Um apelo pela ciência da Argentina

Em carta a Milei, 68 ganhadores do Nobel defendem papel indispensável do investimento público em pesquisa. E alertam: congelamento de verbas, suspensão de bolsas e fechamento de ministério destruirão C&T do país. Leia a missiva, traduzida

Foto: Página12
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A destruição da ciência da Argentina está sendo perpetrada por Javier Milei de forma assombrosamente rápida. Menos de três meses após assumir a presidência do país, o representante da extrema-direita local acabou com o Ministério da Ciência e Tecnologia, congelou o orçamento das universidades públicas em um cenário de inflação galopante e anunciou a suspensão da concessão de milhares de bolsas de pós-graduação.

Particularmente alarmante é o esvaziamento do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas, o Conicet, uma instituição de mais de 70 anos reconhecida como o mais tradicional órgão de fomento à pesquisa da América Latina. De forma similar à Capes e ao CNPq, ele financia a maioria esmagadora das pesquisas feitas em universidades argentinas – além de manter cerca de 300 centros e institutos de pesquisa próprios, onde se pode trilhar uma carreira pública de pesquisador. A intenção de Milei, declarada na campanha eleitoral, é fechar ou privatizar o Conicet. Nestes primeiros meses, dezenas de seus funcionários foram arbitrariamente demitidos e seu orçamento também foi congelado.

Em resposta ao cenário de desmonte, 68 ganhadores de prêmios Nobel de Economia, Física, Medicina e Química escreveram uma missiva ao presidente argentino, encaminhada também para seu indicado no Conicet, alertando para os perigos de sua conduta anticiência. Eles exortam o governo a “suspender as restrições recentemente impostas às verbas do importante setor de ciência e tecnologia de seu país”.

Bem além da linguagem diplomática e moderada que poderia se esperar de um documento do tipo, a carta faz uma notável defesa do papel do Estado em contraposição ao ultraliberalismo tão em moda na atualidade. Seus firmantes postulam que “o progresso econômico e social nas sociedades modernas, bem com a criação de riquezas a partir dos recursos naturais de uma nação, estão intimamente ligados ao forte investimento público em ciência e tecnologia”, e que todos os principais avanços científicos modernos “foram consequência do apoio governamental à ciência”. Eles advertem: “sem infraestrutura própria para a ciência, um país se afunda no desespero e na vulnerabilidade” e “perde sua independência econômica”.

A carta, traduzida na íntegra por Outra Saúde, está disponível em português ao fim desta notícia.

Quarenta e cinco anos de reconhecimento de dedicação à ciência estão representados na missiva, cujas assinaturas vão do decano da carta Werner Arber, ganhador do Nobel de Medicina de 1978, a Ferenc Krausz, agraciado com o Nobel de Física de 2023, mais recente a ser concedido.

O próprio Conicet guarda uma relação histórica com o prêmio sueco: seu primeiro diretor foi o médico e pesquisador Bernardo Houssay, que em 1947 se tornou o primeiro latino-americano a ganhar um Nobel. O órgão de fomento à pesquisa surgiu em 1958, desdobrado do Conityc, antecessor com mesma finalidade, criado em 1951 pelo então presidente Juan Domingo Perón.

Por sua vez, a comunidade acadêmica da Argentina está organizando outras ações em defesa da ciência. Uma greve das universidades públicas está marcada para o dia 14 de março, com o apoio de estudantes, professores e servidores. Pesquisadores do Conicet desenvolveram um mapa interativo com manifestações contrárias aos cortes de Javier Milei enviadas por cientistas de todo o mundo, passando por Japão, Austrália, Europa e toda a América Latina. 

Em termos de repercussão internacional, a capacidade destrutiva de Javier Milei (que também está ferindo de morte a Saúde Pública argentina, como já noticiou este boletim), denunciada pelo apelo dos pesquisadores laureados, deve servir também como um renovado alerta para a comunidade científica brasileira. A resistência ao igualmente criminoso desmonte de Jair Bolsonaro na CT&I contribuiu para retirá-lo do poder – mas não nos livrou de viver suas consequências, com universidades como a UFRJ vivendo forte precarização – e riscos de paralisação das atividades –, congelamentos inesperados de verbas na Capes e políticas de incentivo ainda insuficientes para os bolsistas.

Sem imprimir um ritmo mais firme para as ações concretas (isto é, como defende a carta, o “forte investimento público em ciência e tecnologia”), podemos não aproveitar plenamente uma importante janela para o impulsionamento da ciência nacional. Apesar de desalojada do Poder Executivo, a extrema-direita não está morta enquanto força política e pode retornar para causar ainda mais estragos. 

Como lembram os 68 cientistas, um sistema de ciência e tecnologia “que leva muitos anos para ser construído”, caso seja destruído, tomará “muitos, muitos mais” para ser reconstruído.


Carta dos 68 ganhadores do prêmio Nobel em defesa da ciência argentina

Senhor presidente da República Argentina, Javier Milei,

Senhor chefe de gabinete, Nicolás Posse,

Senhor presidente do Conicet, Dr. Daniel Salamone,

Honoráveis Senadores e Deputados do Congresso Nacional,

Escrevemos a vocês com respeito e profunda preocupação. Temos assistido o sistema de ciência e tecnologia argentino aproximar-se de um perigoso precipício, e nos afligido com as consequências que essa situação possa ter para o povo argentino e para o mundo. Vemos com preocupação a eliminação do Ministério da Ciência e Tecnologia, a demissão de funcionários administrativos do Conicet e de outras instituições do país e o encerramento antecipado de muitas bolsas no próximo mês. Tememos que a Argentina esteja desistindo de seus cientistas e estudantes de ciências. Preocupamo-nos que a dramática desvalorização dos orçamentos do Conicet e das universidades nacionais reflita não apenas uma dramática desvalorização da ciência argentina, mas também uma desvalorização do povo argentino e do futuro da Argentina.

Como cientistas internacionais, muitos de nós testemunhamos as contribuições transformadoras da ciência argentina. Se não fosse pela ciência e os cientistas argentinos, as causas do câncer de pulmão e da diabetes teriam permanecido um mistério por muitas décadas. Se não fosse pela ciência e os cientistas argentinos, nos faltariam o conhecimento e a tecnologia que permitem que um país com uma pluviosidade modesta alimente tanto seu povo quanto uma boa parte do mundo. Se não fosse pela ciência e os cientistas argentinos, não possuiríamos elementos centrais de nossa compreensão do universo, do funcionamento de um simples vírus ao funcionamento do átomo. Como cidadãos do mundo, nos beneficiamos desse legado. Nos beneficiamos de nossa ainda imperfeita, mas por vezes salvadora, capacidade de diagnosticar e tratar o câncer. Nos beneficiamos dos avanços na agricultura e dos alimentos produzidos pelo solo argentino. Conhecemos muitos dos notáveis avanços que a Argentina viu por meio da história e da tradição da ciência e tecnologia argentinas. Onde estaria a Argentina – e o mundo – sem essa rica e importante história?

Desvalorizar e/ou cancelar a ciência argentina seria um erro grave. O mundo tem muitos problemas, e uma economia moderna como a da Argentina precisa ser capaz de gerar tecnologias voltadas para os problemas locais e aplicar tecnologias geradas em outros lugares para resolver problemas locais. Acreditamos que, idealmente, os países que investem em inovação científica deveriam compartilhar suas tecnologias e seus benefícios, mas seria ingênuo não perceber que um país que dependesse unicamente desse espírito coletivo rapidamente perderia sua independência econômica. Algumas questões, oportunidades e soluções são globais, e, por vezes, confiar-se no conhecimento e nos esforços de outros países pode funcionar. Contudo, muitas outras questões, oportunidades e soluções são de cunho local, regional ou nacional, e não deve haver qualquer expectativa de que investimentos e investidores de outras nações poderão prover o conhecimento e os recursos necessários para enfrentar tais questões. Sem infraestrutura própria para a ciência, um país se afunda no desespero e na vulnerabilidade, e não desenvolve sua própria tecnologia para avançar e nem prepara os indivíduos e a infraestrutura necessárias para absorver os conhecimentos científicos e tecnológicos de outros países que possam responder aos problemas regionais, nacionais e locais. Como ficaria a Argentina nessa situação?

Escrevemos com a perspectiva de que a Argentina possui uma notável base científica que pode ser ampliada, caso haja a disposição. A Argentina é o único país da região a desenvolver sua própria vacina de covid-19, construir e lançar satélites de comunicação, e projetar e construir reatores nucleares de última geração que, não só já foram exportados, como geram um estoque doméstico de radioisótopos cruciais para uso médico. Um novo laboratório de terapia de prótons, o único no Hemisfério Sul, está prestes a ser inaugurado. Um projeto multinacional liderado por cientistas argentinos da Comissão Nacional de Energia Atômica (CNEA) instalou o poderoso radiotelescópio QUBIC a uma altitude de 5 mil metros em Puna, na província de Salta. Esse telescópio explorará os primeiros milissegundos do universo após o Big Bang. A Argentina é o décimo país do mundo com mais empresas de biotecnologia, um feito impressionante que antecipa grandes avanços na medicina e na agricultura. Utilizando engenharia genética, um grupo de pesquisa com financiamento público desenvolveu variantes do trigo resistentes à seca, expandindo a fronteira de cultivo de culturas agrícolas essenciais. Cientistas da Argentina se destacam em muitas áreas, como a geologia, a paleontologia, a bioquímica, a biologia molecular, a imunologia, a ecologia, a física, a arqueologia e as ciências sociais, ambientais e atmosféricas.

Todos esses avanços foram consequência do apoio governamental à ciência. O progresso econômico e social nas sociedades modernas, bem com a criação de riquezas a partir dos recursos naturais de uma nação, estão intimamente ligados ao forte investimento público em ciência e tecnologia.

Por essas razões, respeitosamente os exortamos a suspender as restrições recentemente impostas às verbas do importante setor de ciência e tecnologia de seu país. Congelar programas de pesquisa e reduzir o número de pós-graduandos e jovens cientistas causará a destruição de um sistema que levou muitos anos para ser construído, e tomará muitos, muitos mais para ser reconstruído.

Sinceramente, 

68 vencedores do Nobel 

[N.T.: a lista completa de nomes pode ser encontrada aqui]

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