Um ano de avanços para jovens cientistas da saúde

Pós no Mais Médicos e reajuste de bolsas foram vitórias de 2023, avalia ANPG. Em 2024, entidade pleiteia Previdência para pós-graduandos e extensão do incentivo à formação às demais categorias da Saúde – e orçamento digno será crucial

Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp
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Dalmare Sá em entrevista a Guilherme Arruda

São muitas as importantes políticas públicas que foram retomadas ou ganharam novo impulso no ano de 2023, o primeiro após uma histórica vitória democrática contra o obscurantismo de extrema-direita na última eleição. Elas se espalham por diversas áreas – porém, na Saúde e na Ciência, são particularmente numerosas. O farmacêutico Dalmare Sá é diretor da pasta de Saúde da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), entidade representativa da categoria de pesquisadores, e enumerou ao Outra Saúde algumas das que foram mais decisivas para os que vivem hoje essa fase da formação científica. 

O incentivo à pós no novo Mais Médicos, o reajuste de 40% nas bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a inclusão dos pós-graduandos na Lei de Cotas e na Lei de Assistência Estudantil são citados por Dalmare como algumas dessas vitórias – que contaram com “grande mobilização social”, ele lembra, para se concretizarem. São reconhecimentos há muito tempo devidos para um segmento que produz 90% da ciência nacional. Porém, nem tudo já foi ganho: no ano que vem, “nós só vamos nos aquietar quando conseguirmos a Previdência para mestrandos e doutorandos”, adianta o farmacêutico.

No próximo ciclo político, a entidade pretende dar impulso à aprovação da Lei Florestan Fernandes, um projeto que prevê uma “cesta de direitos” para os pós-graduandos. Dalmare também cobra a formulação de um papel mais estratégico para os egressos da pós-graduação nos planos do país. “Queremos mestres e doutores pensando ciência no mercado de trabalho, no SUS e nas gestões públicas, não só na academia”, ele explica. Por outro lado, o baiano não deixa de ressaltar que a inclusão da Ciência e Tecnologia nas restrições orçamentárias do Arcabouço Fiscal não foi bem vista pela entidade, já que pode trazer impedimentos às aspirações de desenvolvimento nacional com justiça social.

A ANPG também levará ao governo a proposta de estender os mecanismos de formação continuada inseridos no Mais Médicos às demais categorias da Saúde – entendidas como igualmente importantes para a expansão da cobertura do sistema público. “A formação que a gente quer é no SUS e para o SUS”, defende o doutorando em Saúde Pública no Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco), frisando que a entidade pensa “que todos os profissionais [da Saúde] devem ser contemplados com essa modalidade de bolsa e esse ensino”.

De forma geral, Dalmare aplaude as importantes iniciativas de reconstrução nacional e democrática tomadas pelo governo Lula. Mas ele lembra que “não é porque está aí um governo que é mais progressista que a gente pode  descansar nesse momento, até porque o Congresso não é progressista, e quer botar orçamento em ministérios que estão controlados pelo Centrão”. Por isso, diz o farmacêutico, “é preciso existir, dia e noite, vigilância”.

Fique agora com a íntegra da entrevista de Dalmare Sá, farmacêutico, doutorando em Saúde Pública e diretor de Saúde da ANPG a Outra Saúde.


Outra Saúde: Nesse primeiro ano de governo do Lula, quais diferenças já podem ser sentidas em relação à gestão Bolsonaro nos âmbitos de ciência e saúde?

A gente já iniciou o ano com algo muito forte. Quando a ministra [Nísia Trindade, da Saúde], já em sua posse no dia 2 de janeiro, fala que a gente vai produzir no Brasil 70% do que se usa no SUS, ela valoriza a ciência e coloca a questão do complexo econômico-industrial da saúde em outro patamar. E como é que a gente vai produzir isso? A partir de ciência e tecnologia, então temos que aumentar a pesquisa, aumentar a produção. Acho que esse é o ponto principal. 

