Federici, Marielle e o feminismo anticapitalista

Em entrevista da qual participou a lutadora brasileira, filósofa debate o salário para trabalho doméstico, as lutas das mulheres negras e brancas e a beleza de articulá-las à lógica – essencialmente feminista – dos Comuns

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Silvia Federici, entrevistada coletivamente na Revista DR

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Entrevista realizada em 29/11/16. Participaram, além da redação de DR, Alana Moraes, Barbara Glowczewski, Carol Bordalo, Daniela de Abreu, Marielle Franco, Natália Alves e Silvia de Mendonça

Silvia Federici  é ativista feminista, historiadora, pesquisadora e professora radicada em Nova York. É professora emérita da Universidade Hofstra (NY) e co-fundadora do Feminist International Collective que, nos anos 1970, criou o movimento de salários para o trabalho doméstico. Na década de 1980, trabalhou na Nigéria, onde fundou o Commitee of Academic Freedom in Africa. Silvia faz parte do Midnight Notes Collective e escreveu diversos livros, entre os mais conhecidos estão “Revolution at Point Zero. Housework, Reproduction, and Feminist Struggle” (PM Press/Autonomedia, 2012) e “Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive Accumulation” (Autonomedia, 2004). Esse último acaba de ser traduzido pelo Coletivo Sycorax.

P. Como foi a sua militância no movimento por salários para o trabalho doméstico? Queremos conhecer melhor essa história, pois para nós, no Brasil, a questão do trabalho doméstico é muito problemática, sobretudo para as mulheres negras. Acaba sendo um meio de as brancas se emanciparem desse trabalho, mas que passa a ser feito por mulheres negras, quase sempre exploradas. 

S. Acredito que o futuro da luta das trabalhadoras domésticas vai ser limitado se o movimento das trabalhadoras domésticas, que fazem esse trabalho em troca de um salário, não se ampliar para um movimento que inclua também as mulheres que fazem o trabalho doméstico não pago. É preciso formar um território de mulheres que fazem o trabalho doméstico pago, mas também das mulheres que fazem esse trabalho sem receber por ele. A campanha foi lançada nos anos setenta, quando o movimento feminista estava começando, forte e entusiasmado. As feministas buscavam respostas para grandes perguntas: de onde vem a opressão contra as mulheres? de onde vem a questão da subordinação? quais são suas causas fundamentais? Esse debate começou a tomar direções diferentes, havia as feministas radicais, as feministas liberais, as feministas socialistas… bem, e eu. Comecei a trabalhar com  mulheres feministas que não pertenciam a nenhuma dessas categorias. Formávamos um grupo diferente e a campanha por salários para o trabalho doméstico foi organizada por esse grupo de mulheres, que chegavam de países diferentes. Todas nós tínhamos uma história na esquerda, com formação marxista.

Esse grupo se converteu em uma rede internacional. Houve uma história política particular, pois era formado por feministas italianas que tinham militado nos movimentos da nova esquerda na Itália, da esquerda que criticava o Partido Comunista (que havia rompido com toda a história do comunismo), mas também por companheiras que tinham militado nos anos 1970, por exemplo, no movimento estudantil na Itália, no movimento operário e de 68. Também havia as companheiras que chegavam com experiência da luta anticolonial, que viveram anos em Trinidad e acompanharam a luta pela independência.

Eu já estava nos Estados Unidos, onde já se sentia a influência da luta do movimento por direitos civis, do movimento negro, desse conjunto de experiências políticas que foi importante porque nos levou a articular uma perspectiva em que, desde o princípio, se colocava a questão do feminismo, da luta das mulheres, da exploração das mulheres num contexto diferente, num contexto, por exemplo, de continuidade da luta anticolonial. Começamos então a nos enxergar como as “sem salário”, não somente como mulheres destinadas ao trabalho doméstico, à família, à maternidade, tudo isso contra o que nos revoltávamos, mas passamos a ver também a condição da mulher em continuidade com todo um mundo de outros sujeitos políticos que os grandes movimentos marxistas, ou socialistas, não tinham considerado como sujeitos fundamentais na formação capitalista, como sujeitos fundamentais da luta anticapitalista: os escravos, os colonizados. Começamos, então, a pensar as opressões e a exploração das mulheres do ponto de vista das “sem salário” e enxergamos a questão do trabalho doméstico nessa perspectiva, mas articulando também com uma perspectiva marxista porém crítica do marxismo. Toda a teoria de Marx sobre a reprodução da força de trabalho nunca fala da mulher, do trabalho da mulher. Começamos a articular, assim, uma análise da situação das mulheres na sociedade capitalista e no processo de formação capitalista, começamos a dizer que a raiz da exploração da mulher, de sua subordinação social, não está no que os marxistas e os socialistas pensavam – que as mulheres são excluídas da produção social, que são excluídas do trabalho que produz capital, logo não têm poder para lutar contra o capital porque não produzem. Nós dissemos: “não, o problema da mulher não é esse”. Ao contrário, na verdade, isto que chamamos de “trabalho doméstico” é trabalho de produção da força de trabalho, na realidade é esse trabalho que tem sido depreciado e desvalorizado. Na verdade, esse trabalho é fundamental para toda a organização capitalista do trabalho porque é o fundamento de toda atividade laboral: a reprodução da força de trabalho.

A partir desse tipo de análise, rechaçamos as alternativas políticas práticas que os outros movimentos nos davam, pois qual eram essas alternativas? Qual era a alternativa das radicais feministas que nos propunham uma cultura feminista, com espaços separados etc? E a das liberais que propunham juntar-se ao mercado, valorizar-se como parte do mercado? Ou ainda a das socialistas? As companheiras socialistas propunham que nos juntássemos à classe trabalhadora, para trabalhar na fábrica, para lutarmos no sindicato. Só que nós já éramos classe trabalhadora! Não era necessário ingressar na fábrica – se queremos sim, se não queremos, não. Então, para nós, o problema estava sobretudo em publicizar, em denunciar o trabalho não remunerado.

Sílvia Federici (ao centro, embaixo) e suas entrevistadoras

O pensamento anticolonial foi muito importante para se entender que o fato de não ter salário não significava que não havia acumulação capitalista. Não precisamos buscar mais trabalho, já estamos trabalhando. Isso foi mal compreendido às vezes. Na verdade era  uma estratégia para mudar a relação de poder, um objetivo de transição, não definitivo: uma forma de recusar a ideia de que precisamos lutar pelo trabalho. Queríamos traçar uma estratégia: “chega de doar esse nosso trabalho ao capitalismo”. E finalmente, para nós, o espaço doméstico é um espaço de recomposição e de união para todas as mulheres. Não importa se temos filhos, se somos casadas, solteiras, separadas, todas somos donas de casa. É uma identidade social que impacta todas as mulheres. Daí o interesse de nos juntarmos nesse território.

P:  Como foi sua experiência na Nigéria? 

R: Saí dos Estados Unidos porque, a partir dos anos 1980, a situação política nos Estados Unidos era terrível. Era o início do neoliberalismo, muito sufocante. Foi uma mudança de vida importante: conhecer um país diretamente colonizado, principalmente porque foram os anos em que começava a crise da dívida e o ajuste estrutural com intervenção do Fundo Monetário nos países africanos. Assistimos aos cortes de despesas, fechamento de indústrias locais, congelamento dos salários, desvalorização da moeda, privatização da terra, e o aumento das perseguições e criminalização dos movimentos sociais e principalmente das mulheres.

Essa experiência também foi crucial para redefinir o conceito de reprodução.  Até então eu sempre pensava nele em termos de trabalho doméstico, mas aí percebi que na África o trabalho no campo não é apenas um trabalho para o mercado, é para a cozinha, para a sobrevivência. Nesses contextos, trabalho doméstico inclui o trabalho de subsistência no campo.

P: Como você vê o trabalho, a militância da mulher negra por direitos nos países em que já esteve. A relação da luta da mulher negra com as feministas brancas?

P2: Se me permite complementar… Ao vir para cá, estava com uma  amiga negra, mas com outra concepção muito presente hoje no debate sobre o feminismo negro: o mulherismo, uma perspectiva afrocentrada. Quando eu explicava sobre a sua biografia e todo esse debate relacionado ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao marxismo, ela colocou muitas questões. Na mesma linha, me parece que precisamos ter mais diálogo com as diversas concepções teóricas, para a ampliação do movimento.

