Poderiam os pós-graduandos acessar a previdência?

São estudantes ou trabalhadores? Cientistas da pós vivem limbo – e sua saúde física e mental sofre as consequências. Para a ANPG, saída é ampliar cobertura social: campanha da entidade reivindica direitos previdenciários para pesquisadores

Foto: Rede Brasil Atual
.

Hoje, eles são cerca de 320 mil mestrandos e doutorandos. Estão divididos em mais de 4,5 mil programas de pós-graduação stricto sensu. Fazem 90% da ciência nacional. Mas, para isso, pouco recebem, mesmo com o aumento das bolsas anunciado pelo governo federal no início do ano – e além disso, não contam com quase nenhum direito garantido. 

“Não somos vistos como estudantes pelas universidades, já que não conseguimos acessar as políticas de permanência, mas também não somos vistos como trabalhadores pelo governo”, relata Vinícius Soares, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), ao Outra Saúde

Dessa indefinição, decorrem outras: Como se manter morando em cidades muitas vezes distantes de sua região de origem? Como pagar as contas todos os meses? E, centralmente, como garantir boas condições de saúde em um momento tão exigente como a pós-graduação? A falta de segurança “tem pesado muito especialmente na saúde mental dos pós-graduandos”, explica o líder estudantil.

Essas não são questões, é certo, que podem se resolver com uma medida só. Mas a entidade representativa dos pós-graduandos já tem uma primeira proposta para começar a mudar esse quadro: a garantia do acesso à previdência social para os jovens cientistas. Hoje, a contribuição é facultativa. Mas, por meio de uma campanha nacional, a ANPG articula a inclusão desses “profissionais formados em educação continuada”, como define Vinícius, no Regime Geral da Previdência Social.

A ideia tem precedente no Brasil. “As pessoas que estudaram nas escolas técnicas até 1998 tinham esse tempo contado para a Previdência. Até hoje, os cadetes na escola de formação militar contam esse tempo de contribuição para sua aposentadoria”, conta o presidente. Para divulgar massivamente a proposta, foi lançado um abaixo-assinado da Campanha Nacional pelos Direitos Previdenciários dos Pós-Graduandos, impulsionada pela ANPG.

Além de facilitar a aposentadoria por contribuição, a mudança permitiria o acesso a direitos básicos como o auxílio-doença, a pensão por morte e o salário-maternidade. “Hoje, se o pós-graduando adoece por mais de 15 dias, ele não tem direito a todos os benefícios que o INSS pode oferecer”, critica Soares.

O dossiê Florestan Fernandes

Apesar de ganhar um novo impulso com a Campanha, a defesa desses direitos sociais para os pós-graduandos “é uma pauta da comunidade acadêmica e científica há quarenta anos”, relembra o presidente da ANPG. O primeiro projeto de lei a tentar implementá-los foi o PL 2405/1989, apresentado por Florestan Fernandes, à época exercendo mandato de deputado federal pelo PT de São Paulo.

Homenageando o sociólogo, a ANPG lançou na 75ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), em julho, o Dossiê Florestan Fernandes: Pós–graduação e trabalho no Brasil, que pode ser acessado na íntegra neste link. Nele, estão compiladas referências sobre a atual situação dos pós-graduandos no país – de sobrecarga, incerteza quanto ao financiamento de suas pesquisas e piora vertiginosa do bem-estar psíquico – e também uma série de medidas que podem reverter esse cenário.

No tema da saúde mental, por exemplo, o dossiê convida à reflexão sobre dados como os que surgiram do doutorado de Renata Pires Corrêa, da Fiocruz, que identificou uma epidemia de diagnósticos de ansiedade e depressão entre pós-graduandos brasileiros durante a pandemia da covid-19.

A nível de propostas, o eixo de saúde do documento reivindica “a garantia de atendimento em serviços de saúde física e mental oferecidos pela instituição de ensino” e a “possibilidade de afastamento médico remunerado e sem prejuízo ao tempo de pesquisa e de prorrogação do prazo”.

Também estão presentes na lista de demandas algumas bandeiras históricas como a criação de um mecanismo de reajuste permanente das bolsas de pesquisa, o auxílio-tese e, claro, a inclusão dos pós-graduandos na previdência social, com o mestrado e o doutorado contando como tempo de serviço. A lista total pode ser encontrada nos quadros abaixo.

Somando todos esses pontos, o dossiê propõe a criação de uma “cesta de direitos” dos pós-graduandos, “para valorizar esse setor da sociedade, que é estratégico para o desenvolvimento nacional”, explica Vinícius.

Múltiplas vulnerabilidades

Questionado sobre que outras proposições o movimento de pós-graduandos já formulou para a garantia da saúde dos cientistas, o presidente da ANPG esclareceu que seguem no radar da entidade uma série de questões que afetam segmentos específicos dos pós-graduandos.

Uma delas é a atual impossibilidade de receber adicional de insalubridade ou periculosidade por parte dos pesquisadores que realizam estudos em laboratório que envolvem materiais potencialmente nocivos à saúde.

“Os professores recebem adicional de insalubridade, os técnicos e servidores que trabalham ali também, mas a gente brinca que o pós-graduando deve ser alguma espécie de ET, porque ele pode estar exposto a produtos químicos perigosos e o Estado brasileiro não se responsabiliza por isso”, relata o presidente.

Outro caso que recebe atenção especial da Associação é a situação dos residentes em saúde. Hoje doutorando em saúde coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vinícius se tornou em 2022 o primeiro residente a conduzir a ANPG ao assumir sua direção quando era residente de saúde coletiva no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em Recife. Por isso, o pernambucano conhece pessoalmente esses problemas.

“Hoje, a nossa principal pauta para os residentes é que a gente acredita que existe uma carga horária muito excessiva, porque são 60 horas semanais. A gente vem pautando que haja uma redução dessa carga horária, sem a redução da bolsa, porque na nossa avaliação, essa redução não vai impactar no itinerário formativo do estudante”, explica Vinicius. 

Por conta da precarização do SUS, essas horas todas vêm servindo, na verdade, “para cobrir a ausência de profissionais nos equipamentos públicos de saúde”, ele avalia. Nas próximas semanas, a ANPG deverá lançar uma outra campanha nacional, concentrada nessa reivindicação dos residentes.

Uma luta pela reconstrução do Brasil

Nos últimos anos, o perfil do estudante de pós-graduação no Brasil mudou muito – com tendência à popularização. “Hoje, a gente precisa ainda mais de moradia, restaurante universitário, assistência e direitos”, diz Vinícius. A evasão da universidade é um risco não só para o futuro desses jovens, mas para os rumos do país, e a queda da produção científica do Brasil em 2022, no contexto de uma grande precarização da CT&I, deve ser entendida como um sinal de alerta.

Por isso, os pós-graduandos querem convencer o governo Lula e o Congresso Nacional que a garantia dos direitos previdenciários para os cientistas em início de carreira é uma “pauta necessária para a reconstrução do Brasil”. Delegações já visitaram ministérios como o da Previdência Social, do Trabalho, da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação para apresentar o dossiê da ANPG. Os diretores da entidade também marcaram presença na última reunião do Conselho Nacional de Educação para falar das reivindicações de sua categoria.

No próximo dia 14 de setembro, a ANPG participará de uma audiência pública na Comissão de Educação da Câmara de Deputados em que espera angariar visibilidade e apoio para sua reivindicação.

“A gente precisa, no mínimo, que o Estado brasileiro olhe para a nossa categoria como uma categoria importante para o desenvolvimento nacional e crie essa cesta de direitos básicos”, conclui o presidente da entidade.

Leia Também: