O Slam e a explosão da poesia feminista
Em duas autoras representativas do “movimento de poesia falada”, amores, identidade negra e aguerrida crítica ao machismo. Uma contundente forma de arte urbana, que conecta retórica à vida — e espanca e estanca os dramas da periferia
Publicado 12/09/2020 às 11:21 - Atualizado 12/09/2020 às 11:30
Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes
Compartilho neste artigo, a leitura de livros de duas poetas de Slam. Negra Nua Crua (2016), de Mel Duarte e Vício (2017) de Mariana Félix. Mel é do Slam das Minas que não é de um território definido, mas tem feito seus encontros na Casa das Rosas, na Avenida Paulista. Mariana participa de vários Slams, especialmente os da periferia da Zona Leste, sua região de origem. As duas tiveram uma experiência editorial anterior e seguiram publicando posteriormente. Ambas produzem vídeos que são veiculados na Internet nos quais seus poemas são valorizados pela performance da declamação, elemento que é fundamental para apreciar uma poesia feita para ser lida em voz alta.
Os poemas de Mel Duarte e Mariana Felix, assim como de várias outras autoras da mesma geração surgida nos Slams, se pautam pela luta feminista, afirmação racial e de gênero abordadas com alto teor crítico e ironia. São traços que, no calor das disputas nos torneios de poesia falada, costumam levantar a plateia. Essa contundência, quando transposta para o papel, as vezes se dilui, o que faz os poemas perderem força. Não é o caso, porém, dessas duas poetas, tanto quando falam de amor quanto de guerra. E é marcante a capacidade delas de equilibrar as duas temáticas e demonstrar amor no front e de contestar o machismo nas relações amorosas que elas mesmas viveram. Sendo ambas mulheres cisgênero e de orientação sexual hétero, abordam como a mesma desenvoltura a sedução a (ou de) um homem sensível e combatem um macho hostil e misógino. Demonstram assim um feminismo aguerrido e amoroso sem que haja uma dicotomia entre as duas dimensões.
Mel Duarte
Negra Nua Crua foi publicado pela Editora Ijamaa, de São Paulo. Tem 75 páginas, formato 12 cm x 20 cm. A capa, assinada por Muriel Xavier, traz uma imagem da autora na qual seus cabelos em dread formam uma raiz dessas ramificadas e profundas, denotando a ênfase que a autora dá para sua ancestralidade e a importância do cabelo na afirmação da identidade negra. Uma das orelhas do livro é picotada para ser destacada como marcador de página e nela está impresso um pequeno poema. Na outra orelha tem uma foto da autora com turbante e sua minibiografia. A cantora Tassia Reis faz o texto de apresentação que tem um dos trechos republicados na contracapa. A obra é dedicada à Selma, mãe e guia espiritual da autora. Seu pai, o grafiteiro Ozi (Ozeas Duarte) também é homenageado, mas com o poema (Du)arte. Negra Nua Crua foi publicado recentemente na Espanha.
O ano da publicação de Negra Nua Crua foi muito especial na vida de Mel Duarte, na época com 27 anos. Ela ganhou uma súbita visibilidade por conta de sua participação na FLIP daquele ano. O evento literário de Paraty teve um Slam na programação e Mel arrasou na sua performance. A partir daí foram inúmeros convites e oportunidades que a levou a se dedicar exclusivamente à sua carreira como poeta e slamer. Antes do livro que analiso neste artigo, ela publicou Fragmentos Dispersos (Na Função) editado em 2013. Depois veio a antologia Querem nos Calar – poemas para serem lidos em voz alta, organizada por ela e publicada em 2019 pela Editora Planeta. Mais recentemente gravou o CD Mormaço e outas formas de calor no qual declama seus poemas com fundo musical. Sua trajetória e trabalhos produzidos, assim como entrevistas e outros conteúdos, podem ser encontrados em seu site: www.melduarte.com.br
Mariana Félix
Vício é o segundo volume da trilogia com a qual Mariana Felix estreou em livro. Publicado de forma independente, Vício foi precedido por Mania (2015, Conecta Brasil) e sucedido por Abstinência (2019, Independente). O livro tem formato 14 cm x 21 cm e 135 páginas. A capa é de Juliana Gomes e tem uma ilustração do título sobre uma foto de Mariana em marca d’água. O nome da autora se integra ao título, acentuando o aspecto pessoal da obra. Uma das orelhas do livro contém um verso que diz muito sobre a poesia nele contida: “Amor de esmola só atrasa a despedida”. Na outra orelha há uma foto da autora em preto e branco acompanhada de sua minibiografia. Na contracapa estão relacionados inúmeros slams, saraus, movimentos culturais, artistas e espetáculos apresentados como seus “vícios”. Assim como Mel, ela dedica o livro a sua mãe e o prefácio é assinado pela própria autora.
