Ancap: Quando esquecemos o que é ser humano

Não é distopia, é neoliberalismo. Romance de Fausto Oliveira convida a examinar a vida reduzida a relações vazias. Leitor testemunha o apagamento do que há de humano no protagonista, um garoto periférico que mergulha no anarco-capitalismo

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Por Arthur Silva, no portal Disparada

Mais do que um livro sobre os adeptos de uma versão radical de apologia ao capitalismo, “o Ancap” de Fausto Oliveira (Flyve Cult, 2021) é um livro sobre esquecimento. O romance político convida o leitor a testemunhar o apagamento de tudo o que há de humano em uma pessoa – substituída no processo pelo indivíduo perfeito, verdadeiro “homo oeconomicus” que não deixa nenhum traço de humanidade no zumbi maximizador que habita sua carcaça. De modo não menos contundente, o autor também nos provoca para refletirmos a respeito de que tipo de sociedade (se é que é possível se falar em sociedade) pode emergir nesse individualismo que é espalhado ativamente nas redes sociais por agentes nem um pouco desinteressados nessa verdadeira epidemia ideológica de anti-humanismo.

Para entender esse esquecimento, vale a pena conferir a visão de Pierre Dardot e Christian Laval a respeito do neoliberalismo em “A Nova Razão do Mundo” (Boitempo, 2016). O neoliberalismo não é um mero retorno ao liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX e sim uma verdadeira ruptura com este. No liberalismo clássico, os limites à intervenção do Estado na Sociedade Civil são corolários da liberdade individual, cujo fundamento ético é o bem comum. Ou seja, na visão dos clássicos do iluminismo e das primeiras correntes ideológicas imediatamente após as Revoluções Americana e Francesa, a centralidade ética não reside em uma “ditadura das vontades individuais” somente limitada por outras didaturas de igual valor, mas na noção de que a sociedade é mais do que a soma dos indivíduos que a constituem. A ideia de um bem comum permeia o cosmopolitismo kantiano e o espírito positivo de Comte. Se a esfera de atuação do Estado é limitada, é para evitar sua captura por interesses particulares que poderiam atrapalhar justamente a emergência deste bem comum.

O que Dardot e Laval nos instigam a “desesquecer” (ela mesma, a anamnese platônica) é que o neoliberalismo é uma ruptura com esse vínculo que une os limites da atuação do Estado ao bem comum. É preciso apagar a falsa noção de que o neoliberalismo é sobre a limitação da atuação do Estado. Muito pelo contrário. Desde o famoso Colóquio Walter Lippman em Paris em 1938, quando Alexander Rustow cunha o termo “neoliberalismo” para distinguí-lo de seu antecessor, esse “novo liberalismo” incentiva a intervenção estatal. Aqui o Estado intervém para impedir o surgimento de uma “ditadura da maioria” nas democracias, esvaziadas em aparelhos tecnocráticos e num primado do Poder Judiciário. Intervém para disciplinar as relações interpessoais moldando-a na forma de uma competição generalizada em todas as esferas da vida. Por fim, intervém para assegurar a supremacia do direito privado e do direito à propriedade sobre todas as demais esferas. Se no liberalismo clássico o bem comum é o alicerce ético da limitação do Estado, no neoliberalismo é o medo da impotência histórica do indivíduo que fundamenta esse hiper-estatismo travestido de seu oposto.

Não é coincidência que justamente na crise da década de 70 que as obras de Murray Rothbard e Robert Nozick foram publicadas, defendendo um hiper-individualismo radical que ultrapassa os limites do surreal, alicerçadas em um “ataque” a tudo que lembre o Estado ou o coletivo e que ganhariam a alcunha de “anarco-capitalismo” nos anos seguintes. Sua recepção mesmo em círculos liberais é bastante negativa, rendendo conflitos entre Rothbard e a “musa” conservadora Ayn Rand. No entanto, vendidas como ideias “radicais” com muito apelo aos jovens, seu individualismo “anarquista” e contrário a toda qualquer hierarquia assumem ares modernos que atraem uma geração herdeira do Maio de 68, refratária a qualquer forma de organização. Afinal, esqueceram-se como as grandes rupturas foram feitas.

