Da tabelinha futebol e literatura sai gol de letra

Dois escritores da periferia retratam o universo borbulhante de campinhos e peladas: ato de brincar e também formação cultural dos meninos das quebradas, “onde a bola pulsa feito coração” — e as meninas são relegadas às margens…

Imagem: Projeto Pé de Meia, trabalho dos fotojornalistas Tadeu Vilani, Jefferson Botega, Bruno Alencastro e Jorge Aguiar,
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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

O tema dos livros que comento neste texto tratam de futebol, mas principalmente de jogar bola como ato de brincar, como prática cultural muito disseminada nas periferias. Crônicas de um peladeiro (Edições Elo da Corrente, 2014), de Michel Yakinie Pés no Chão (Edições do Tietê, 2016), de Marco Pezão são as obras que nos conduzirão aos campinhos e terrões de quebrada. Dois livros que demonstram a relação passional e fecunda entre literatura e futebol.

Os autores são de gerações e regiões distintas. Marco Pezão já não está mais entre nós; morreu em outubro de 2019 com 68 anos. Michel chegou nos 40 recentemente. O finado poeta era da região do Campo Limpo, trabalhou de jornalista no Taboão da Serra, município da Grande São Paulo que faz divisa com a capital naquele território que mistura zona sul com oeste. E é do lado em que o sol se põe que vem o Michel. Cria de Pirituba, nasceu e cresceu na beira da Rodovia Anhanguera em cuja margem havia inúmeros campos de várzea. Os dois jogaram bola até a juventude e mantiveram a paixão pelo futebol domingueiro no campinho de terra e depois no gramado sintético. Jornalista esportivo e pesquisador, além de poeta, Pezão contou a história dessa transição no livro Do Campo Limpo ao Sintético – Poesia sem Miséria, escrito em parceria com Alai Diniz e publicado em 20191. Quem escreveu o prefácio deste livro? Michel Yakini. Portanto, acabo por reunir aqui mais uma vez esses autores que fizeram excelentes tabelinhas nos últimos anos. Os dois são referência para o circuito de literatura periférica de São Paulo.

Pezão foi cofundador do Sarau da Cooperifa junto com Sergio Vaz em 2001 no Taboão da Serra. Quando aquele Sarau teve de se mudar, dois anos depois, para o Bar do Zé Batidão, que fica no Piraporinha em São Paulo, havia uma faixa que anunciava: “Nóis é ponte e atravessa qualquer rio” de autoria de Pezão. Tal verso virou título do primeiro livro dele que só foi publicado em 2013 pela Editora Reza Brava. Até sua morte, ele teve quatro livros publicados e manteve o Sarau A Plenos Pulmões na Casa das Rosas, na Avenida Paulista além dos recitais do I Love Laje, no Campo Limpo. Yakini fundou o Sarau Elo da Corrente em 2007 com Raquel Almeida e outros poetas do bairro. O coletivo mantém várias ações e criou recentemente uma editora. Michel publicou quatro livros cobrindo todos os gêneros da literatura: poesia, contos, crônicas e romance; organizou e participou de inúmeras coletâneas. Formado em Letras pela USP, está cursando mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos.

Meninos que foram, os autores contam histórias de futebol na ótica do peladeiro macho. Mas onde estariam as meninas enquanto os garotos jogavam bola no clássico da rua 9 contra a rua 10? Ou nos campos de várzea onde jogam os adultos? E as esposas e namoradas enquanto o marido joga o rachão casados contra solteiros? São histórias que os autores aqui não contam e não é por falta de percepção, pois as mulheres estão nos livros, embora com pouco destaque. A leitura conjunta dos livros que são dois gols de letra, não dão conta da presença das mulheres, o que me parece compreensível. Essas histórias terão que ser contadas pelas próprias minas.

