, é muita responsabilidade evocar a verdade, é pressão pra caramba.” Das duas uma: ou ele se constrange e retira o “na verdade” (e aí a discussão pode seguir depois dele) ou então a “verdade” que ele faz questão de enunciar já nasce em xeque (se for tão boa quanto ele diz, aplauda e congratule; se não, a discussão pode seguir, porque o “na verdade” deixou de ser um tampão).

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4 comentários para "Semântica: a espantosa presunção dos “na verdade”"

  1. Camila disse:

    Que texto insuportável! Aposto que a pessoa que diz ou escreve “na verdade” é menos presunçosa que o autor desse texto.

  2. Lucas disse:

    Pode ficar tranquilo , gênio, ninguém vai incomodar sua inteligência dessa forma depois desse belo texto. Convenceu a todos os babacas do “na verdade”. Só ocupe um espaço como esse que possui com algo mais relevante das próximas vezes.

  3. Otávio disse:

    Sabe o que pior , um fenômeno cultural dominante neste tempo , a utilização de títulos acadêmicos ,conquistado a duras penas com uma rotina de bajulações e repetições , ou pior, a apropriação intelectual do pensamento de homens já falecidos, vomitando-o a todo tempo qual se fosse sua propriedade, para se impor como senhor da verdade numa discussão e convencer indivíduos sem um minimo senso critico. O mundo como está, o pais com o está , e isto é motivo de preocupação? Deprimente.Seria melhor os intelectuais descerem um pouco do pedestal e desconfiarem que, mesmo com seus títulos, não são a senhores da verdade e transmitem um monte de asneiras muitas vezes .Resolvam os problemas do mundo já que são tão inteligentes , e possuem tantos títulos.

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