Cinema: Um estranho (e reflexivo) terror juvenil

Sem seu sangue, de Alice Furtado, de forma onírica e vagarosa, foge aos clichês do suspense. No centro, o amor de Silvia por um jovem rebelde e hemofílico — e seu retiro nas Antilhas, permeado por vodu, sacrifícios e mortos ressuscitados

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Cinema, enfim. Aos poucos, de modo hesitante e cuidadoso, as salas de exibição começam a ser reabertas país afora, para que o público retome o velho ritual profano da contemplação de sombras móveis sobre uma grande tela numa sala escura. Entre os títulos que entram em cartaz esta semana há um que merece atenção especial: Sem seu sangue, da estreante em longas Alice Furtado.

Exibido no ano passado na Quinzena dos Realizadores de Cannes, na Mostra Internacional de São Paulo e no Festival do Rio, o filme desconcertou crítica e público como um objeto estranho, difícil de ser classificado. Dizer que se trata de um terror juvenil seria trair ao mesmo tempo seu espírito e sua matéria. Vejamos por quê.

De início, narra-se ali a história de um amor adolescente, entre Silvia (Luiza Kosovski, extraordinária) e Artur (Juan Paiva), colegas de classe num colégio de classe média carioca. Ela branca, ele negro. Mas isso não é obstáculo, de nenhum dos dois lados. Só que Artur, logo ficamos sabendo, é hemofílico. Como diz a própria Silvia, num comentário em off, isso tampouco é um problema: basta ele tomar as injeções, os remédios – e não se machucar.

Versos de morte

Como não se machucar, porém, sendo jovem, inquieto e pleno de energia? O mundo tem muitas quinas, arestas e farpas. Artur joga futebol, pratica manobras radicais no skate, anda de moto sem capacete. Parece viver no limite – e sabe de cor poemas de Manuel Bandeira que versam sobre a morte.

A despeito dos celulares, das redes sociais e de todas as referências contemporâneas, há algo de romântico (no sentido do romantismo do século 19) nessa relação. Um eco dos amores infelizes atravessados pela tuberculose, pela sífilis ou pelo suicídio.

A diretora constrói com cenas enxutas e elipses precisas a sensação de vulnerabilidade, de perigo, de terreno movediço por onde trafegam os personagens. Uma insólita versão eletrônica de “Clair de lune”, de Debussy, sublinha o que há de etéreo nesse amor, no entanto figurado por corpos muito concretos. O carnal e o espiritual em equilíbrio precário.

Pois bem. Acontece o inevitável, e o filme entra num segundo estágio, o da catatonia ou letargia de Silvia. A despeito da dedicação dos pais (Silvia Buarque e Lourenço Mutarelli), a garota adoece, fica passiva, parece sempre alheia, sonhadora.

É nessa espécie de transe permanente, de alteração da consciência, que entramos na terceira parte do filme, ambientada numa ilha pouco habitada para onde os pais levam Silvia, na esperança de uma plena convalescença. E é aí, nessa ilha, que entra em cena o que há de horror no filme. Evocações da cultura vodu das Antilhas, sacrifícios de animais (e de pessoas), ressuscitação dos mortos.

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