Crônicas de um peladeiro

O livro de Michel Yakini tem 28 textos, quase todos fiéis ao gênero da crônica como anunciado no título. Não tão fiel ao título é a temática nele sugerida. A maioria das composições não trata das aventuras de um peladeiro nos terrões de quebrada. No livro, o autor discute principalmente o futebol profissional como um observador atento, apaixonado e crítico. São 18 textos que abordam o futebol de clubes e seleções, sendo que seis deles são mais de combate nos quais critica o machismo, o racismo e a homofobia que pesa sobre este esporte tão popular e encantador quanto elitista e excludente. Outros seis textos abordam a dimensão cultural do futebol na vida cotidiana e nas artes, especialmente na literatura. Por fim há quatro textos que receberão uma atenção maior, pois se conectam mais diretamente com o livro de Marco Pezão. São crônicas encharcadas de memórias da infância e que revelam o quanto o futebol e todo o seu entorno é um elemento fundamental na formação do autor e de muitos meninos como ele criados nas vielas e beiras de campo de uma periferia que tinha resquícios da vida rural até a década de 1980.

O título da crônica Pique de bola se refere a expressão usada pelo pai do autor quando elogiava um jogador de talento e que assume o protagonismo em jogos decisivos. Narra as primeiras idas ao estádio para ver o seu time do coração, o São Paulo, ainda criança nos anos 80. Depois narra as muitas vezes em que cabulou aula para assistir aos treinos do timaço que foi bicampeão mundial na década seguinte. Em Futebol UmbigoMichel faz uma crítica aos jogadores que ambicionam serem os melhores do mundo com base em seus supostos méritos e não da coletividade da qual fazem parte. Já em Afonsinho e as barbas de Karl Marxo texto fala do jogador Afonsinho (atualmente colunista da revista Carta Capital) que atuou no Santos e no Botafogo nos anos 1970. Em plena ditadura, o craque cabeludo e barbudo revolucionou o mundo do futebol alcançando o Passe Livre, o que lhe dava uma condição de trabalhador que poderia vender sua mão de obra para qualquer clube. Tal ideia inspirou Pelé, muitos anos depois, a criar a Lei do Passe Livre (que leva seu nome) quando foi Ministro do Esporte nos anos 1990. A Lei Pelé, no entanto, criou outra armadilha: os jogadores ficaram presos na mão de empresários.

Pelé também é lembrado na crônica O samba de um Rei e o tango de um Deus que fala do peso do legado deixado por Pelé e Maradona. A poética do R, por sua vez fala de um craque mais contemporâneo. O R do título está sob um asterisco que indica uma nota de rodapé a qual se refere a uma partida entre Atlético MG e São Paulo realizada em fevereiro de 2013, vencida pelo Galo. O texto fala de uma jogada marota do craque brasileiro que já no final da carreira ainda fazia lances geniais. Trata-se de Ronaldinho Gaúcho, o R – 10. Em Admirável Futnovo, Michel faz um texto muito inspirado no qual o autor esbanja um humor refinado fazendo paródia da transmissão de um jogo feito por uma rádio que exagera nos comerciais. À rádio, ele dá o nome de “Merchand”. O campeonato é “paulistão Chulévrolet”. Os principais patrocinadores são “Casas Bacia” e “Tintas Semvergonha”.

Em duas crônicas com o título Tempero Africano (1 e 2), o autor fala da Copa das Nações da África realizada em 2012 na África do Sul, quase que totalmente ignorada no Brasil. Já a Copa do Mundo de 2014, ano da publicação do livro, aparece pouco e quando é citada é para criticá-la. Em Amoródio F.C , o autoraborda as contradições do futebol capitalista. Os jogadores da Seleção Canarinho são todos “extrangeiros”, alguns sequer no Brasil jogaram e é chefiado por uma Confederação golpista e corrupta, destaca o autor. Num Brasil que ainda respirava o gás lacrimogênio que tomou a atmosfera nas manifestações de 2013, a revolta pela usurpação do futebol é um chamado para as ruas.

