Cinema: Domingo vê a classe média diante de Lula

Na comédia de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, o doméstico e o político: quando Lula toma posse, em 2003, duas famílias vão para uma fazenda. Sob o mesmo teto, conflitos de classe e gênero — e uma elite, assustada e debochada

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Entrelaçar o doméstico e o político, o particular e o geral, é uma meta muitas vezes tentada e poucas vezes atingida a contento no cinema. Criar um microcosmo que configure, como metáfora ou metonímia, uma leitura da sociedade em seu conjunto implica sempre o risco do esquematismo, como se cada personagem, cada ato, estivesse em cena para “simbolizar” algo maior.

Foi esse o desafio enfrentado por Domingo, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, ao narrar o fim de semana de duas famílias amigas na casa de fazenda de uma delas, no interior do Rio Grande do Sul. Para complicar as coisas, essa crônica familiar coincide com a posse de Lula para o seu primeiro mandato na presidência, em 1º de janeiro de 2003. Tratava-se, portanto, de captar um mundo em movimento, um momento de desestabilização de um arranjo social e político anterior.

O mais admirável no resultado obtido pelos diretores é que o comentário histórico-sociológico fica quase sempre em segundo plano, sem sufocar o frescor das cenas e a individualidade irredutível – e mais ou menos imprevisível – de cada personagem. Da matriarca Laura (a extraordinária Ítala Nandi) ao professor de tênis bonitão (Chay Suede), da esfuziante adolescente Valentina (Manu Morelli) à doméstica Inês (Silvana Silvia, a única pessoa negra em cena), todos se movem por seus desejos e conveniências pessoais, e é da costura dessas trajetórias que Domingo constrói sua rica e vívida tapeçaria.

Unidade de tempo e lugar

Por sua unidade de tempo e espaço e pela construção coral de sua narrativa, o filme remete a clássicos como A regra do jogo, de Renoir, e Cerimônia de casamento, de Altman, em que personagens de várias gerações e classes sociais interagem sob o mesmo teto. Pela maneira oblíqua de comentar o quadro histórico-social, aproxima-se dos primeiros filmes de Lucrecia Martel (O pântanoA menina santa).

Há uma notável fluência narrativa, por meio da alternância de planos-sequência abertos, com profundidade de foco, nos quais várias coisas acontecem ao mesmo tempo e personagens entram e saem livremente do quadro, e cenas mais íntimas, em que um ou dois personagens se expõem para além de seu papel social ou familiar. Isso só é possível graças a um roteiro muito bem urdido e a um elenco competente e afinado.

Dito isso, é impressionante o leque de questões afloradas ao longo da hora e meia de projeção, em especial as relações de classe e de gênero, a herança multissecular de um quadro de dominação patriarcal e a deterioração, por dentro e por fora, desse mesmo quadro.

Muito se falou e muito se falará dessas questões e do significado que adquirem no atual contexto de retrocesso político, social e cultural do país. Chamo a atenção apenas para um dos mais interessantes veios dramáticos do filme: as tentativas de reprodução dos papeis tradicionais do macho dominador e da mulher submissa ou da mulher-troféu.

Os meninos aprendem com os pais a carnear uma ovelha e a atirar com uma pistola. As meninas – seja a filha da empregada assediada pelo patrãozinho, seja a sinhazinha que se prepara para sua festa de debutante – recebem lições e conselhos sobre como se comportar em sociedade. Há toda uma intenção pedagógica nessas reuniões de família.

Crise de padrões

Num contexto de mudanças sociais e culturais, essa reprodução de padrões se torna problemática, enfrentando ruídos, resistências e desvios de toda ordem: um dos meninos gosta de se maquiar e se vestir de mulher; a dona da casa maluquinha (Camila Morgado) escandaliza a sogra, seduz o professor de tênis, “dá confiança demais aos empregados”; a criadinha tímida (Maria Vitória Valença) se rebela contra o assédio do filho do patrão. Alguma coisa está fora de ordem, em suma.

Ao longo da crônica desses entrechoques pessoais, acompanha-se o desenrolar da posse do novo presidente, em flashes de TV num quarto da casa, na bodega da vila, no rádio do carro.

Há um momento em que essa presença do fato político ganha destaque: ao entrar no quarto da empregada à sua procura, a patroa Laura se depara com a televisão ligada no discurso de posse. Ouvimos então um trecho mais longo da fala de Lula, anunciando “um novo país”. Mas não o vemos: a câmera fica o tempo todo concentrada na fisionomia da matriarca, que reage com esgares irônicos àquelas palavras de esperança.

Talvez esteja concentrada nesse plano fixo, nessa fricção entre palavra e imagem, a leitura mais evidente que a dupla de realizadores faz do significado daquele momento: o anúncio de uma nova ordem e a resistência a ela.

Em tempo: apesar do título, o filme (descontado um breve epílogo ambientado alguns meses depois) se passa todo num sábado. Ao chamá-lo de Domingo, talvez os realizadores tenham desejado mostrar que seu interesse estava no que viria depois, neste longo e conturbado domingo que já dura quase vinte anos. Faltou dizer que é uma comédia.

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