O que será dos hospitais da UFRJ?

Principal universidade do Rio decide transferir administração de três unidades hospitalares à estatal Ebserh. Comunidade questiona decisão, aprovada sob protestos: seria essa a única saída para a crise financeira dos HUs no Brasil?

Foto: Prohart/HUCFF/UFRJ
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Em reunião de seu Conselho Universitário realizada nesta segunda-feira (11/12), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aprovou a assinatura de um contrato que entrega a administração de três de seus hospitais universitários (HUs) à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, a Ebserh. Até aqui, a UFRJ era a última instituição federal de ensino superior do país a não passar a gestão de suas unidades hospitalares a esta ou outras empresas públicas e privadas.

A sessão do Consuni que aprovou a medida aconteceu em contexto de tensão. A reitoria decidiu fazê-la online, após cancelar uma reunião anterior, no dia 6/12, em resposta aos protestos da comunidade universitária contra a concessão dos hospitais. Além dessa manobra, estudantes e trabalhadores da UFRJ questionam o tempo reduzido de debate – bem como a falta de uma consulta pública e da apresentação do contrato a ser assinado com a empresa, entre outras medidas de transparência e democracia. Seus representantes no Consuni votaram contra a concessão dos hospitais à Ebserh.

Passar os HUs às mãos da Ebserh não chega a ser propriamente uma privatização ou concessão: trata-se de uma “empresa pública de direito privado” que responde, em última instância, ao governo federal. Mas seus funcionários já não serão contratados por meio do regime conhecido como RJU, próprio dos servidores públicos, e sim pela CLT. A própria autonomia universitária, necessária para conduzir as atividades de ensino, pesquisa e extensão intrínsecas a um hospital que também é escola, também pode ficar em xeque.

O debate é complexo, já que os gestores da universidade alegam problemas financeiros que remetem a dificuldades reais vividas pelo Complexo Hospitalar da UFRJ, que coordena os nove hospitais da instituição. Esteban Crescente, coordenador-geral do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (SINTUFRJ) e Giovanna Almeida, coordenadora-geral do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ (DCE UFRJ), conversaram com Outra Saúde e apresentaram, ponto por ponto, uma perspectiva alternativa ao que consideram argumentos falhos da reitoria para justificar a entrega dos HUs à Ebserh.

Histórico de críticas

Criada em 2011 pelo governo federal para gerir os hospitais universitários com “mais eficiência e controle administrativo”, a Ebserh, vinculada ao Ministério da Educação, foi objeto de polêmica desde o início. Em cada universidade que aderiu à empresa, foram registrados protestos de setores das comunidades universitárias. O motivo, segundo Esteban: “historicamente, na visão dos movimentos populares de saúde, a saúde pública tem que ser ofertada na forma autárquica, por servidores próprios do Estado, e não pode visar o corte de custos ou ter essa forma empresarial da Ebserh”.

À época, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um parecer que considerava a lei que criou a empresa inconstitucional, por supostamente dificultar as atividades acadêmicas nos HUs e tender a transformá-los em hospitais comuns. No documento, a PGR afirma que “criou-se um híbrido funcional, sem qualquer sentido, em que técnicos administrativos poderão se sobrepor a acadêmicos altamente titulados no exercício mister que envolve preponderantemente atividades de ensino”. Nove anos depois, com a Ebserh já tendo se transformado em fato consumado nas universidades, o Supremo Tribunal Federal definiu que a lei era constitucional.

Também são questionados os números que apontam um suposto êxito da empresa. “É muito importante que a população saiba que, no intervalo de 10 anos entre 2012 e 2022, a Ebserh reduziu leitos no Brasil em 8%. Esses dados estão disponíveis no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do DataSUS. Os leitos de alta complexidade aumentaram em 25%, mas os leitos em geral reduziram em 8%”, diz o dirigente sindical. Os números podem ser conferidos na tabela a seguir, produzida pelo Jornal do SINTUFRJ.