A crítica ao racismo no futebol aparece em É meu maior prazer vê-lo brilhar...,cujo tema é a tradição do Flamengo em lançar mão de ex-jogadores como técnicos. Ele conta a história de Adílio e Jayme Almeida. Ambos foram promovidos ao time principal como medida de emergência, mas, além arrumarem o time, foram campeões. Mantidos no cargo, foram demitidos precocemente em face dos primeiros resultados negativos na temporada seguinte. A falta de paciência aqui é atribuída pelo autor ao fato de os técnicos serem negros. Em Entre pelejas e carapinhasfaz uma excelente reflexão sobre o racismo no futebol tendo os cortes de cabelo como fio condutor.

A defesa das mulheres no futebol e o combate ao machismo aparecem em dois textos. Em Mais mulheres e menos gafe o autor fala do futebol de mulheres. Destaca o estrelato de Marta que até então contava com cinco prêmios da FIFA de melhor jogadora do mundo. Do futebol profissional ele volta para os terrões e vielas de Pirituba, onde quem reinava eram Geni, Vanessa e Galega. Recorda-se de suas ex-companheiras que eram também parceiras de arquibancada. Nesse tom de exaltação à mulherada boleira, termina o texto falando da Eriquinha, amiga da adolescência que virou dirigente de time de várzea.

Em um texto mais poético, Michel critica o machismo fazendo uma reflexão sobre a retaguarda do time. A crônica tem exatamente o título de A defesa no qual o autor discorre sobre a linha defensiva dos times composta pelos dois laterais e os zagueiros. Argumenta de forma muito inteligente que a zaga é o lado feminino do esporte bretão tão macho. Porém, ela é assim definida com base nos jargões machistas: “é preciso arrumar a cozinha” quando a defesa está vulnerável; “essa defesa é uma mãe”, quando ela é facilmente vazada ou “botou ordem na casa”, quando um zagueiro organiza o posicionamento dos defensores. Michel concorda com a dimensão feminina da defesa, mas contra-argumenta: “e mesmo em desvantagem, pois ainda é o lado mais fraco da corda, a cada dia a defesa decide mais jogos, coloca a tarja de capitão e garante o placar (…) Pois, enquanto os atacantes topetudos pagam de gatinho e ganham os louros da vitória, é ela, a chamada ‘mãe’ que carrega o fardo, equilibra a base e garante o sustento do time”.

A crítica à homofobia também aparece em dois textos bem distintos. Em Nem todo Sheik é Milk, Michel aborda um caso polêmico ocorrido por volta de 2013, envolvendo o não menos polêmico jogador corintiano, na época, Emerson Sheik. O atacante ídolo da torcida fanática deu um selinho num amigo. A repercussão do caso foi imediata e teve dois sentidos opostos. Por um lado, parte dos torcedores se revoltaram com a atitude supostamente homoafetiva do jogador e, por outro, ativistas LGBTQI (até aquela época a sigla parava por aí) enalteciam a também suposta defesa da diversidade sexual. Não era nem uma coisa, nem outra. Já em Coração feito a mão o texto discorre sobre a expectativa que tem de o principal jogador do time, em tarde inspirada na qual fez três gols no principal adversário, chegar diante do microfone da emissora de maior audiência e dedicar sua bela atuação a seu namorado.

O bloco de textos que fazem a conexão futebol e cultura enfatiza principalmente a literatura. Em De quando a poesia lembra o futebol, o autor narra a festa de cinco anos do Sarau Elo da Corrente. Uma festa retumbante com direito a fogos de artifício e batucada, tal qual festa de torcida. Michel tenta demonstrar que a poesia pode gerar festejos eufóricos como os proporcionados pelo futebol, com a vantagem de não produzir decepções em decorrência de derrotas, uma vez que essa tristeza não faz parte do vocabulário dos recitais de poesia na periferia. Se a poesia pode ser festiva como a galera na arquibancada, o mesmo não se pode falar da vocação futebolística dos poetas. Na crônica O poeta e a síndrome da bola quadrada, o autor aborda a sina de poetas que vão bem nas letras, mas não repetem o mesmo talento com a bola no pé. Ele entrega três expoentes da bola quadrada: Akins Kinté, Sergio Vaz e Alessandro Buzo, todos fanáticos por futebol.

Já em Mané Garrincha de Lima Barreto, o autor discorre sobre a relação futebol e literatura comparando Garrincha a Lima Barreto. O drible é o fator de aproximação entre ambos em função de sua dimensão inverossímil do recurso usado no campo par enganar o adversário. Ou seja, o drible é a mentira que, para a literatura, seria a ficção. Michel cita o clássico conto de Lima Barreto: O homem que falava javanês que é uma história rocambolesca com camadas de mentira, o que se assemelhava com os dribles de Mané que entortava e fazia os zagueiros todos virarem “João”. O autor argumenta: “na bola e na página a mentira não requer só técnica, senão os melhores mentirosos viriam das escolinhas de futebol ou dos cursos de criação literária. Para ser um mentiroso imortal é preciso poetar com a bola, é preciso driblar com a caneta”. Se fossem contemporâneos, diz o autor, Garrincha e Lima Barreto “fariam uma boa tabelinha”.

Os textos inspirados nas recordações da infância e adolescência, quando o autor era efetivamente um peladeiro, são os mais cativantes do livro. Em Ciumeira de menino, que segue mais a forma de um conto, o texto narrado em primeira pessoa é estruturado em torno da bola tratada como metáfora de uma história de amor que acompanha o menino até a vida adulta. A narrativa conduz o leitor a uma expectativa de que se trata de alguém, uma menina que não é fiel a ele, pois flerta com outros garotos e também garotas. Durante a leitura não é difícil perceber o jogo que o autor está fazendo, mas isso não prejudica o texto, ao contrário, passamos a percorrer os campinhos, ruas e quadras por onde a bola busca os que a trata melhor, mas sem apegos: “sinto que para ela é indiferente, seu amor é libertário, não pertence a ninguém, só ao prazer”. Michel faz bom uso da prosopopeia como dissimulação na narrativa, recurso presente na literatura, mas também em famosas canções com “O caderno”, de Toquinho ou “Leva”, de Tim Maia. Como esses autores, Michel soube dar tratos à bola nesse texto de ficção tão pessoal.

Já em Perna fechada não toma rolinho, o autor explora um estilo de drible, talvez o mais maroto deles, o rolinho que denomina o ato de passar a bola por debaixo das pernas do adversário com um requinte de crueldade que deixa a vítima em estado de humilhação. Muito valorizado nos rachões de quebrada, o rolinho é critério de desempate ou quesito máximo para designar o melhor da partida. Em A arte de dar rolinho, estabeleci uma relação com o conto de João Antonio Afinação da arte de chutar tampinha.2Ambos os autores dão um tratamento científico a um movimento tão intuitivo. Vejamos. Michel discorre: “o rolinho, a sainha e a caneta têm um quê de adivinhação, de indução ao erro, nem sempre a vítima tá lá arreganhada esperando o óbvio. Na maioria das vezes o rolinho é uma conquista, é preciso feitiço pra fazer as canelas da vítima se abrirem sem que o dono queira”. João Antonio, por sua vez, diz que só um especialista para saber o chute certo para cada tipo de tampinha: “Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa”. Dar rolinhos e chutar tampinhas fazem daqueles dotados de tal habilidade, um graduado na ciência das ruas.

Em Na marca de cal, o texto trata do pênalti, momento crucial de um jogador. É ali que seu destino é definido: a glória ou o fracasso. Michel discorre sobre situações em que foi malsucedido na marca de cal, como no clássico entre os times da Rua 9 e 10, por exemplo. Ou numa partida, cujo pênalti perdido foi cavado habilidosamente e o autor de tal façanha nunca mais esqueceu o erro do amigo diante do goleiro. Outro caso de pênalti perdido foi no colégio em Pirituba onde estudou, o Zenaide. De lá saíram craques que brilharam no Ceará e no campeonato português. A escola viu também surgir um craque promissor, mas que jogava melhor com as mãos: Serginho que atuou anos pela seleção brasileira de vôlei, tornando-se um dos melhores do mundo. Pênalti é assim: se de dez, se acerta nove, será o erro o mais lembrado e foram os pênaltis errados que renderam essa deliciosa crônica.

Por fim, em O pai, o menino e a bola, uma crônica com sabor de despedida (última do livro) narra uma história que se passa numa penitenciária, onde o pai do menino cumpria pena. Um estabelecimento prisional de grande porte, pelo que parece, no qual se encontrava o Bandido da Luz Vermelha, já no final de sua sentença e de sua vida também. Havia uns nigerianos presos lá e que motivavam a curiosidade do garoto já ligado no futebol africano. Nada escapava ao olhar curioso do menino que visitava seu pai no xadrez. Ciente da avidez do garoto por futebol, da cadeia, o pai mandava cartas para clubes tecendo elogios ao talento filho. Uma delas chegou no Nacional, time paulistano da Barra Funda conhecido por revelar jogadores. O garoto foi recebido pelo Sr. Jurandir. E a história termina aí. O pretenso jogador virou escritor, mas continua a amar o futebol tão fascinante quanto injusto. Um retrato do Brasil.

Pés no chão

O livro de Marco Pezão tem a estrutura de uma dramaturgia em três atos. Mas podemos classificá-la como uma novela, gênero literário pouco disseminado no Brasil como literatura. Na obra, o autor conta a história de um grupo de meninos adolescentes fanáticos por futebol. Eles ocupam um solitário terreno baldio no bairro da Vila Sônia, na Zona Sul de São Paulo. Em meio às casas e prédios, aquele espaço era um oásis para uma garotada ociosa durante as férias escolares. Parece ser uma história de épocas passadas, mas à citação às redes sociais, ao futebol como empoderamento de meninas e ao noticiário que falava de corrupção na Petrobrás e o brado corintiano: “Aqui tem um bando de loucos” evidenciam que se trata de uma história de um passado bem recente.

1º ato – Sem bola parece que não teve dia

O texto faz uma descrição da Vila Sonia, bairro suburbano que fica entre o Campo Limpo, Butantã e Morumbi. O autor recupera a formação do território de 10.000 m2 que a Prefeitura loteou após negociação com herdeiros do dono que tinha uma enorme dívida de IPTU pendente. A Vila Sonia, já no século XX, virou um bairro de classe média distante do centro. Em meio à urbanização, um terreno permaneceu abandonado e vira um refúgio para um grupo de meninos: Luiz, Capeta, Mané, Geleia e Bentico. Cinco garotos que brincam de esconde-esconde, jogam taco, empinam pipas, observam namorados que se camuflam nos arbustos e, principalmente, jogam bola, fazendo daquele clarão em meio às casas e prédios, a arena da Vila Sônia. Até que um dia a bola caiu no quintal de um vizinho, cujo cachorro tinha também especial apetite pela pelota e a comeu, literalmente. A garotada ficou desnorteada. “Sem bola parece que não teve dia”, diz um dos garotos.

2º AtoUm dia vamos atravessar a ponte

Os meninos se organizam para arrumar o campo. Limpam o terreno, montam as traves com bambus e demarcam as linhas do campo com cal. Mas falta o principal: a bola. Um grupo de meninas do bairro aparece. São também cinco: Mariazinha, Isabel, Katinha, Joana e Sissi. Surpresos com a chegada das minas, alguns garotos desdenham do interesse delas de jogar futebol. O machismo fica explícito e as meninas rebatem. Elas contestam a qualidade técnica dos garotos alegando que não sabem se posicionar. E a resolução da contenda seria definida com a bola no pé. Mas, cadê a bola?