Mariana, assim como a Mel, deu uma guinada nos últimos anos e se destacou em vários slams, embora não tenha conquistado títulos individuais de grande envergadura. Participou de inúmeras coletâneas e publicou fanzines. É muito famosa nas redes sociais e mantém um site, www.marianafelix.com.br, dedicado apenas a produtos relacionados a sua marca como roupas, acessórios, canecas e seus livros. Mariana é uma das 15 poetas brasileiras escolhidas por mel Duarte para integrar a antologia Querem nos calar, anteriormente citada.
Negra nua crua
Os 37 poemas do livro de Mel Duarte estão divididos em três partes, compartimentando, assim, o que no título está unificado. Negra é a primeira parte; depois vem Nua e, por fim, Crua. E de fato, cada capítulo carrega uma abordagem distinta. No primeiro, os poemas, como sugere o título, são dedicados à exaltação da negritude com ênfase na sua experiência pessoal de afirmação. A adesão ao dread nos cabelos quando tinha 18 anos é uma espécie de mito fundador de uma nova fase da sua vida. Já na segunda parte estão os poemas mais íntimos nos quais a sexualidade transborda em versos de alto teor sensual e erótico. Em alguns chega a ser bem explícita, mas sem nunca perder a leveza. Nessa temática a autora tem um esmero especial e constrói poemas de elevada inspiração.
Por fim, em Crua predomina as reflexões pessoais. Alguns poemas têm requintes filosóficos, os quais classifiquei como aforismos. Nessa parte também a autora aborda questões sociais para além da pauta negra, mas que lhe são caras: o flagelo e a luta dos povos indígenas; os meninos que cumprem medida socioeducativa trancafiados na Fundação Casa e o feminicídio. Chama atenção o fato de a questão da negritude não aparecer com centralidade nos poemas nos quais faz reflexões sobre sua existência e seu lugar no mundo.
Mel concebeu seu livro como um antigo LP no qual a primeira faixa dá título à obra. Negra nua crua abre o livro e apresenta as diretrizes da poesia da autora: “Eu não preciso tirar a roupa pra mostrar que sou atraente/ Minha postura e ideia é que fazem atrair tanta gente”. É verdade, mas não há como não levar em consideração a beleza da Mel Duarte, aspecto pessoal com o qual ela sabe lidar com maturidade, fazendo dele um elemento que complementa sua performance como poeta slamer e não o que define sua obra. Mas outros componentes de suas criações aparecem no poema. Um é o protesto contra o racismo: “não me distraio com comentários hipócritas só porque não uso pente”. Outro é a associação do ofício da escrita ao trabalho que põe comida na mesa. Por fim, na estrofe final volta ao corpo, elemento fundamental: “minhas curvas mais bonitas desfilam através de devaneios” e no ato seguinte muda o tom: “e minha fala hoje é bruta para fincar dentro do peito”. No verso derradeiro, a síntese: “Mel: negra, nua, crua de sentimento”.
O que predomina entre os 10 poemas do primeiro capítulo são composições de protesto feminista negro. Além do poema que dá título ao livro, há outros cinco com essa temática. Menina Melanina é uma ode à mulher negra. Fala de si em terceira pessoa. O cabelo aparece com o devido destaque como fio condutor do discurso de afirmação bem posicionado. Versos em palavra de ordem: “Mulher bonita é a que vai à luta!”. Termina mudando o pronome para a primeira pessoa: “me aceitei quando endredei”. Termina em terceira pessoa, falando para si mesma: “Preta, pretinha/ Não ligue pro que dizem essas pessoas/ E só abaixe a tua cabeça/ quando for pra colocar a coroa”. Não desiste segue o mantra da afirmação da mulher negra ressaltando aqui aspectos religiosos da tradição afro em tom ecumênico: “espírita, budista, do candomblé”. Anuncia o poema como antessala da luta armada: “(…) e que se preciso for levanta arma/ mas antes/ luta com poema”. Saúda a África, o colo de onde todas vieram, revelando que é na ancestralidade que encontra força para nunca desistir.