“Isso acontece porque o SUS remunera os procedimentos, e a empresa vai atrás dos que trazem maior remuneração. Só que na universidade você tem que aprender de tudo, não só o mais complexo, e isso é ruim para a autonomia didática, para os residentes. Os fisioterapeutas e fonoaudiólogos, por exemplo, que geralmente fazem procedimentos de baixa e média complexidade, são desfavorecidos por essa forma de gestão da Ebserh”, ele opina.

“A pesquisa nessas áreas acaba desincentivada ou mesmo desmantelada. Tem relatos até de hospitais que fecharam ou restringiram seus ambulatórios de baixa complexidade”, frisa Esteban. O Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF), é um deles.

Os três hospitais escolhidos para a concessão da Ebserh são o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), o Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira (IPPMG) e a Maternidade Escola (ME). A Ebserh, segundo o coordenador-geral do SINTUFRJ, teria imposto que o contrato se restringisse inicialmente a eles. Para o sindicalista, isso aconteceu em razão de serem “os três onde os procedimentos de alta complexidade são majoritários, porque são hospitais que operam procedimentos mais complexos e de maior remuneração”.

Durante a gestão de Jair Bolsonaro, a Ebserh chegou a ser incluída na lista de empresas públicas a serem privatizadas – mas o plano não se concretizou. No governo Lula, é possível imaginar que isso não deve ocorrer. Porém, o que garante que uma futura administração de intenções neoliberais não o fará? Mais de 85% dos hospitais universitários estarão em risco de cair em mãos privadas, ameaça menos palpável caso seguissem geridos pelas próprias instituições de ensino superior.

Manobras e golpes

Os membros da comunidade universitária também questionam o que chamam de “atropelos à democracia” promovidos para acelerar a aprovação da Ebserh na UFRJ.

Primeiro, “a reitoria havia feito um acordo com os estudantes e os servidores de não pautar essa questão e não votar nesse ano, porque só haveria um mês de discussão, ainda por cima no final do período letivo”, relata Giovanna. Esse entendimento foi quebrado sem aviso – e foram pouquíssimas as atividades que chamassem a atenção para a importante pauta a ser votada.

Foi deixada de lado a promessa de uma consulta pública, considerada essencial para esclarecer a comunidade universitária e apresentar com mais profundidade os argumentos dos dois lados. As poucas atividades que efetivamente ocorreram “não eram debates, eram propagandas da Ebserh”, ela avalia.

Em comparação, quando a discussão de um contrato com a empresa hospitalar chegou à UFRJ pela primeira vez, em 2013, “houve mais de nove debates, audiências públicas, rodas de conversa, reuniões nos conselhos de centro”, lembra a coordenadora do DCE. Nesse contexto de maior envolvimento, bem contrastante com o atual, a concessão dos hospitais não foi aprovada.

Ao fim desse processo, a votação foi marcada para uma reunião do Conselho Universitário no dia 6/12, última terça-feira. Quando uma passeata chegou ao local, para manifestar o desacordo de estudantes, servidores técnico-administrativos e muitos dos professores com a proposta, o Consuni foi suspenso. O reitor remarcou a decisão para a segunda-feira seguinte – dessa vez, para uma sessão online, imune à pressão democrática.

No espaço virtual que consumou a medida, outra série de problemas. Os pareceres contrários ao do relator da Comissão de Desenvolvimento da UFRJ (este, favorável à Ebserh, e apresentado de forma relâmpago até para os membros da Comissão) foram lidos, mas não debatidos, e a votação foi feita de forma fechada, sem que os votos dos conselheiros se tornassem públicos. “Votou-se de maneira secreta um tema extremamente sensível para a comunidade acadêmica, no qual as pessoas tinham que ter direito de saber como seus representantes votaram sobre aquele assunto”, aponta a estudante carioca.

