Mas quem era Amarildo?

Reportagem sobre servente de pedreiro que desapareceu em 14/7, na Rocinha. Como vive sua família; como foi sua prisão

Por Tânia Caliari, na Revista Retrato do Brasil

familia amarildo

Dona Jurema, sentada à esquerda, de vestido rosa. Atrás, Anderson, o filho mais velho. Ao lado de Jurema, Eunice. No colo do rapaz ao lado de Eunice, Milena, 6 anos, filha de Amarildo. Bete, a esposa está logo ao lado, e na sua frente, o filho Alisson, 10 anos.

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Reportagem sobre servente de pedreiro que desapareceu em 14/7, na favela da Rocinha. Como vive sua família; como foi sua prisão

Por Tânia Caliari, no Retrato do Brasil | Imagem: Van GoghGirassóis cortados

Amarildo, quando chegava de pileque na casa da irmã Eunice, era repreendido por dona Jurema. “Vou curar a sua bebedeira com uma coça, menino!”. Homem feito, 43 anos, seis filhos, Amarildo arriava então as calças e dizia: “pode bater, dona Jurema, a senhora eu respeito”. Dona Jurema, uma negra de seus 60 e poucos anos, olha pela janelinha de seu quarto na favela da Rocinha e se recorda de Amarildo, que criou desde os nove anos de idade, assim como alguns outros dos 12 filhos de dona Carmen. Dona Jurema nasceu no morro; dona Carmen, que se estivesse viva hoje teria 80 anos, veio de Petrópolis ainda menina, no início da formação da favela. “Amarildo era um menino bom, mas tinha pouco juízo. Eu via ele andando pra todo lado com a caçula nos ombros e falava: ‘leva essa menina pra casa, pra tomar um banho, pra comer!’, e ele dizia: ‘já dei biscoito pra ela, dona Jurema, guaraná’, ‘E isso lá sustenta criança, Amarildo?’”.

Em meados de outubro, havia três meses que o filho de criação de Dona Jurema tinha desaparecido, mas àquela altura grande parte do mistério de seu sumiço estava esclarecida: 10 policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha haviam sido indiciados e presos pelos crimes de tortura seguida de morte e ocultação de cadáver. A delegacia de Divisão de Homicídios havia terminado seu inquérito com o pedido de prisão preventiva dos policiais, atendido pela Justiça, mas as investigações continuavam no Ministério Público.

Desde que Amarildo desapareceu, após ser levado por policiais da UPP Rocinha no início da noite do dia 14 de julho, a família tinha convicção de que fora a polícia que dera sumiço nele. Nos dias seguintes à sua detenção na porta de uma birosca perto de sua casa, seus parentes acorreram à sede da UPP no morro, a delegacias, ao Instituto Médico Legal, a hospitais, a casas de parentes em Niterói e Nova Iguaçu. A falta de respostas levou Michele Lacerda, sua sobrinha, e Elizabete Gomes da Silva, sua mulher, a organizar uma manifestação na base do morro, o que resultou no fechamento do túnel Zuzu Angel – que liga os bairros da Zona Sul da cidade à Barra da Tijuca – em 17 de julho.

O Rio vivia dias agitados. As ondas de protestos populares, iniciadas em São Paulo em junho, e que se espraiaram pelo País durante a Copa das Confederações, continuavam a bater no Rio, sobretudo contra o governador Sérgio Cabral. Ao fecharem o túnel Zuzu Angel, os moradores da Rocinha traziam agora uma nova pauta para os protestos: onde está Amarildo? A pergunta foi imediatamente apropriada por manifestantes, artistas, imprensa, militantes de direitos humanos. Parecia que, finalmente, a população passava a se sensibilizar com o destino de um trabalhador pobre, preto e favelado, aparentemente vítima de arbitrariedade policial.