A pelota, no entanto, aparece de modo inusitado. Bentico conseguiu emprestada do hospital psiquiátrico que existe no bairro. Ele adentrou no recinto após ter resgatado uma pipa presa nos fios de eletricidade e que pertencia a pacientes ali internados. A iniciativa encantou os funcionários que emprestaram a bola como gesto de gratidão. Bentico ficou impressionado com as instalações do local e pelo campo que lá existia. Voltou ao campinho e foi recebido como herói pelos companheiros.

O jogo inaugural do campinho reformado, porém, não foi contra o time das meninas, que, por sinal, sumiu da história. Um grupo de garotos mau-encarados apareceu para jogar. É a turma do Largo do Arrocho: Ziza, Zilu, Zoião, Binho e Chupa Cabra. Binho era o líder e conhecia o Luiz da época em que frequentava a escola. Os garotos relutaram, mas acabaram aceitando uma partida. Os visitantes jogaram sem camisa. Binho fez questão de mostrar que sob sua camiseta tinha um revólver prateado. O clima ficou tenso e o jogo foi disputado gol a gol. Próximo do final do confronto, Chupa Cabra chuta a bola na casa da Dona Aguiar, onde mora o Rex, algoz das bolas. A atitude parece ter sido premeditada; a confusão se instalou. Os garotos maus se foram zombando da situação e propuseram uma revanche já que o jogo terminou empatado e poderia ter acabado em tragédia. Desolados, os amigos passaram a refletir sobre o caminho tomado por Binho e seu bando. Pensando no futuro, um deles sentencia: “um dia também vamos atravessar a ponte. E, do outro lado do rio, seremos a bola da vez”

3º ato – Pés no chão

Os meninos bolam um plano para resgatar a bola ainda intacta que repousa num canto do quintal da dona Aguiar sob o olhar aparentemente negligente do Rex que, desta vez, não arrebentou a pelota com os dentes. Usaram dois bambus que servem de trave para pinçar a redonda do alto do muro, como se estivessem usando um hashi gigante. A operação dá certo, mas, a um metro de alcançar a bola o Rex se dá conta da operação. Adeus bola… Desolados, bolam um plano B. Dois deles pulam o muro e entram no quintal pelos fundos, enquanto outro toca a campainha na frente e mantém o Rex distraído. O audacioso plano inclui o fechamento de um portão interno que separa os fundos da frente. Desse modo, o cachorro não os alcançariam. Deu certo. A bola foi resgatada e ainda deu tempo de roubar umas amoras. O apetite pela fruta fez os garotos repetirem a façanha. Encheram uma sacola de amora e do alto do muro, abriram o portão do meio com um barbante, tirando assim a possibilidade de a Dona Aguiar suspeitar que sua casa foi invadida.

Retornando ao campo se deram conta de que a bola pretensamente escondida, foi furtada. Desespero e frustração deixaram os garotos resignados. Foram almoçar. Na volta, encontraram as meninas no campinho com a bola. Antes que fossem acusadas de roubo, elas se colocaram como guardiãs, posto que a bola poderia sim ter sido levada por um estranho. O time das garotas que passou muito tempo fora da história a ela retorna nesse desfecho, tomam conta do campinho e o jogo entre meninos e meninas finalmente pode acontecer.

O autor (narrador) conclui com uma reflexão sobre a memória da infância: “em marcas permanentes tornam-se os acontecimentos, e, de pés no chão, silencioso, dolorido ou não, eis que vem o amadurecimento”.

Histórias que meninos narram e que meninas hão de contar

Ambos os autores exploram em seus textos a prática social e cultural de jogar bola na rua e nos campinhos como um componente da formação da personalidade de meninos nascidos e criados nas periferias. Fizeram de suas lembranças matéria de literatura elegante como drible, consistente como uma boa defesa e certeira como um atacante que sempre está bem posicionado na área do adversário para fazer um gol de letra. O futebol comercial também está presente, mas dele, o melhor é a torcida que de tanto batucar nas arquibancadas, passou a ocupar os sambódromos. Torcer também é onde os garotos de quebrada podem se impor no universo tão comercial e elitista que virou o futebol, além de racista, machista e homofóbico, como aborda bem Michel em suas crônicas.

