Mulheres de todos os países, uni-vos!

Nova greve feminista marcará, em dezenas de países, o 8 de Março. Por que o movimento de mulheres cresceu e mudou tanto, em poucos anos. Como superou a onda individualista e volta-se, agora, contra as próprias lógicas do capitalismo?

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Por Marisa Kohan | Tradução: Rôney Rodrigues

Há quem discorda que estamos em uma terceira ou quarta onda do feminismo. Quem pensa que a mera classificação do movimento em ondas não tem sentido ou, inclusive, possa ser contraproducente. O que ninguém discute é o fato de que estamos assistindo a um ressurgimento da luta feminista que, pela primeira vez na história, aglutina mulheres de todas as idades, classes sociais, raças, identidades e lugares. Meninas de 12 anos e ativistas com várias décadas de luta nos bastidores compartilham uma visão de mundo e uma batalha travada nas casas, nas ruas, nas empresas, nos parlamentos, nas cortes de justiça e nas redes sociais.

Seja qual for o número dessa onda, estamos diante de um verdadeiro tsunami que não se conforma com a exigência de direitos específicos, mas que questiona a raiz toda e cada uma das violências machistas: de gênero, a econômica, a judicial, a educativa, a trabalhista, a cultural, a ambiental… “No momento, a luta pelo acesso à uma moradia é feminista, assim como a luta pelos direitos trabalhistas, pelo fechamento dos centros de detenção de imigrantes… E isso é algo novo. Não se trata de reivindicações para as mulheres ou para determinado tipo de mulheres, mas de questionar o modelo. O feminismo vê que a desigualdade da mulher não é um erro do sistema, mas o próprio sistema”, aponta a advogada e ativista Pastora Filigrana.

Para poder analisar a quarta onda do feminismo convém recordar alguns elementos que caracterizam as anteriores. A primeira onda, que as pensadoras europeias situam na época do Iluminismo, serviu para colocar em evidência que os recém-lançados direitos do homem deixavam de lado a mulher. A essa onda pertencem obras como a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olimpia de Gouges, publicada em resposta à a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, que negava às mulheres a condição de cidadãs e direitos tão básicos como o voto, a educação ou o trabalho. Na Inglaterra, Mary Wollstonecraftt publicava também sua Reivindicação dos direitos da mulher.

A onda seguinte, que a tradição anglo-saxã considera como a primeira, se produziu nos finais do século XIX e em princípios dos século XX. Foi protagonizada, sobretudo, pelo movimento das sufragistas e sua reivindicação de direito ao voto feminino. Depois de algumas décadas de avanço progressivo em todos os âmbitos da vida pública e privada, o auge dos fascismos em boa parte da Europa foi um importante freio e um retrocesso para milhões de mulheres.

Questionando os pilares do sistema

A terceira onda do feminismo (que é a segunda para as anglo-saxãs) começou entre os anos 60 e 70 do século passado e é considerada por muitos como uma onda de feminismo radical. Um movimento que se viu estimulado por obras fundamentais do pensamento como O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, ou A mística da feminina, de Betty Friedan. A luta pelos direitos da mulher começa, por fim, a questionar os pilares do sistema patriarcal, incindindo em todas as suas manifestações: desde a violência sexual até os estereótipos sobre o que é ou não é feminino.

A frase mais emblemática dessa etapa é a de que “o privado é político”, que enfatiza a necessidade de ter poder político real para poder mudar as estruturas que perpetuavam a discriminação da mulher. O avanço não é, no entanto, linear. “A cada onda segue uma reação do patriarcado que é, às vezes, fonte de outra reação feminista – e assim sucessivamente”, explica a filósofa e professora da Universidade Complutense, Luisa Posada. Uma dinâmica na qual, depois de se conseguir avanços importantes, às vezes se produzem retrocessos e perdas de direitos que já se consideravam adquiridos.

Como explica graficamente Cristina Sánchez, filósofa e diretora do Instituto Universitário de Estudos da Mulher da Universidade Autônoma de Madri, as onda “se caracterizam por atirar, como pedras que na lagoa provocam ondas expansivas, novas demandas no espaço público, que provocam por sua vez ações – e também reações”.

Para a especialista, as reações aos avanços de mulheres com as quais o patriarcado contra-ataca costumam ter um mesmo padrão de comportamento: “O negacionismo das questões; reações violentas, tanto no terreno simbólico como no discurso político e social; a criação de imaginários e discursos que alertam sobre os perigos e desordem que supõem as demandas feministas em termos de destruição da ordem patriarcal”.

