Crônica: A uberização das reticências

Elas desempregam pontos finais e vírgulas — e se tornaram prestadoras de serviços genéricos. Acoplam ideias não-formadas. Revelam a aflição do não-concluir da Geração dos Reticentes. Nem a linguagem escapa da rapina de nosso tempo…

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Não quero parecer um pedante de monóculo e polainas nem ser uma versão moralista do Professor Pasquale, mas tenho de dizer: o mundo digital favoreceu certas aberrações de linguagem entre nós.

Se eu fosse uma vogal, o uso abusivo de “vc”, “tbm” e “blz” me incomodaria, e eu talvez até denunciasse essa prática discriminatória que coloca tantas boas letras sob a ameaça do desemprego, mas não é esse o caso. Se fosse para ter alguma implicância com isto seria por causa da ineficiência: quem é que já ouviu alguém dizer que conseguiu terminar aquela série da Netflix porque deixou de usar vogais nas conversas de WhatsApp? Pois é, ninguém; e apesar disto, a economia de vogais continua. Os recursos linguísticos que se deixa de gastar ali são esbanjados num outro sinal gráfico, as reticências.

As reticências se tornaram o pau-pra-toda-obra do universo da escrita, e têm sido prostituídas por irresponsáveis que as tomam por pontos finais, vírgulas, ponto-e-vírgulas, travessão etc. Ao final de uma frase: reticências. Em fim de parágrafo: reticências. Entre duas orações no interior de uma frase maior: reticências. Quando termina uma frase mas se quer ainda acoplar mais um pensamentozinho a ela, adivinha? Exato, reticências de novo. O resultado é um texto todo pontilhado… cheio de pausas desnecessárias… parecendo até um exercício de “Complete”… Como se a pessoa volta e meia resolvesse alternar do português para o código Morse só de farra… Um horror…

Pobre das reticências, que foram uberizadas, tornadas prestadores de serviço genéricos cujo emprego constante é mera ilusão de estabilidade. Algumas chegaram a acalentar o sonho de trabalhar dentro de sua vocação, para expressar aquela vagueza própria de fim de pensamento, mas acabam por ter de transigir estoicamente com sua condição de faz-tudo, de leva-e-traz da linguagem. Existem até algumas reticências que se conformam, abrem uma pessoa jurídica e aceitam o jogo oportunista, dizendo que as que se lamentam são, na verdade, preguiçosas. Tentar convencer-se de que nasceram para isto, no entanto, não é muito mais do que tentar fazer de uma necessidade uma virtude.

Pobres também dos demais trabalhadores da pontuação gráfica, que são cruelmente descartados porque trabalhadores de ofício, donos de uma destreza quase artesanal que os torna inaptos ao quebra-galhismo profissional requerido pelo mercado desregulamentado. O pobre ponto-e-vírgula, coitado, caiu num ostracismo vil: é hoje mais usado como atalho para o emoji piscando o olho do que como aquela pontuação fidalga de outrora, que o Saramago adorava usar para evitar novos parágrafos.

A rapina do nosso tempo é amplamente destrutiva, e a linguagem não escapa dela, ainda mais no caso das reticências, que têm um passado glorioso.

Na literatura dos Setecentos, por exemplo, era comum servirem como máscara que escondia a identidade de conspiradores e conquistadores. Eram empregadas para falar de um Conde … ou Duque …, que sob a luz do luar saltavam janelas com galhardia, prontos a cair nos braços da amante proibida. As reticências compunham o suspense, pondo os leitores a tentar adivinhar quem estava atrás de seu misterioso biombo.