S. Bom, é uma questão longa porque tem fases diferentes. Está se formando um feminismo negro nos Estados Unidos, agora em outra fase, pois a política estatal está mudando. Por exemplo, eu tenho falado de trabalho doméstico e é claro que o movimento feminista que se desenvolveu nos anos setenta nos Estados Unidos e na Europa foi predominantemente um feminismo branco. Ainda que não somente, havia mulheres negras, mas com predominância das mulheres brancas, logo foi um feminismo que expressou a revolta das mulheres contra aquele que parecia ser nosso destino: o da divisão sexual do trabalho, o trabalho doméstico, casar-se, fazer filhos, construir um lar, uma família. Um ponto central da teoria feminista era a crítica da família, do lar, mas feministas como Bell Hooks diziam que a experiência das mulheres negras era muito diferente, pois para elas a família e o lar representavam uma segurança, um momento e um local em que se sentiam tratadas como humanas. Logo, sair do espaço do lar não era o objetivo do feminismo negro, dado que o fora de casa era um lugar perigoso, um lugar de alienação completa e de desvalorização. Então, claro que havia experiências diferentes, muito diferentes; a Bell Hooks fala da casa como um momento de resistência. Creio que feministas brancas que sentiam um rechaço inicial pela casa, por ter uma família, foram superando esse momento, até porque começamos a nos dar conta que o problema não estava na casa, mas no tipo particular de vida familiar ou vida sexual que se tinha. A crítica, muitas vezes feroz, que fizemos à família, à vida doméstica, à maternidade, isso não mudou, mas começamos a nos dar conta que era preciso inventar. Rechaçamos um tipo de família que havia sido disciplinado, subordinado ao trabalho laboral, dentro dos objetivos do capitalismo. E esse é um ponto importante, não?

A partir do fim dos anos setenta, houve um processo de institucionalização completa do feminismo. Foi crescendo muito aquilo que chamo de “feminismo de Estado”, do Estado internacional, a formação de feministas globais. Ao mesmo tempo, grupos organizados como o nosso, claramente anticapitalistas – não socialistas, mas anticapitalistas – sempre foram marginalizados, desconhecidos. O feminismo de Estado tem transformado a agenda feminista, de uma forma que tem domesticado o feminismo, usando os termos, a categoria, mas de modo completamente desfigurado, sem nada de subversivo. Creio que esse tem sido um fator importante também no fortalecimento de movimentos mais brancos. Por exemplo, falando de estratégia, a luta focalizada na questão do aborto. As mulheres brancas sempre lutaram pelo aborto, proclamando que lutar pelo aborto é lutar pelo controle sobre nosso corpo. Mas isso sem pensar que, ao mesmo tempo, as companheiras negras enfrentavam o problema da esterilização em massa, sobretudo nos anos setenta e depois, houve muitos, muitos casos de mulheres esterilizadas e também oprimidas por uma nova forma de controle contraceptivo, que são um ataque ao corpo e também à autonomia da mulher.

Estamos agora numa nova fase, também porque estamos numa fase em que surge uma nova geração de jovens brancas e negras. Acredito que essa geração tenha mais possibilidades do que a geração anterior. Por exemplo, o movimento do Black Lives Matter, a demonstração de apoio e mesmo a participação de mulheres e homens brancos nesse movimento, acho sem precedentes. Não quero dar uma imagem totalmente positiva, mas está aumentando o envolvimento de homens brancos e de mulheres brancas, o que é um movimento importante, que se coloca de forma geral contra os abusos da polícia, contra a matança realizada pela polícia, porque a polícia está matando muitos, muitos jovens negros, quase todos os dias. Por isso, o movimento parece que está ganhando mais força, algo está mudando.

P. Aqui no Brasil, recentemente, estudantes ocuparam as escolas, com muitas meninas na linha de frente. O debate sobre o feminismo foi muito intenso, pois a forma como as meninas, muito novas, se colocaram na luta, mostra que elas já estão aprendendo a lutar de outra forma.

S. Sim, os estudantes do Chile também. Causa grande emoção. Não somente estudantes de universidades, mas de uma escola média que foi ocupada, vi num vídeo que se chama “Tres instantes, un grito”, de Cecilia Barriga, um filme chileno poderoso. Quando meninos e meninas decidem que vão desocupar, eles se abraçam, não querem se separar, e dizem: “eu sei, eu sei que a parte melhor da minha vida está aqui, tenho vivido aqui, que aqui tem sido a experiência mais fundamental, aqui eu dei o melhor da minha vida”. Haviam compartilhado muito naqueles meses de viver junto, de debater, de limpar juntos, de organizar suas vidas, essa experiência coletiva tão criativa. Ali viram algo diferente da vida comum que viviam.