O romantismo, Doris Day e os hormônios

Muitas destas reações são tão sutis que se tornam difíceis de identificar. Rosa Cobo, teórica feminista e professora de Sociologia da Universidade de A Coruña, detalha algumas delas: “Depois da primeira onda do feminismo iluminista surgiu o Romantismo, a misoginia romântica. A resposta a segunda onda foi uma psicoanálise, como assinala Kate Miller. A reação a terceira onda foram Doris Day, Grace Kelly e a publicidade que reforçava o estereotipo da mulher perfeita que prefere ficar em casa”.

Doris Day, atriz e cantora estadunidense. “A reação a terceira onda foram Doris Day, Grace Kelly e a publicidade que reforçava o estereotipo da mulher perfeita que prefere ficar em casa”.

“A reação patriarcal que temos tido tem sido duríssima”, assinala Cobo. “A publicidade, a conversão da prostituição em um negócio internacional, a ideologia que gera a mercantilização e a coisificação dos corpos das mulheres. Acredito que tudo isso formou parte da reação patriarcal e do neocapitalismo do século XXI: a prostituição, as barrigas de aluguel… e acredito que isso é uma afirmação amplamente aceita, independentemente se você é abolicionista ou regulacionista”.

A historiadora da Universidade do País Vasco, Nerea Aresti, destaca como o movimento sufragista não só trouxe consigo campanhas de rechaço frontal ao voto feminino, mas também fez ressurgir muitas teorias misóginas. Algumas criadas no sagrado nome da ciência. “No princípio do século XX surgem teorias que defendem a inferioridade da mulher com argumentos científicos e empíricos de todo tipo. Utilizaram argumentos retirados da craniologia, da endocrinologia e da neurologia. Ideias encaminhadas para demonstrar que o organismo, o corpo e o cérebro das mulheres são inferiores por natureza. Argumentos usados em nome da ciência e que penetravam no debate público”. No meio desse movimento constante de ação e reação, podemos afirmar que estamos na quarta onda? Segundo Posada, sem dúvida estamos. “Se vê isso no movimento MeToo, nas mobilizações contra a sentença de La Manada, na Argentina pelo aborto, nas marchas contra Trump e Bolsonaro, nos cordões de mulheres na Índia, no feminismo africano, que está muito ativo em Uganda ou em Burquina Faso…” Uma onda que, na opinião da filósofa, tem características muito específicas. “É uma onda que foi ativada contra a violência, que aglutina de maneira especial a muitas jovens e que tem um caráter transnacional, próprio do momento de globalização em que vivemos. Não me refiro só à violência sexual, mas também à desigualdade econômica e trabalhista, a não redistribuição de cuidados, a pornografia, às barrigas de aluguel, a prostituição. Essas são as coisas especificas contra a qual a onda se levantou”, explica Posada.

Para Nerea Aresti, não é realmente tão importante determinar se estamos ou não diante de uma nova onda. “O que sim está claro é que estamos diante de um ressurgimento do feminismo que não ocorria há anos”. Segundo Aresti, diante dos avanços dos anos 70 e 80, “parecia que se havia conquistado importantes níveis de igualdade. Na Espanha, diante do franquismo, se conquistaram mudanças legislativas, sociais e de mentalidade que levaram muitas pessoas a pensar que o feminismo havia deixado de ter sentido. Além disso, o feminismo não foi a causa ou o motivo dessas mudanças. Para muitas jovens, essas mudanças pareciam somente frutos de uma evolução progressiva para a igualdade e não o resultado de uma luta”.

O feminismo domesticado dos anos 80 e 90

A feminista e antropóloga argentina Andrea D’Atri incide também nesses pontos ao analisar os anos 80 e 90. “Houve uma política por parte dos regimes de incorporar demandas levantadas nos anos 70, mas retirando os aspectos mais subversivos ou radicalizados e incorporando o feminismo às instituições do regime. É quando nascem os institutos da mulher, os departamentos de gênero das instituições do Estado ou as grandes instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional. Se cria assim o que algumas feministas definem como uma tecnocracia de gênero”.

O questionamento dessa falsa sensação de igualdade e da perda de radicalidade junto a uma virulenta reação do patriarcado são, para muitas especialistas, alguns dos elementos que explicam o surgimento dessa nova onda. Para Aresti existem dois fatores essenciais que acabaram com essa ilusão de igualdade: a violência sexual e a violência econômica, agravada notavelmente com a crise que eclodiu no ano de 2008.

Para Cristina Sánchez está claro que estamos assistindo a um movimento social transformador que, mais que rótulos, pressupõe um “salto qualitativo na presença massiva de um movimento intergeracional, internacionalista e interclassista que, em todas as partes, em quase todos os países, enfrenta o status quo patriarcal, tornando visíveis os pilares em que se sustenta: a violência e a exclusão das mulheres dos lugares de tomada de decisões”.