Não é fácil chegar à casa de Eunice, onde mora dona Jurema e que naquele momento abrigava cerca de 20 pessoas. A partir da estrada da Gávea, que atravessa a favela, pega-se a Rua 2, e, depois, pelo beco do Orelhão, só mesmo sendo guiado por algum morador. Uma adolescente, de pernas muito compridas, se apresenta em frente ao supermercado Princesa – “sou Bia, filha do Amarildo” – e sai mostrando o caminho: um sobe e desce de vielas estreitas de chão batido, por vezes coberto por cimento, entrecortado por pequenas pinguelas sobre águas servidas, pontuado por montes de lixo e também por matinhos que resistem em locais mais iluminados. Moradores passam apressados, alguns cedem passagem. Cá e lá surgem degraus. Barrancos, paredes e muros, portas e janelas ladeiam o caminho. Em alguns pontos, lajes e fios limitam a altura do passante. Quando se anda por aquela “trilha” urbana, aventurosa, fica fácil entender porque os moradores da Rocinha haviam aderido aos protestos nacionais questionando os planos de construção de um teleférico na comunidade, quando ali faltam saneamento básico e moradias dignas para seus habitantes. A Rocinha é a favela mais populosa do Brasil, com 70 mil moradores segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Os moradores acreditam que há mais gente e a população local deve chegar a pelo menos 160 mil pessoas. A Rocinha não é homogênea, ostentando prédios de até seis andares em suas ruas principais, comércio pujante, e ainda barracos de madeira e moradias que são como buracos, onde nunca bate sol.

Num espaço cimentado à frente da casa de Eunice, patos e galinhas disputam lugar com as crianças que brincam, entre elas Milena, a caçula de Amarildo. Eunice chamou a cunhada Elizabete e seus filhos para ficarem ali por uns tempos. Seria mais seguro, pois policiais estariam rondando a casa de um cômodo, sem banheiro, onde Bete e Amarildo criavam seus seis filhos, a cerca de um quilômetro dali.

Bete se desculpa pelas titicas de galinha no chão e vai falando que sua vida virou uma loucura depois que Amarildo foi levado pelos policiais. Resolveu que não iria ficar calada diante da “covardia” que fizeram com o seu marido. “Foi o Estado que levou meu marido”. Sua reação repercutiu e a partir daí foi recebida pelo governador do estado, Sérgio Cabral; pelo prefeito da cidade, Eduardo Paes. Esteve em programas de TV, deu palestra em Belo Horizonte num evento sobre mulheres que lutam. “Eu disse na palestra que, se a polícia fizer alguma covardia com alguém de sua família, não se pode ficar calado. Chega, gente! Tem que denunciar!”.”Quando fala desses compromissos e eventos, a militância é mesclada com um certo deslumbre. Bete destaca como foi bem tratada pelos jornalistas, quão farta era a mesa do café com o governador, o quão chic era o local do encontro em Belo Horizonte. “Até rap para o Amarildo fizeram; o Amarildo correu o mundo”. Eunice e dona Jurema se preocupam com Bete. “Está muito agitada. Se beber então, até xinga os policiais”.

Em meio a tanta exposição, parte do passado de Bete veio à tona: uma filha que deixou ainda bebê no Rio Grande do Norte para seus pais criarem a identificou em meio ao noticiário e a procurou. Além de Andreia, que hoje vive em Macaé (RJ), Bete havia deixado também Jarilda aos cuidados dos avós, quando, aos 16 anos, rumou para o Rio de Janeiro em busca de trabalho. A apresentadora Fátima Bernardes, da Rede Globo, levou no início de setembro Bete e seus seis filhos para participarem de seu programa matutino na emissora, e promoveu ali, de surpresa, um encontro entre a família de Amarildo, as filhas mais velhas de Bete, Andreia e Jarilda, e também os seus pais, vindos do Rio Grande do Norte especialmente para a ocasião. Bete e seus pais perderam contato e não se viam há 30 anos.