P. Você falou de institucionalização do feminismo, que algumas autoras chamam de terceira onda. Queria que você falasse um pouco dos pontos principais desse feminismo institucionalizado, sobre como ele mudou a agenda do feminismo.

S: Por exemplo, a violência contra a mulher. Depois de Nairobi, depois de Beijing, da Cidade do México, depois da primeira Conferência Global das Nações Unidas, a violência tornou-se um ponto fundamental. Mas falava-se da violência como sendo um problema familiar, como a violência de parentes… Não se fala de violência institucional, da violência dos sistemas econômicos. No mesmo período em que se fazem as quatro Conferências das Nações Unidas, em nível global, as mulheres experimentam um terrível empobrecimento, porque é algo estrutural – a expropriação da terra, o neoliberalismo global, mas isso não é considerado violência. Não se fala da violência institucional que todo esse sistema provoca, mas só da violência familiar. Por que muitas meninas não vão à  escola? Deve-se pensar como chegar aos parentes, aos pais e mães que não mandam as meninas para escola. Essa também é uma missão das Nações Unidas, não? Mas o Banco Mundial impõe à África, impõe à América Latina o corte dos subsídios das escolas, então os parentes não mandam as crianças para a escola porque custa caro, porque devem pagar, e não têm dinheiro para os uniformes, não há professores suficientes. E depois, se tem dito que a via principal para a emancipação das mulheres é o trabalho. Mas setenta por cento desse trabalho é um trabalho de merda, verdadeiramente, desculpa. É trabalho que não te dá nenhuma segurança, um trabalho que não te dá capacidade de sobreviver economicamente, realizado em condições ecológicas horríveis, sem saúde etc. Bom, para isso, usa-se a temática feminista, mas de um modo que exime de culpa a instituição, faz parecer que é uma questão de homens e de mulheres. Há ainda a máquina estatal que tem se criado, em que fica parecendo que pensar nas mulheres é criar os ministérios das mulheres.

O controle que o capitalismo tem imposto sobre o trabalho não remunerado das mulheres é realizado por homens. O capital e o Estado delegaram esse controle aos homens. O poder do salário se converte em poder social, de poder controlar, supervisionar o trabalho não remunerado das mulheres, e por isso começamos a compreender que a violência doméstica é parte do trabalho doméstico. A violência doméstica não é, como se diz, uma degeneração de alguns homens. A violência doméstica é uma coisa que tem sido institucionalizada e, por isso, tem sido tolerada pelo Estado. Porque a violência doméstica é como o patrão que usa da violência contra o escravo para fazê-lo trabalhar. E assim eles fazem: “ah, a comida não está pronta?!”. Muitas vezes a violência doméstica começa assim, conectada ao não cumprimento do trabalho doméstico, e é uma violência que tem sido tolerada, institucionalizada. Por isso, quando uma mulher chamava a polícia porque havia sido espancada, nunca, no passado, um homem era  encarcerado por isso.

Sou contra todos os cárceres, creio que precisamos de um tipo de justiça diferente. Mas quero dizer que sempre se tentou justificar a violência doméstica. Da mesma forma, ainda é necessária uma grande luta das mulheres contra o estupro. O estupro que também não é produto de uma degeneração, mas tem sido parte de uma definição fundamental de quais são os papéis sociais das mulheres. Foi criada toda uma ideologia que, no fim, justifica a violência sexual, justifica o homem te forçar sem se sentir mal, porque pensa que isso é parte de ser um homem – é construído assim.

Uma coisa que se passa agora é o retorno da violência contra a mulher. Hoje é incrível, por exemplo, que esteja regressando a caça às bruxas: milhões de mulheres, todos os anos, são mortas, queimadas, decapitadas. Acredito que isso seja parte de um modelo econômico, não? É ideológico, mas é também econômico porque é parte do que se passa com os homens que são continuamente expropriados, desempoderados, então precisam mostrar que têm o controle sobre suas mulheres. 

P. Você disse que na Nigéria, no momento em que a globalização chegou com os cortes do Fundo Monetário e toda a política de desregulamentação econômica, começou uma repressão terrível. Queria que você falasse mais um pouco sobre isso porque estamos vivendo hoje no Brasil uma crise e estamos nos preparando para algo muito pior, essa repressão se sente muito forte aqui nos últimos anos.