De todas as intervenções do Estado neoliberal, a que se expressa de modo mais violento no cotidiano das pessoas é a compulsão a competir em todas as esferas da vida. Sob o peso do Estado neoliberal, a educação foi reduzida a um jogo que ensina somente o primado de índices abstratos de produtividade. Pela mão do Estado neoliberal, os locais de trabalho foram reduzidos a guerra de todos contra todos, por meio de mecanismos que estimulam a “transparência” – isto é, o controle panóptico das pessoas, nuas frente a um dispositivo impessoal que molda suas subjetividades por meio de incentivos e “feedbacks”. É a dura e direta intervenção do Estado que destrói os serviços públicos, primeiro por seu sucateamento e então sua virtual doação à “iniciativa privada”, induzindo os governos estaduais e municipais a competir para ver quem é capaz de assegurar as condições mais proveitosas para o tal “mercado”. E principalmente pela mão do Estado neoliberal imperialista no Primeiro Mundo e colonial no Terceiro que as formas nacionais de desenvolvimento e democracia são trucidadas com violência implacável – patente nos efusivos elogios de Hayek a Pinochet.

O romance político de Fausto Oliveira nos convida a assistir junto com o protagonista, Santiago, o processo de degeneração de seu amigo de infância Uilian em um “Ancap”, um anarco-capitalista. Enquanto Santiago escolhe sempre se lembrar da economia real, tornando-se um empresário industrial de moderado sucesso, Uilian – convertido em Will – escolhe esquecer do fundamento material de todas as economias, tendo uma meteórica carreira como home broker e posteriormente um influencer nas redes sociais que defende o anarco-capitalismo.

No processo de conversão de Uilian em Will, ele se esquece de suas origens em “um bairro periférico, de uma cidade periférica, em um país periférico”. Esquece-se até mesmo de seu nome, adotando um pseudônimo anglo-saxão que o purifica de suas “pútridas” origens tropicais e terceiro-mundistas. Will se esquece das relações pessoais, sempre mediadas pela frenética tela de um computador – tanto para o trabalho, como para o lazer e sua militância Ancap. Sua família é esquecida e até mesmo seu consumo pessoal é relegado ao esquecimento. Will se esquece de sua moral, se esquece que existe qualquer coisa como uma sociedade e se esquece de tudo além de seu sucesso individual.

Tudo é esquecido exceto o ritmo dos números em sua tela de home broker.

Mas de todos os esquecimentos, o que chama mais a atenção é a parte final do livro. Aqui a pena de Fausto Oliveira assume os contornos de um filme de Costa-Gravas, mostrando as entranhas das relações dos “libertários radicais” com o Estado. Para não dar nenhum “spoiler”, basta dizer que o autor leva o leitor a “desesquecer” as tenebrosas transações pelas quais o Brasil é subtraído. É nessa parte que a franca hipocrisia radical do “ancapismo” aparece com toda força e mostra como ele seduz toda uma geração para que aplaudam a intervenção do Estado afim de esvaziá-los de qualquer humanidade, convertido em zumbis maximizadores – com muita intermediação das redes sociais e outros mecanismos institucionais de esquecimento das relações pessoais e de esquecimento da existência da realidade, reduzida a uma questão de gosto individual.

“O Ancap” é, acima de tudo, uma obra necessária. Necessária porque denuncia o esquecimento da humanidade no hiperindividualismo grotesco que viceja na cacofonia vertiginosa das redes sociais. Necessária porque dialoga com um mundo no qual a economia real é relegada ao esquecimento em favor de uma abstração disfuncional. Necessária porque lembra os leitores das tenebrosas transações das privatizações e do Estado rentista, que os “libertários radicais” façam questão que esqueçamos.

Mas é principalmente necessária por nos lembrar que a economia contemporânea foi reduzida a uma relação pessoal de coisas e a relação coisificada de pessoas. Essa redução faz com que a economia nos apareça não como algo fruto do nosso trabalho, mas como uma segunda natureza, estranha às nossas necessidades, que nos oprime e nos transforma em pequenas engrenagens de algo muito maior, que aparentemente não podemos exercer nenhuma influência.

A verdade que esquecemos é que nós podemos controlar essas forças produtivas, e não ser controlados por elas.

Isso é o mais importante, que jamais podemos esquecer.

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