Mas o que pega aqui é o futebol no terrão ou no gramado sintético que dominou os clubes da comunidade numa tentativa de gourmetização que tem lá suas vantagens, pois é possível agora jogar em dias de chuva e as chuteiras passaram a durar mais. Mas não deixa de ser a várzea, “onde a bola pulsa feito coração”, como diz Pezão em verso de poema publicado no livro Amo Sarau (Edições Sarau do Binho, 2019). Várzea que é cantada por vários poetas. Akins Kinté é um deles que no livro Muzimba (Independente, 2016) dedicou inúmeros poemas ao tema.

Mas são histórias de meninos que estavam nas ruas enquanto suas irmãs ficavam em casa ajudando as mães ou cuidando dos irmãos menores. Ou as mulheres que ficam fazendo as mesmas coisas, porém agora, como esposas dos maridos que seguem jogando bola. Há as mulheres que lavam os uniformes. Elizandra Souza retratou essas torcedoras de roupas no poema A bola vai, a vida vem… : “Mulheres na Várzea/ Mantêm o olhar de rebeldia/ lustram, o emblema do time que apreciam/em volta do campo, enquanto eles jogam/ elas cultuam seus rituais:/ torcem pelo gol/ Retorcem a água no enxágue do uniforme”.

Michel denuncia o desprezo que se tem pelo futebol profissional feminino. Não se dá o devido valor aos troféus de melhor do mundo de Marta e ficam na expectativa de que Neymar possa um dia ganhar a honraria que a jogadora já alcançou seis vezes. Ele lembra de umas minas que jogavam muito na quebrada, mas de tão raras, elas ficam esquecidas no livro, como exceção à regra. Pezão criou um time de meninas que se apresentavam com altivez perante os meninos que, segundo elas, não tinham organização tática à altura para enfrentá-las. Mas elas não estão na estrutura da história. Não são elas que conseguem resgatar a bola no quintal da Dona Aguiar sob o olhar sanguinário do cão feroz; tampouco são elas que conseguem tirar uma pipa do fio ou salvar o papagaio que fugiu para o topo do abacateiro depois de ter sido atacado por um gato perverso e faminto.

Mas há que se reconhecer o lugar de fala dos autores. Por mais sensíveis e talentosos que sejam, não dariam conta de retratar as mulheres num lugar de protagonismo. As autoras que cada vez mais ocupam a cena, vão cuidar de falar de si mesmas como já fazem e o futebol e outras práticas culturais de rua aparecerão nas histórias reais e fictícias na literatura de periferia. Pezão e Michel cumpriram muito bem o papel que lhes cabe e fizeram gols de letra ao falaram de meninos que jogam bola no campinho da Vila Sonia e nos terrões de Pirituba, canchas por onde passaram de Geni, Vanessa, Galega, Eriquinha, Mariazinha, Isabel, Katinha, Joana e Sissa, jogadoras da várzea, cujas histórias hão de contadas por meninas.

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Notas:

1 Obra é resultado do projeto com o qual os autores ganharam o edital da Lei de Fomento à Periferia de São Paulo, iniciativa que incluía também a estruturação de um espaço cultural ( I Love Laje), um documentário e a montagem de uma peça de teatro. O livro conta a história de cinco times do bairro do Campo Limpo todos eram CDM e depois Clubes da Comunidade: Cleuza Bueno, Jd. Martinica, EC Parque Ypê (SAPY), Regional Jardim Paris, União Uleromã e Jardim Rosana.

2 Chutar Tampinha, conto presente no livro Malagueta, Perus e Bacanaço publicado pela Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1975 ( 3ª edição)

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2 comentários para "Da tabelinha futebol e literatura sai gol de letra"

  1. Tassia disse:

    Muito legal “Da tabelinha futebol e literatura sai gol de letra”!

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