Cinema: Caetano Veloso mira o espelho e vê o mundo

Documentário Narciso em férias radicaliza o “método Coutinho”: é todo Caetano, falando para a câmera, em cenário austero. Por meio de seu filtro pessoal, sua memória de cárcere na ditadura espelha sua arte – e também nossa história recente

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

O grande acontecimento cinematográfico da semana é o documentário Narciso em férias, de Renato Terra e Ricardo Calil. Exibido domingo no festival de Veneza, o filme está disponível na plataforma Globoplay.

Como todos a esta altura já sabem, o documentário consiste de um longo depoimento de Caetano Veloso sobre o período em que, assim como Gilberto Gil, esteve preso pela ditadura militar, entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969. Por se tratar de uma figura central da cultura brasileira das últimas cinco décadas, o perigo maior da crítica é o da paráfrase, ou seja, de simplesmente resumir com outras palavras a experiência relatada pelo artista. Tratemos de evitar esse perigo aqui, concentrando-nos na abordagem que os diretores deram ao seu objeto.

Cinema falado

Eduardo Coutinho, nosso documentarista maior, demonstrou reiteradas vezes que não há nada mais interessante do que uma pessoa que fala sobre sua experiência e sua relação com a vida. A construção da autoimagem do depoente diante das câmeras diz muito sobre ele e sobre o mundo à sua volta. Quando quem fala é alguém que tem uma reflexão elaborada a respeito de quase tudo, como é o caso de Caetano, o interesse se potencializa. (Curiosamente, o único longa-metragem realizado pelo compositor chama-se O cinema falado.)

Conscientes disso, os diretores de Narciso em férias optaram de certo modo por radicalizar o “método Coutinho”, destituindo tanto quanto possível o aparato cinematográfico de seu poder mais ostensivo de intervenção. O filme todo é Caetano falando para a câmera. O cenário é de um despojamento monástico: o entrevistado sentado numa cadeira à frente de um paredão cinza de concreto, evocando as ideias de dureza, aridez e solidão que remetem ao cárcere.

Não foi a primeira vez que se fez isso no cinema, e dois precedentes extraordinários me vêm à lembrança. O primeiro é o documentário austríaco Eu fui a secretária de Hitler (2002), de André Heller e Othmar Schmiderer, que se resume ao depoimento para a câmera da personagem do título, Traudl Junge, então com 82 anos (morreria pouco depois), sem material de arquivo ou qualquer outro tipo de imagem ou locução. O filme está inteiro, com legendas, no YouTube:

O outro exemplo é o média-metragem Sete anos em maio (2019), de Affonso Uchoa, em que o jovem negro Rafael dos Santos Rocha conta sua história acidentada de ex-detento perseguido e torturado pela polícia. Sua longa narração, à noite, num descampado semi-iluminado, é uma das coisas mais pungentes que o cinema mostrou nos últimos tempos. O que há de real e de ficção nessa narrativa sempre ficará em aberto.

Voltemos a Narciso em férias. Aqui, o depoente é conhecido de todos e grande parte do que ele conta é verificável mediante documentos ou outros testemunhos. O que nos interessa é sobretudo a maneira como ele vivenciou intimamente a experiência e como esta o transformou e influenciou sua arte.

Nesse aspecto, o filme é de uma riqueza ímpar. Caetano sempre foi acusado de narcisista, quando não de ególatra. Ele próprio assume em parte essa característica e a tematiza em sua obra. (Narciso em férias, a propósito, é o título de um capítulo de seu livro autobiográfico Verdade tropical e agora está sendo lançado em edição avulsa.) Consciente o tempo todo de sua autoimagem, ele sabe que, no fundo, tudo é performance.

Filtro pessoal

O grande mérito do documentário é justamente captar esse movimento de autorreflexão, nos dois sentidos da palavra. Não por acaso, o objeto “espelho” é referido duas vezes: a primeira pela ausência, já que o compositor não pôde ver seu rosto durante as primeiras semanas de cativeiro; a segunda é o momento de crise psíquica em que Caetano caiu ao retornar à casa da família, na Bahia, e que o fez correr para diante do espelho, aliás uma das passagens mais fortes do depoimento.

Mas o fato é que por esse filtro pessoal, narcísico, passa boa parte da história brasileira da época da ditadura, e não só. Mirando o espelho, Caetano vê o mundo. Ele é tudo menos um alienado, e menos ainda um burro. Percebe nas mínimas coisas os processos mais gerais do planeta. Quando diz, por exemplo, que, do xadrez coletivo onde estava a certa altura, ouviam-se gritos de torturados e que estes eram provavelmente de presos comuns das favelas e bairros pobres do Rio, ele detecta ali a marca de uma brutalidade de raiz escravista que não terminou em nosso país.

Um dos momentos mais tocantes do monólogo é aquele em que Caetano fala do sargento que, contrariando as normas e arriscando uma punição, permitiu que a mulher do preso, Dedé Gadelha, entrasse em sua cela para que eles pudessem namorar. E ainda ficou vigiando a porta. O sargento era negro e de baixa instrução, por isso sabia que nunca seria promovido. Acabou preso depois, e ao contar isso Caetano se emociona, lamentando não ter perguntado o nome do homem.

Há outras passagens inspiradas, como a analogia que o compositor faz entre a lágrima e o sêmen, duas formas pelas quais “o espírito transborda do corpo”. Na prisão, segundo conta, ele não conseguia nem chorar nem ter uma ereção. Talvez seja preciso ser um tanto narcisista, ainda que às avessas, para fazer uma revelação assim.

Os momentos em que Caetano se emociona são os mais difíceis e problemáticos do documentário, pois é por muito pouco que não se cai num procedimento execrável do telejornalismo, que é a “câmera busca-lágrima”, isto é, aquela mania de dar um zoom nos olhos do entrevistado quando é provável que ele vá chorar. Em duas ou três passagens, a câmera de Narciso em férias inicia um movimento desse tipo e parece se conter a tempo, constrangida.

A cela e o universo

Em compensação, as mínimas intervenções do entrevistador (Renato Terra, salvo engano) são sempre precisas. A mais certeira é a entrega a Caetano de um exemplar da revista Manchete que ele havia lido na prisão e que inspiraria anos mais tarde a sublime canção Terra. No confinamento de uma solitária, as páginas daquela revista eram janelas por onde entrava todo o espaço sideral.

A dialética entre o dentro e o fora, as tentativas de decifrar o que acontecia no mundo por meio dos sons fragmentados que entravam na cela, tudo isso é muito interessante e envolvente. Não há um só minuto de tédio no filme.

Por fim, as músicas. Três delas são cantadas em cena: Irene, composta na cadeia e versando sobre a saudade de casa; a mencionada Terra; e Hey Jude, dos Beatles, cujo euforizante coro final, repetido sem parar, evocava para Caetano “a abertura das portas da prisão”. Os momentos de mistura entre depoimento e canção lembram outro exemplo notável de registro artístico-musical, o programa Ensaio, de Fernando Faro, na TV Cultura, em que cantores e compositores falavam livremente sobre sua vida e sua obra, em meio aos números musicais.

Enfim, é muita coisa. E eu nem falei do humor, que cintila em vários trechos desse documentário essencial.

MAIS: Caetano na prisão – as canções

Playlist organizada por Joaquim Ferreira dos Santos a partir do filme Narciso em férias e do livro Verdade tropical reúne canções que se tornaram tabus para Caetano Veloso por terem ligação com sua prisão. Hey Jude lhe transmitia esperança; Irene e Terra são frutos daquele momento.

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