S. O discurso era o de que, para disciplinar a sociedade, era preciso reprimir, isso era necessário porque a sociedade não trabalhava o bastante, não tinha estrutura etc. E para disciplinar a sociedade era necessário disciplinar antes as mulheres, porque a crise do país estaria, em suas raízes, no problema das mulheres que não cumpriam seu trabalho; a crise era fruto do fato de as mulheres demandarem muito, queriam ser consumistas, não davam a seus filhos e filhas uma esperança de vida, por tudo isso era importante regressar a uma disciplina moral, o que se chamou “guerra contra a indisciplina”.

P: E que relação existe desse processo com a caça às bruxas?

S. A caça às bruxas agora se dá em vários lugares: Índia, África, este é um projeto que tenho com outras mulheres: criar uma rede de mulheres que trabalham sobre isso, analisando a caças às bruxas hoje. Porém, conectando com as outras formas de violência contra as mulheres e conectando a todas as formas de violação – econômica, social – do capitalismo hoje. O trabalho não remunerado necessita de violência, não é? Mas, hoje, a violência tem um caráter quantitativo e qualitativo diferente; é muito mais intensa e se dá sob formas não vistas anteriormente, como o regresso da caça às bruxas, como o fenômeno da matança pelos dotes na Índia, e também a forma de violência que se dá em áreas de espoliação, com os avanços das companhias de mineração ou a militarização. Rita Segato, uma feminista que vive aqui, tem um livro muito lido sobre a temática da violência contra as mulheres e a nova forma de capitalismo, sobre a nova forma de trabalho. Estou tentando criar essa rede para compreender melhor a violência contra as mulheres hoje, que tem tomado essa forma inacreditável de caça às bruxas.

P: Causa muita angústia a forma pela qual nós, mulheres negras, e as mulheres em geral, temos sido mais do que crucificadas, temos sido exterminadas no processo de crescimento do capitalismo. Isso me deixa profundamente assustada, a gente tem um número expressivo de jovens negros exterminados no Brasil, há uma política clara de extermínio de uma raça, da raça negra; o mesmo acontece com as mulheres a partir do feminicídio.

S. Sim, claro. Me disseram que no Rio, todos os dias, dois meninos negros são mortos e, em um ano, quase 20 mil são mortos. Pensei que nos EUA eu estava num lugar pior porque matam muitos negros e também mulheres. Na rua, como execução. Acredito que, no fim das contas, essa violência é uma força econômica. Podemos pensar no nível da espoliação, do empobrecimento e da expulsão que estão em curso. Sim, há um nível de violência maior, sobretudo contra os que parecem os mais combativos, porque não é uma coincidência que se mate sobretudo os jovens negros, é porque se sabe que os jovens negros são os que têm mais disposição de se rebelar. Nos EUA, é bem claro como os jovens negros até hoje são identificados com o movimento pelos direitos civis, os panteras negras, os rebeldes.

P:  Voltando ao tema da caça às bruxas de hoje. Está muito claro que podemos fazer hoje um paralelo entre o feminicídio e a caça às bruxas. Mas você falou também que existem outros tipos de violência contra as mulheres que estão na mesma matriz. Pode falar um pouco mais disso?

S. Agora, nos Estados Unidos, estão tentando introduzir leis que estabelecem como as mulheres devem se comportar quando estão grávidas, para que seja possível a sociedade acusar juridicamente quando uma grávida usa drogas ou está se “comportando mal”. No estado de Utah, tentaram passar uma lei que estabelecia o que a mulher grávida não poderia fazer e, entre várias coisas, não podia viver com um homem violento porque representava perigo pro feto. Além disso, a medicalização do parto foi se tornando cada vez mais cruel para as mulheres, que são obrigadas a parir seguindo um esquema industrial e agora são aterrorizadas com o que devem ou não fazer ao longo da gestação.

P. Para tentar finalizar de um modo um pouco otimista…

S. Sim, mas veja, se há tanta perseguição é porque há muita luta. Creio que é muito importante compreender que estamos enfrentando um sistema, um Estado que não dá mais nada às pessoas, um Estado que destrói,  que deve usar a violência o tempo todo porque não tem nada a nos oferecer.