Filha mais velha de Maria e Sebastião Gomes da Silva, Bete se mudou para o Rio no início dos anos 1980 e foi trabalhar como empregada doméstica no Leblon. Logo conheceria Amarildo, que lavava carros no estacionamento da PUC na Gávea, e que quis juntar seus panos com os dela. “Quando Amarildo me chamou para morar com ele na Rocinha, ele foi na casa da minha patroa pedir… tipo, pedir minha mão. Eu pensava que Rocinha era lugar de plantação, igual roça mesmo… Aí eu vim morar numa casa de madeira. Nós é que refizemos a casa depois toda de tijolo, e moramos lá até o dia que ele sumiu”. De fato, a Rocinha já havia sido roça mesmo: fazenda de café até o início do século XX, e chácaras a partir dos anos 1930, de onde saíam as hortaliças para abastecer a Zona Sul.

Já tarimbada em conversar com jornalistas, Bete apresenta seus filhos como uma escalação de um time: Anderson, 21 anos; Emerson, 20; Amarildo Júnior, 18; Ana Beatriz, 13; Alisson, 10; e Milena, 6. É Milena quem interrompe a entrevista no meio da manhã fria com voz chorosa: “mãããe… tô cheia de fome”. Segundo a mãe, é a que mais sente a falta do pai. “Tive que explicar pra ela que o pai não vai voltar”.

 

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A detenção de Amarildo

Baseado no relato de Elizabete Gomes da Silva, mulher de Amarildo, nas notícias que saíram nos jornais, em depoimentos dados por testemunhas durante o inquérito e em entrevista com o delegado empenhado na primeira fase da investigação, o desaparecimento de Amarildo pode ser narrado da seguinte forma: era dia de Flamengo e Vasco. Amarildo passara o domingo pescando com seu primo Luiz na praia de São Conrado. Ao regressar, no fim da tarde, limpou os peixes na porta de sua casa e saiu para comprar limão e alho no bar do Julio, uma birosca que fica depois de uma curva acentuada, descendo o Beco do Cotó a partir de sua casa. No bar, cinco pessoas tomavam cerveja, faziam uma moqueca, e acompanhavam o jogo do Campeonato Brasileiro, entre eles o dono do bar.

Ao chegar, Amarildo foi solicitado por uma moradora para que levasse suas malas até a rua 2, onde pegaria um táxi para a rodoviária. Amarildo fez o carreto, voltou ao bar satisfeito, dizendo que recebera 30 reais pelo serviço. O grupo viu então a chegada de um grupo de PMs e a abordagem feita a Amarildo pelo policial Douglas Vital, que pediu seu documento. Segundo contam as testemunhas, todos estranharam o pedido, pois sabiam que Vital conhecia Amarildo e que ainda assim, depois de ver sua carteira de identidade, o policial disse que o levaria para averiguações. Julio, o dono do bar, e Luiz Carlos, questionaram a atitude: “levar Amarildo pra quê?”.

Luiz Carlos foi então encarado por Vital, que indagou: “você me conhece? Sou o cara de macaco”. O grupo de oito policiais – nem todos entraram no bar, parte deles esperava do lado de fora – desceu então o Beco do Cotó até chegarem à Rua 2, conduzindo Amarildo ao Centro de Comando e Controle (CCC), um posto da UPP onde ficam monitores com as imagens captadas por cerca de 80 câmaras que vigiam as ruas da Rocinha. Nesse ínterim, Luciana, que estava no bar no momento da abordagem, subiu o beco e foi avisar Bete, que desceu com a filha Beatriz até o CCC. Bete esperou do lado de fora do posto, conversando com um policial, até que viu um carro da polícia parar e seu marido sair do posto. Correu a seu encontro, e já dentro da viatura Amarildo lhe disse que o seu documento estava com Vital. A viatura seguiu para a sede administrativa da UPP na Rocinha, num local conhecido como Portão Vermelho, na parte alta da favela que faz divisa com a mata de um parque. Como nunca voltou para casa, ficou a pergunta: onde está Amarildo?

(continua)

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Um comentario para "Mas quem era Amarildo?"

  1. Carlos Vinicius disse:

    São esses tipos de policiais que levam para o lixo toda uma corporação e um programa brilhante.

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