Ampulheta segue na temática da luta da mulher negra, agora tendo como narrativa a correria de uma jovem negra, que trabalha em dois empregos e que por isso não deu sequência nos estudos. Aos 15 se tornou mãe de uma “criança sem pai, sem moradia/ mais uma pretinha da quebrada sem perspectiva”. Poema estruturado em estrofes, tendo um refrão: “o tempo passa/ o tempo passa”, repetido três vezes, mudando os versos seguintes e indicando uma evolução na tomada de consciência: “Eles dizem que o racismo já acabou e você abraça?”/“Cansei desse silêncio, resolvi tirar a mordaça”/“Conheça a sua história, tenha orgulho da sua raça”
Sobre empoderar é um poema com uma estrutura bem adequada à declamação em Slam. Um protesto acintoso contra o feminicídio contextualizado no período de manifestações que defendiam a intervenção militar, típica da época em que foi publicado o livro, mas que persistem. O capítulo termina com É treta preta, mais um libelo feminista de combate ao macho tarado e o fardado. “É preciso retomar ensinamento dos antigos/ Aplicar o matriarcado e praticar o respeito mútuo/ Para que a pequena parte que impera/ orgulhosa por nascer com um pau entre as pernas/lembre que também saiu de um útero”.
A segunda parte do livro é libido em flor. Abre com Brincadeira que discorre sobre os encantos da menina que se transforma em mulher: “não é mar, mas seu corpo sereia”. Essa metáfora da sereia é recorrente. Apareceu num poema não citado na primeira parte chamado Negra Sereia e voltará a ser utilizada em outras composições deste capítulo, sugerindo um elemento alegórico importante que merecia uma análise mais aprofundada. Lua cheia é um devaneio sob a luz do astro noturno, sedenta pelo amor ausente, cuja lembrança é coberta de excitação e de paixão emocionada: “Lindo são teus lábios/ que me tocam sem pudor, sem receio/tua saliva que me queima/teu gosto que não cabe em mim/se teu beijo é o que me sobra/quero viver infinito em tua boca”. Filhos do caos é o título do poema seguinte e trai o leitor, pois sugere um tema social, mas narra o encontro de dois jovens que se completam e nutrem mutuamente um amor ardente
Delitossegue a mesma linha e narra a ansiedade de um amor apaixonado. Um dos pouquíssimos textos da autora no qual o gênero da pessoa amada não está definido como homem. O poema está no CD que a autora lançou em agosto com uma instrumentação e uma declamação tão sensualizada que é capaz de fazer o ouvinte levitar. Feiticeiro narra o ato sexual de manhã, depois de uma noite de amor. Em Seria fácil, Mel discorre ansiosa sobre um amor que se foi. Neste e em outros poemas, a autora faz uso de um recurso de composição no qual ela acrescenta versos, as vezes organizados em pequenas estrofes, mas que ficam separados do poema como se fosse um apêndice. Neste caso, especificamente, foi para a página seguinte e começam sempre em caixa alta e em negrito: “DAS COISAS que o calor nos provoca”.
Navegador expressa o desejo por um homem. Nesse poema, Mel faz uso de metáforas associadas ao mar, outra recorrência na obra. Trata-se de um amor idealizado; a poeta exalta o amado que parece distante. Novamente a imagem da sereia aparece: “na areia deixei minhas escritas/onde efêmeras ondas apagaram ao abraçar/ ser ou não ser maresia?/serei-a/ sereia”. Fugaz aborda a dor da separação unilateral: “NUM abraço de despedida/ ficou um pouco de você comigo/roupas guardam lembranças/seu perfume absorvido/ entre meus tecidos”. Em Precioso, ela discorre sobre a beleza de um homem: “criei um muso”. Já em Hoje eu … faz uma exaltação a um homem negro lindo a quem dedica versos que ponderam sobre uma possível vida a dois: “mas veja bem, não é querer pra si, nem querer pra sempre…”.