Temos, por um lado, a volta da valorização da ciência dentro da saúde e, do outro, uma saúde de fato voltada para as necessidades da população. Um ponto crucial disso é o fortalecimento da campanha de vacinação. Não alcançamos todas as metas de imunização ainda, mas estamos voltando a alcançá-las porque a gente tem essa questão mesmo de ter validação científica dentro do Ministério da Saúde – a própria ministra é uma pesquisadora respeitada na área da saúde, vem da Fiocruz. Para mim, essa é a maior diferença de todas: desde o segundo dia de gestão, ter essa sinalização da valorização da ciência. Hoje, se faz política baseado em pesquisa e estudo, não em achismos ou ideias conservadoras ou coisa do tipo.

Queria repassar com você agora alguns dos anúncios do MS e do MCTI no último ano. Um deles, na retomada do programa Mais Médicos é a concessão de bolsas de pós-graduação para os participantes do programa seguirem a sua formação. Como que a ANPG vê essa proposta?

Nós chegamos a debater com a Saps [Secretaria de Atenção Primária em Saúde do MS] essa questão. Eu, pessoalmente, achei fantástico. Para fixar o médico, o Ministério está falando: “não é só dinheiro que nós vamos te dar, não é só a estrutura para morar no local”. A proposta de captação dos médicos inclui agora dois anos iniciais de residência em Saúde da Família e mais dois anos de mestrado profissional. Estão utilizando a estratégia da pós-graduação como atrativo de fixação.

O que a gente pauta com o Ministério é que isso se estenda a outros profissionais, não fique só no Mais Médicos. Queremos que as demais categorias da Saúde possam ter a mesma expectativa de pós-graduação e formação dentro do Sistema Único de Saúde. A formação que a gente quer é no SUS e para o SUS, que não se restrinja à residência.  Ou seja, a gente trata como um avanço, mas queremos que avance mais. A saúde não é feita só com médicos, de forma médico-centrada. Claro que sabemos que existia um grande déficit de médicos em regiões mais afastadas do Brasil, um problema de concentração em grandes centros, mas pensamos que todos os profissionais devem ser contemplados com essa modalidade de bolsa e esse ensino.

Outro anúncio que ocorreu foi o do aumento das bolsas da Capes no início do ano, que reajustaram valores congelados já há algum tempo. Por outro lado, em agosto, aconteceu um contingenciamento das verbas para Ciência e Tecnologia. Como você vê essa disputa de orçamento? Ela deixa insegura, em algum nível, a valorização do pesquisador?

O aumento das bolsas da Capes foi a principal pauta da ANPG na eleição do ano passado. A gente batalhou muito e foi ganhando força na comunidade científica. Esse aumento não é tudo o que a gente queria, mas é  óbvio que é algo importante e que a gente considera um avanço. Também pensamos assim sobre a portaria lançada pela Capes que permite a acumulação das bolsas. São dois grandes avanços. Na verdade, hoje, a Capes tem um diálogo muito aberto hoje com as entidades estudantis, inclusive a ANPG.

Sobre a disputa de orçamento, por um lado, a gente tem que entender que o Poder Executivo é só uma parte do Estado. O Legislativo pressiona muito para que outras áreas também tenham orçamento. Mas a gente pressionou em todos os momentos para que esses recursos não ficassem contingenciados, porque já é um orçamento muito pequeno. A grande realidade é que o orçamento da Ciência e Tecnologia ficou comprimido nos últimos anos. 

Inclusive, a gente também batalhou muito para que a Ciência e Tecnologia ficasse de fora da meta fiscal. É uma grande luta da ANPG tirar isso da meta fiscal, porque investir em tecnologia é investir no Brasil, investir no nosso futuro. [N. E.: O formato final do Arcabouço Fiscal aprovado no Congresso manteve a Ciência e Tecnologia dentro da meta, limitando seus recursos]

É preciso existir, dia e noite, a vigilância. Não é porque está aí um governo que é mais progressista que a gente pode  descansar nesse momento, até porque o Congresso não é progressista, e o Congresso quer botar orçamento em ministérios que estão controlados pelo Centrão. Além disso, o governo ainda tem esse caráter de composição, de coalizão. Mas, no geral, há um direcionamento de valorização dos cientistas. Ele demonstra isso: o próprio anúncio das bolsas foi feito logo no início do ano, em fevereiro. E foi depois de 10 anos! O último governo a reajustar as bolsas tinha sido o da Dilma. A sinalização é clara do governo. Agora, as tensões vão existir e nós temos que estar alertas.