P: Gosto muito da sua reflexão a respeito dos comuns. Como uma possibilidade muito concreta de produzirmos outras relações entre nós, mas também com o espaço, com a terra e com a própria economia. Se você puder falar um pouco mais disto: dos comuns como uma questão feminista.

S. As mulheres estão criando os comuns no mundo todo. A Maria Galindo fala muito sobre isso. Quando fui a La Paz, vi as mulheres que enfrentam a crise, saem de casa e transportam a reprodução para a rua, organizam o cuidado das crianças, se colocam contra a polícia, fazem bancos e criam toda uma vida comunitária. Essa tem sido uma resposta pela sobrevivência, não é como num pensamento ideológico, é algo que as mulheres compreenderam na prática: que se juntando poderiam criar novas formas de sobrevivência, melhor que sozinhas. As mulheres, depois do golpe no Chile, começaram a formar redes. Na América Latina,  a história dos últimos trinta, quarenta anos, é uma história de mulheres que produzem comuns: as mães, as cozinhas populares… Muita gente diz, como no caso da proposta dos salários para o trabalho doméstico: “ah, mas essa não é a solução porque os comuns não destroem o capitalismo”. Claro que não é a solução, claro que a destruição do capitalismo virá de tantas lutas que se juntam, porque é um sistema que se ocupa de todos os aspectos da vida, então, temos todo um arco de lutas e nosso desafio hoje é como juntar essas lutas. Mas os comuns são algo muito importante, pois são formas de sobrevivência, trata de uma forma de organização, de uma forma de se reapropriar da capacidade de iniciativa, de um jeito de dizer “eu sou capaz de fazer algo para mudar a minha vida”, porque somos muito desempoderadas pelo Estado que promete coisas e não dá, pelo partido idem. Temos aí uma possibilidade de pensar o autogoverno, isso me parece uma coisa revolucionária. Essa ideia de que nada se faz sozinho. Que é preciso juntar-se com outras pessoas para organizar uma vida econômica, criando uma forma de solidariedade, num mundo que tende a nos separar, a nos individualizar. Creio que é muito importante caminhar por aí, essa é uma condição para se poder lutar em todos os contextos. Então, isso não significa abandonar completamente a luta pelo salário, a luta pela moradia, bem ao contrário, essas lutas se fortalecem uma com a outra.

P. O  que você pensa sobre as diferentes estratégias de luta das mulheres hoje.

R. Não há apenas uma estratégia, são várias e são contextuais. Variam segundo as situações. Mas para mim há uma estratégia mais geral, em torno da qual todas as lutas precisam se articular, que é uma questão fundamental: precisamos conhecer nossos inimigos. Quem é o Banco Mundial, por exemplo, que há anos se apresenta como promotor dos direitos da mulher e de sua “autonomia”, mas cujo objetivo continua sendo expropriar terras. Hoje, há o extrativismo, a mineradora, Monsanto, há uma só direção nisso tudo. Estamos diante de uma estratégia global que desapropria, obriga as populações a se concentrar em cidades monstruosas, espolia terras para controlar os recursos minerais e agrícolas. É fundamental perceber isso. A luta pela terra é a luta mais importante hoje no planeta. Nós perdemos o controle sobre o que comemos, bebemos, respiramos. É uma derrota gigante. Essa luta se dá mais intensamente na América Latina, na África, mas vale para todo mundo. E são as mulheres que estão levando essa luta adiante. É uma luta pela reprodução. Um exemplo é a Nicarágua, onde o feminismo se centra na questão do controle das sementes. As mulheres são diretamente afetadas por isso: tem a ver com terra, com espaço, com ar, com reprodução. No México, camponesas me disseram que naqueles lugares onde as mulheres são protagonistas dessa luta pela terra, a memória coletiva está mais viva. E é justamente aí, nesses contextos, que nascem as lutas pelo comum, que é essa capacidade de criar e construir alianças entre lutas diversas.

Silvia esteve no Brasil em 2016, convidada pelo PACA, quando concedeu essa entrevista para a Revista DR, no Rio de Janeiro em 29 de novembro. Além das editoras da DR, participaram da entrevista: Alana Moraes, Barbara Glowczewski, Carol Bordalo, Daniela de Abreu, Marielle Franco, Natália Alves, Silvia de Mendonça

Seleção e transcrição: Alana Moraes, Oiara Bonilla, Thamires Sarti

Imagens: Diogo Campos dos Santos

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