O amor e sexo hétero da autora explodem no poema Intensidade no qual retrata a ansiedade e a fúria de um encontro tórrido de amor entre um homem e uma mulher que não se conheciam, ou que ainda não haviam se entregue uma ao outro. Nos apêndices, expressa a fase posterior ao encontro: o enlace. O capítulo termina com o poema Da vez em que desfaleci que é mais um texto de paixão rasgada e sexo “entre tantras e taras”/ É zica de pica/ que invade/ que fica”. Desfaleci, porém, não parece um título apropriado, pois em nenhum momento seu ser ou seu corpo parece ter despertado de uma letargia fúnebre ou uma inércia passiva.
A
parte final do livro é a menos amarrada e isso é um sinal de
coerência, pois a autora faz uso da palavra crua como substantivo e
não adjetivo. É “crua de sentimento” como diz no verso final do
poema que abre o livro. Entendo que a expressão está associada a um
estado bruto, portanto, não lapidado, não polido, rústico, sendo
assim, desajustado. O que mais há entre os poemas deste capítulo
são reflexões de inspiração existencial, como já mencionei, mas
guarda também versos combativos sobre causas sociais urgentes, a
principal delas, a violência contra a mulher. Embora o tema esteja
presente com ênfase em apenas um dos textos ele se destaca no
capítulo, pois se trata de Verdade
seja dita,
um dos poemas mais conhecidos da autora, cuja declamação no Slam da
Resistência na Praça Roosevelt, numa noite de 2016, também
contribuiu para alçar a autora ao estrelato com centenas de milhares
de visualizações na Internet. Trata-se de um protesto retumbante
contra o estupro que é associado, já naquela época, ao então
deputado federal que hoje ocupa a cadeira de presidente da
república.
As reflexões pessoais começa com Livrai-me,
um poema em forma de prece no qual pede ao “Pai” que lhe dê
lucidez para não ceder ao impulso de ir em
busca do que não “sustenta”. Buraco
no peito
traz no título a metáfora para expressar um vazio interior que pede
para ser preenchido. Mas o buraco parece ser imenso, o qual somente
uma montanha poderia tapá-lo. Outono
é um poema de versos leves a ponto de serem levados pelo vento e
parece embalar a poeta em tardes e dias cinzentos. No apêndice:
“DEIXE a janela aberta/ o coração em alerta…” Sobre
os ponteiros que não param,
é um texto insone, um aforismo em forma de poema no qual ela
filosofa
sobre o tempo cronológico, a ampulheta implacável: “MADRUGADA
aflita/ me ponho em sono”.
Sobre desfazer e depois voltarfala da arte de juntar os cacos, estilhaços, pedaços retalhos com os quais expressa seu processo de resiliência. Na sequência vem Reforma íntima, uma reflexão espiritual profunda em forma de prece com referências ao Espiritismo. O próximo poema, Das coisas que me rodeiam, é daquelas composições de dar a volta por cima, de levantar a autoestima, mas é um tanto retórico; não fecha uma ideia, um raciocínio: “Me falo cantiga pra faces perdidas mudarem/semblante inertes”. Antes de Brisas avulsas, poema que fecha o capítulo e o livro, tem o poema Lado A, Lado B que faz um pêndulo com opostos de sua personalidade. Uma composição que lembra o famoso poema Traduzir-se de Ferreira Gullar – e que ficou famoso ao ser musicado por Fagner nos anos 1980. No seu poema, a autora brinca com os binarismos até concluir que os lados não têm o mesmo peso na sua personalidade: “metade de mim é amor/ e a outra metade também”.
Vício
O livro de Mariana Felix, assim como o de Mel Duarte, é declaradamente autocentrado. Publicado no ano seguinte ao Negra Nua Crua, Vício tem 55 poemas agrupados em quatro partes, sendo que na primeira Tantas Minhas está a maioria dos poemas de combate pelas causas sociais, especialmente das mulheres. Nas outras três partes são poemas basicamente de encontros e desencontros amorosos, as vezes os dois lados estão num mesmo texto. Não há relação perene no território da autora que “não é de ninguém”. Ela não suporta contratos, padrões, maternidade, faculdade, sermões.