Um último ponto questionado é o fato de que o contrato não foi nem mesmo disponibilizado para apreciação – apenas uma minuta genérica de seus pontos principais. “Como se faz um parecer favorável a um contrato que ninguém viu?”, questiona Giovanna. Para a coordenadora-geral do DCE, o que a reitoria pediu é que se assinasse um “cheque em branco” para a introdução da Ebserh.

Dinheiro público em disputa

Também são entendidos como “cheques em branco”, por falta de sustentações concretas, os argumentos da reitoria da UFRJ em favor do processo: um deles é o de que a empresa terá mais verba para gerir com qualidade as unidades hospitalares. Mas Giovanna Almeida reitera que, se “é tudo orçamento público federal, esses recursos que supostamente vão vir para a Ebserh gerir o hospital poderiam estar vindo para que a universidade fizesse o gerenciamento enquanto autarquia federal, de maneira autônoma e democrática”. 

“O orçamento que cresceu da Ebserh nos últimos anos foi basicamente para ela pagar o crescimento da força de trabalho, não para investimentos nos hospitais, não para construir coisas novas ou comprar equipamentos”, adiciona Esteban.

Essa mesma força de trabalho, como apontam os dados do CNES/DataSUS expostos nos quadros acima e abaixo, vive uma situação menos estável que os servidores públicos em geral. Isso porque não são contratados por meio do Regime Jurídico Único (RJU), que rege as relações trabalhistas do serviço público, mas por meio da CLT. Caíram em 11% e 26% os números de enfermeiros e médicos estatutários da Ebserh nos últimos 10 anos – e seus substitutos podem ser demitidos com maior facilidade. Na empresa, as insatisfações salariais chegaram ao ponto de uma greve nacional de 9 dias em 2022.

A bem da verdade, as unidades que fazem parte do Complexo Hospitalar da UFRJ não vivem hoje um cenário de plena garantia de direitos a seus funcionários: abundam os chamados “extra-quadro” (mais de 900, alguns com mais de 30 anos nessa situação), trabalhadores ainda mais precários. Mas, na visão de Giovanna e Esteban, o que falta é simplesmente orçamento para que a universidade reponha seus quadros. 

Como aponta o infográfico a seguir, de fato, os recursos da universidade têm sido reduzidos ano após ano, problema que o sindicalista do SINTUFRJ opina que “piorou muito nos anos Temer e Bolsonaro, a ponto de vir uma chantagem dizendo que, se não adotasse a Ebserh, não teria verba”.

O reitor até alega que R$80 milhões seriam liberados do orçamento da UFRJ caso os três hospitais sejam concedidos – e, assim, parte da “crise orçamentária” seria resolvida. Porém, para Esteban, essa conta “só existe no mundo das ideias”. Giovanna, no mesmo sentido, afirma que, ao divulgar esse número, “a reitoria não tem provas, mas tem convicção”. De fato, nada garante que o Orçamento da União, cada vez mais disputado, não redirecione essas futuras verbas para a Ebserh, já que a universidade não teria mais essa responsabilidade com os hospitais.

Em um cenário em que, mesmo após a derrubada de um governo ultraliberal de tinturas fascistas, as concessões e privatizações seguem avançando, os estudantes e trabalhadores se põem em alerta. “É uma guerra de escassez, em que se impõe a retirada de recursos e o fim dos concursos, e aí se mina a capacidade dos hospitais até que se aceite a Ebserh”, denuncia Esteban.

No sentido contrário, ele lembra que “a pandemia mostrou que, com os recursos suplementares da saúde, o hospital produziu muito”. A solução proposta pelo trabalhador e pela discente não é mirabolante: o que pode revitalizar o Complexo Hospitalar da UFRJ sem infringir a autonomia universitária, eles dizem, é um pacote expressivo de concursos públicos que valorizem os servidores e garantam o bom funcionamento das unidades.

“É preciso fazer um debate sério com a sociedade sobre essas questões de eficiência e defesa do serviço público. Saúde não pode ser mercadoria”, conclui o sindicalista.

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