Na época dos Românticos, então, que pompa! Havia mergulhos contemplativos em todas as direções e também donzelas enrubescidas levando a mão ao seio e suspirando “ohs”. Adivinhem quem auxiliava aqui e lá? As últimas frases do jovem Werther, aliás, estão pontilhadas com reticências. Eis as palavras finais de seu diário: “Elas estão carregadas… bateu meia-noite! Assim seja, então!… Carlota, Carlota! Adeus, adeus!” Quantas emoções equilibradas sobre aqueles três pontos…

E o que seria dos textos teatrais sem as reticências? Perderiam as pausas dramáticas e empilhariam onomatopeias de modo deselegante, com certeza. Imagine se não houvesse reticências nas palavras de Tartufo a Elmire, quando ele deixa ver que só foi desmascarado porque seu amor verdadeiro por ela pusera tudo a perder? As reticências ali constituem a expressão dos terremotos que ocorriam no espírito daquele falsário cuja devoção amorosa era genuína.

Hoje, pelo contrário, se não estão sendo usadas de modo indevido, como vimos antes, as reticências estão sendo empregada em funções pedestres ou mesmo inglórias.

Muitas delas acabam engaioladas entre parênteses nalguma citação acadêmica, de modo utilitário, cumprindo a função de tão somente encurtar textos de segunda mão. São como que gandulas do time reserva, um triste arremedo.

Outras são usadas para substituir listas pretensamente longas naqueles mesmos textos digitais. Exemplo: um sujeito escreve uma declaração para a aniversariante. “Podia colocar muitas das suas qualidades aqui: linda, legal, parceira…” Um olhar atento revela que as reticências ali não escondem uma exuberante lista de adjetivos, mas são somente uma cortina de fumaça para a falta deles. O mesmo ocorre com os que dizem que “poderiam ficar horas dizendo o quanto te amo” ou “escrever páginas e páginas explicando o quanto você é importante”: as reticências ali são um logro.

Uma última função atual das reticências é sintomática de sua precarização: o uso como uma espécie de cunha de porta do diálogo. Os mensageiros virtuais não têm a mesma capacidade que as conversas pessoais de manter diálogos simultâneos. O que pessoalmente funciona bem pode virar uma confusão numa conversa do Telegram, e é por isto que é comum usar as reticências ao fim de uma frase ligeiramente mais longa para indicar que aquela linha de raciocínio ainda não foi concluída, e vem mais texto em seguida. O “digitando…” do WhatsApp ou as reticências saltantes do Messenger servem para isto, mas não dão conta do problema: é preciso pôr o sinal gráfico lá para garantir que aquele diálogo vai ficar aberto. Ou seja, as reticências foram de cúmplice de paixões, de portadoras de suspiros poéticos a peso de porta! Que ultraje!

Nesse sentido, até, as reticências podem ser tomadas como uma espécie de termômetro da ansiedade contemporânea. Quando alguém insiste em tascar uma a cada frase ou ao fim de afirmações curtas numa conversa virtual, as reticências constituem um indício de impaciência, da necessidade de preencher o silêncio do pensamento, rastro de aflição quanto ao não concluir.

Ao longo desse processo, não se salvou nem o adjetivo “reticente”. Uma pessoa reticente deixou de ter o ar misterioso de alguém reservado, tornou-se um sujeito ansioso, simplório e que escreve mal. Não nos enganemos, a banalização do trabalho e da linguagem é uma banalização de nós mesmos.

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2 comentários para "Crônica: A uberização das reticências"

  1. Ana Paula Paim disse:

    Eu também achei o texto ótimo. Convida a uma reflexão extensa de questões atualmente abreviadas ou surrupiadas, seja da linguagem escrita ou falada, mas também de valores, de sentimentos e de situações que não ditas ou explicadas constituem verdadeiros equívocos de comunicação, esses que nos geram todos os tipos de problemas, dos mais corriqueiros aos mais densos e confusos. Gratidão e Parabéns!

  2. Rodrigo Ribeiro Paziani disse:

    Excelente texto. Partir – e chegar – à banalização das reticências na sociedade contemporânea para discutir sua “uberização”, unindo as pontas (esgarçadas) dos mundos do trabalho e da linguagem constitui uma tarefa para primorosos reticentes… Parabéns Lucas!

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