“Bagunça” é uma das metáforas mais usadas por Mariana, as vezes Mari, às vezes, Ana. Seus amores são incógnitos, mas os desamores têm nome e sobrenome citados para não deixar dúvidas. Um poema impresso em forma de espiral ascendente se repete ao longo do livro: “mais um dos inúmeros versos que eu escrevi pra você” e dá o tom da obra que carrega uma tensão permanente entre a atração e a repulsa. Com versos certeiros de craque que é na arte do Slam, ela nos traz para seu quarto bagunçado e consegue nos cativar como se estivéssemos tomando uma cerveja com ela. Cerveja, por sinal, é um de seus vícios preferidos, embora não esteja relacionado na contracapa do livro.
Vamos ficar em duas partes: o protesto feminista e os amores desarrumados. A partir dessa divisão arbitrária, faço meus comentários de amor e guerra. Comecemos pelo combate. Em Asfalto, poema que ela publicou na coletânea Querem nos Calar (2019, Planeta), ela consegue mencionar uma série de questões e conflitos sociais como se fosse uma agenda política que vai do Impeachment (de Dilma Rousseff), chacinas que vitimaram meninos, o assassinato de Claudia, arrastada pela Polícia, o estupro da adolescente por 33 rapazes.
Mariana constrói uma narrativa poética vigorosa para pautar as tragédias: “Ficarmos juntos no escuro/ quando o apagão for anunciado/revezarmos os baldes/ quando a água tiver acabado”. E nomeia a origem de todo mal que escancara: o poder macho patriarcal: “meu sangue do corpo magro/ mesmo sangue de seu corpo gordo/ Esse meu cabelo crespo/ mesma essência do seu cabelo loiro/ É o que você tem entre as pernas/ É o que jorra de mim todo mês entre elas”. Frente à tamanha desgraça, conclui: “ Por isso eu faço cada dia valer a pena/ sou tipo bomba relógio/ em país que só pobre paga sentença”.
Oração é outro poema de protesto que aborda a conjuntura da época: impeachment aparece novamente; a primeira dama “recatada e do lar”. Críticas ao governador Geraldo Alckmin e a questão do desvio da merenda. A hipocrisia dos evangélicos e seus pastores: “Jesus Cristo viveu sem riquezas/ Então porque seu Pastor dirige um carrão?” Religiosos evangélicos seguem sendo alvo da ira da poeta em Direito, um poema narrativo que trata de um pastor estuprador e pedófilo. Em Golpe, volta mais uma vez ao tema do impeachment da presidenta Dilma Rousseff enfatizando agora o papel manipulador da mídia.
Louca segue a linha engajada e incendiária. Feminista, o poema está impresso sobre uma marca d’água com o símbolo do feminino tendo um punho cerrado no meio. Fala do 8 de março; confronta os machos; ironiza o termo “feminazi”. Nomeia a Igreja Católica como homicida. Fragmentos trata de estupro, pedofilia, do ódio das mulheres em pânico em versos contundentes e inspirados “o silencio que precede o esporro”… “Alguém me ajuda! – Mas naquela noite não tinha ninguém na rua…” Em Construa mantém a pegada feminista. Nesse texto sobra até para o Slam: “No Slam me dê 16 nomes/que mesmo assim não intimido em ser a única mulher/ batalhando com tantos homens”. Neste poema aparece com ênfase, um recurso que Mariana usa com frequência que é o intertexto, especificamente aqui Machado de Assis: Dom Casmurro; Racionais MC’s: Da ponte pra cá.
Uma poesia feliz é um poema estruturado num só bloco de versos curtos sustentado no uso da partícula “se” como conjunção subordinativa causal que aparece no primeiro verso e nos demais fica oculta, estabelecendo uma relação de causa e efeito, sendo o efeito, nem sempre, oposto: “Se é dito, disfarça/ Escrito, camufla… Punho, cerrado/ mata, Pátria…/SUS, falido/Merenda, roubada…” Associa o rio de lama de Mariana com as enchentes no Jardim Romano, como acontece no poema “Golpe”. O intertexto aqui é do Cazuza com Brasil.