“Neste caso, já faz alguns anos que estamos vivendo o surgimento em muitos países de movimento de mulheres que reivindicam seus direitos, seu lugar na vida social e política ou uma justiça que as escute e acredite nelas”.

A pesquisadora Cecilia Cienfuegos concorda que assistimos a uma momento de “efervescência feminista”, mas alerta sobre o fato de que apresentar esse movimento em forma de ondas pode ser contraproducente. “Essa ideia de onda tende a ser simplificadora e busca uma uniformidade que não existe no feminismo em geral. E é saudável que não exista”. Cienfuegos explica que quem coloca nome e número às onda é quem controla o discurso dominante em cada momento. “Como temos nomeado essas onda corresponde a uma história que é eminentemente branca e ocidental”, destaca.

Identificar cada onda com a conquista de um direito específico supõe também “como se fosse um objetivo único. O direito ao voto, modificar a lei do aborto… Uma vez conseguido esse direito, que mais querem? Pode ter um efeito desmobilizador. Implica também uma ideia de ruptura, como se rompesse com a anterior e fechasse os debates que vieram antes”, acrescenta Cienfuegos.

Enfrentar o neoliberalismo

Um dos elementos que mais caracteriza essa onda do feminismo é a crítica feroz a um modelo capitalista neoliberal que se sustenta firmemente sobre os pilares do patriarcado. Para que o sistema funcione, uma condição necessária é contar com o trabalho não-remunerado de milhares de mulheres e meninas. Mulheres que também ocupam os empregos mais precários, inseguros e com pior remuneração. A cara mais machista do capitalismo tem aflorado com força depois da crise que estourou há dez anos atrás e que trouxe consigo mais precarização do emprego, sobretudo o feminino, e cortes significativos no gasto social que, sistematicamente, resultam em menos apoio e mais trabalho e responsabilidade para as mulheres.

Segundo Posada, “muitas jovens estão chegando ao anticapitalismo através do feminismo, não através de outras teorias políticas como ocorria há algumas décadas atrás. Então, introduzir o tema do feminismo é muito complicado na esquerda. Mas essas jovens estão chegando ao anticapitalismo ou ao antineoliberalismo através do sentimento de que são tratadas como mercadorias”.

Nesse contexto, alguns movimentos feministas muito ligados às lutas de classes que surgiram com força na década de 60 e 70 do século passado, e que durante décadas pareciam estar em silêncio, ressurgiram com força. É o caso do chamado feminismo 99%, nascido no calor do movimento Ocupy Wall Street, no Estados Unidos. Uma de suas representantes máximas, Nancy Fraser, afirma que durante as últimas décadas o feminismo tomou um rumo neoliberal e manteve com ele um flerte perigoso.

Conforme descreve Fraser, o feminismo renunciou a uma concepção mais ampla e sólida do que significa igualdade de gênero ou igualdade social em geral, em favor da meritocracia. Ou seja, em “derrubar barreiras que permitam a um reduzido grupo de mulheres talentosas avançar a postos mais altos das organizações ao invés de abolir as hierarquias”. Esse feminismo de “teto de vidro” saltou pelos ares com o advento da crise econômica, o que evidenciou a falácia da suposta igualdade alcançada.

Não voltar para as trincheiras

Atingido esse ponto, para onde caminha o feminismo? Segundo muitas das especialistas consultadas, para uma mobilização permanente, transversal e internacional que já não se conforma em reclamar determinadas mudanças do sistema político, econômico, social e cultural, mas que questiona elementos essenciais do sistema.

Pastora Filigrana assegura que “defender os direitos conquistados vem em primeiro lugar. Mas nos conformarmos só com isso, não é possível. O sistema está nos expulsando, então vamos ter que defender o que conquistamos, conquistando mais coisas. Temos que organizar uma resistência que comece a mudar as regras do jogo”, destaca.

Para Cecilia Cienfuegos está claro que “tem que sair das trincheiras em que nos querem colocar. Tem que evitar cair na lógica de resistência e não voltar para a defesa do básico e do irrevogável. O feminismo está agora em posição de enfrentar o sistema de igual para igual e propor um projeto alternativo”.

No momento em que é frequentemente dito que o feminismo está no alvo dos neofascistas do todo o mundo, Cienfuegos aponta que “o feminismo não foi posto no centro dos ataques. Nós ganhamos essa centralidade”. E tem milhões de mulheres em todo o mundo que não estão dispostas a ceder essa centralidade que tanto custou conquistar.

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