De tanto usar intertextos, Mariana fez Música, um poema todo estruturado em citações diretas e indiretas à versos de canções. De Luiz Gonzaga a MC Catra, passando por Mario Lago (Que saudades da Amélia). Cita Leoni para tirar uma onda com “os garotos”. Um poema feminista de combate, que faz muito sucesso nos Slams e foi lido recentemente no evento de lançamento da candidatura de Guilherme Boulos (PSOL) à Prefeitura de São Paulo. Em Cotidiano talvez o título seja uma ironia à canção de Chico Buarque, pois se trata de um revide de mulher cansada de um amor errado com homem machista, hipócrita: “só fui feliz quando não precisei ser a mulher de sua vida/ porque na verdade, sempre fui a mulher da minha”
Mar ia Lama aborda o rompimento da barragem em Mariana ocorrido em novembro de 2015, tema citado em poemas anteriores. Nele, a autora expressa solidariedade ao povo e um apelo por justiça num clamor resiliente: “Da lama que sai diamante/ Tu és Pedra Viva!” Donzela trata de um casamento conturbado, marcado por violência e traição do companheiro que foi tão romântico durante a conquista, mas quis ter uma donzela serviçal em casa. A mulher se vinga no final com violência, mas morre feito “indigesta”…
O restante do livro reúne, em três capítulos os poemas de amor que são, quase sempre sobre relações conturbadas. Chamou-me a atenção o fato de a autora pouco discorrer sobre sexo. Heterossexual, como Mel, Mariana se reporta quase sempre a um homem que é retratado mais por suas atitudes e gestos do que por sua virilidade, sensualidade e encantos próprios de um homem cisgênero, como ocorre nos homens que Mel desenha em seus poemas.
Três dos cinco primeiros textos do segundo capítulo são poemas em forma de prosa. Dois deles tentam desvendar aspectos da personalidade da autora e têm títulos sugestivos: Talvez e Eu. O primeiro começa se referindo a si própria, seus vícios e dilemas pessoais, passa pela farsa da Lava Jato e seu punitivismo seletivo. Depois especula que a vida talvez seja a distância entre certas cidades e seus devaneios no ônibus “Cemitério da Saudade”. Termina se comparando a uma bagagem esquecida em algum compartimento de carga. Em Eu, apesar do título ser a primeira pessoa do singular, o texto está na primeira pessoa do plural, “nós”, mas, próximo do final se torna “eu” ao tratar “de minhas escolhas de feminilidade”, para depois, na parte final, voltar ao“nós”: “choremos todos os dias a dor do parto”…
Relógio de pulso é um poema, cujo título dá a entender que o sentido de relógio tem a ver com a urgência de se se reconhecer no mundo e pulso está relacionada a pulsação tensa dessa busca. Faz um questionamento sobre a existência de Deus e da razão de ser o Senhor, o Pai: “pai, por favor, diz, se contando com você eu já tive três/Por que nunca fui feliz?” Na mesma pegada, vem o poema 25/10/2015 um texto em prosa de reflexão existencial um tanto desesperada: “A vida deveria vir com a placa: Não vendo fiado/ Ela facilitaria, e muito, meu pensar… fardo pesado”. O bloco existencial se completa com o poema Embalos de sexta à noite que, sem fazer menção explícita à bebida, o poema é uma declaração de amor à cerveja: “Vulgo: ser!… E veja: aprendizados de boteco”
Daqui em diante o tema é quase um só: amores e desamores nem sempre nessa ordem. Casa discorre sobre sua concepção de casamento que tem a ver com amor que não cabe num contrato. Reflexões, texto em prosa no qual discorre sobre suas relações amorosas, tão numerosas quanto intensas e, aparentemente, fugazes. Uma busca permanente que denota um certo egocentrismo. Em Estranha escrita, aparece sua recorrente aversão à maternidade: “Aquela menina que abriu mão de seus sonhos/Hoje carrega um filho”.
Uma dose de desespero, por favor é um poema inspirado sobre a urgência do amor, da paixão desesperada, da dor do fim de um relacionamento: “Saí, já usando de tudo/ pra disfarçar o vazio/Te apaguei no cinzeiro/ quebrei suas garrafas de desprezo”. Reprise, como o título sugere, discorre sobre idas e vindas de um ex-amor. Admite ser “mandona e mau humorada”. Fala do incômodo que o cigarro causava ao namorado. Inverno, mais um poema de despedida dessa vez decidida, mas sofrida. Na mesma linha, Retalhos aborda o fim de um amor, porém, mais abstrato a ponto de parecer que a autora não se refere a alguém especificamente. Se eu estiver certo, já é um exercício de construção poética em torno do tema do qual virou especialista. Talvez livre de uma inspiração indigesta, a autora se esmerou em versos como: “Sair desse lugar/ onde não há sol, alagado…/ Preciso ir embora/ as janelas escancaradas são minha chance de fuga/ se eu temo a porta…”
Na parte final do livro, a autora manda recado para alguns de seus ex- amores. Troco usa as metáforas da “bagunça” e “vício” que aparecem com frequência nessa parte derradeira da obra. Em versos bem elaborados ela vai reiterar o que anunciou ser: um território de ninguém: “Eu quero beijo/todo dia, o tempo inteiro/você diz que não é meu/o que você tem no peito”. Deixa a porta aberta para que um outro amor (com coragem) entre. Assim continua nos poemas Tarde, Varal, Palhaços (“gosto é dos desajustados!”) e Votação.
O penúltimo bloco apresenta uma sequência de poema cujos títulos correspondem a três dias da semana que parecem ser especiais para a autora: Segunda, Terça e Quarta. No primeiro reitera a bagunça como um traço inexorável de sua personalidade e se dirige a alguém que deseja, porém, não é correspondida. Terça é toda alegria: “coração tipo pandeiro/baguncei verdades”. Na Quarta, enfim, fala de amor num dos poucos poemas em que a pessoa amada não aparece com gênero definido: “Nas camas fizemos bagunça”, mas o amor se acaba, assim como termina a curta semana da poeta.
O livro termina com dois poemas dedicados explicitamente a dois ex. Um tem como título reticências entre parênteses (…) no qual o nome e sobrenome do dito cujo consta em nota no final dos versos. O título do seguinte é formado pelas iniciais de um outro: L.A.C.S. que poderia muito bem ser um epitáfio: “perdoa amor/Esse meu desvio de percurso/ é que te procurei tanto/ que acabei me achando no meio do caminho”. Amar é, sem dúvida, o maior (e melhor, por certo) dos vícios de Mariana Felix.
Uma poesia que espanca e estanca
O Slam chegou no Brasil na primeira década deste século XXI trazido pela atriz-MC Roberta Estrela Dalva por meio do ZAP – Zona Autônoma da Palavra, torneio que ela criou na sede do Núcleo Bartolomeu de Teatro, companhia teatral paulistana da qual ela faz parte há cerca de 20 anos. Esse tipo de campeonato de poesia falada conquistou muito espaço e se espraiou pelo Brasil. Estima-se que há mais de 200 torneios em todo o país. Parte deles se reúne no Slam Br, competição nacional que a própria Roberta organiza há vários anos em parceria com o SESC.
Essa breve contextualização é para afirmar que o Slam se tornou um dos principais espaços de expressão das mulheres, em especial das mulheres jovens negras. A poesia falada em voz alta é atualmente a evidência mais contundente da arte urbana engajada. São espaços de quilombagem, de acolhimento e de partilha afetiva. Mel Duarte e Mariana Felix são exemplos da importância desses encontros de disputa poética para formação de artistas ativistas. O Slam condensa os chamados novos protagonismos, o novo feminismo e a diversidade das expressões da negritude, culturalizando as lutas que, para além de identitárias, são libertárias. Por meio do Slam se faz luta política em clima de fraternidade porque se a guerra não cessa, tampouco o amor pode parar.
É por isso que duas autoras tão combativas e representativas desse movimento, apresentam seus livros ressaltando seus corpos, suas relações afetivas, amorosas, sexuais, a ancestralidade que herdam, o cabelo que define sua identidade. Não é uma retórica desconectada da vida. É a vida que se faz poema e explode, fazendo aqui, uso da expressão que Heloisa Buarque de Hollanda utilizou para nomear seu livro Explosão Feminista (2018 – Cia das Letras)|Um título que traduz em boa medida a estrutura de sentimento que existente na rede de Slams e se revela numa poesia feminista potente aguerrida e delicada ao mesmo tempo. Citando Luz Ribeiro, outra poeta slamer expoente da mesma geração, uma poesia que espanca e estanca.
Raramente poesia não é melosidade inútil como a de José de Alencar, ferrenho deputado contra a abolição da escravatura, como mostra o livro Raízes Do Conservadorismo Brasileiro, de Juremir Machado da Silva.