E a relação da ANPG com o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação hoje? Que nível de abertura as instituições têm com relação à entidade de pós-graduandos?

A abertura é total. O diálogo é muito aberto. No caso do Ministério da Saúde, a ministra esteve com a gente em alguns eventos nossos. A gente fez uma Conferência Livre de Juventude e Saúde no Rio de Janeiro no início do ano, dentro do Festival dos Estudantes, que é a antiga Bienal da UNE, e a ministra esteve presente. Temos diálogo tanto com a própria ministra quanto com os secretários.

No caso da Ciência e Tecnologia, a ministra já nos recebeu algumas vezes para debates. Recentemente, a gente realizou aqui em Recife, onde eu moro, o Conselho de Entidades de Associações de Pós-Graduandos (CONAP) e pudemos contar com a presença do Ministério da Ciência e Tecnologia. Nós temos debatido muito com o Ministério a valorização dos cientistas, em especial a questão da previdência dos pós-graduandos, que é a nossa grande bandeira. Nossa grande pauta para a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia do ano que vem é batalhar para ter apoio para fazer a Previdência para os pós-graduandos, para os mestrandos e doutorandos. Essa vai ser a nossa grande bandeira de luta no próximo período. Já está sendo, na verdade, estamos focando muito nisso. Seguiremos lutando também por mais reajustes, mas esse vai ser o grande mote. 

Temos muito diálogo também com a Capes. A Mercedes [Bustamante], que é a presidente da Capes, tem constantemente ido às nossas reuniões de diretoria da ANPG, dialogado, indicado quem a gente pode procurar. A Capes tem pensado grandes avanços em relação aos direitos dos pós-graduandos nesse momento, tem se importado com isso muito fortemente.

No meio de 2023, houve a Conferência Nacional de Saúde, e está prevista para 2024 a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. A ANPG interviu na CNS? Com que bandeiras vai intervir na CNCTI?

Historicamente, das três entidades estudantis, a ANPG é a que mais se mobiliza para a Conferência Nacional de Saúde. Depois a UNE veio e agora a Ubes está vindo, tanto para o Conselho Nacional de Saúde quanto para a Conferência. 

Nós fomos como uma delegação organizada para a  Conferência Nacional de Saúde, levando vários pós-graduandos. Eu mesmo estava em uma das comissões organizadoras da Conferência, junto com o nosso conselheiro nacional de saúde, o João. Nesse processo, além de organizar espaços para os pós-graduandos conversarem e levar residentes, também participamos ativamente das conferências livres que elegem delegados para a Conferência Nacional de Saúde. Estivemos lá de uma maneira muito ativa, nos dividindo entre quem estava lá, sempre encontrando mais residentes, mestrandos, doutorandos – quem a gente pôde levar para a conferência, a gente levou. 

Para a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, a gente está preparando algumas coisas. Primeiro, a gente quer organizar algum tipo de conferência livre, que nos prepare para ir e eleja delegados para ir à Conferência. Lá, nós vamos intervir sempre pensando no desenvolvimento nacional. A ANPG é uma entidade que tem responsabilidade com o Brasil, então a gente vai para a Conferência pensando qual é o tipo de país que a gente quer a partir de desenvolvimento científico e tecnológico – mas sem perder a bandeira de luta que é a defesa dos pós-graduandos, dos pesquisadores e dos seus direitos. Vale lembrar que a ANPG representa não só os pós-graduandos de uma forma direta, como os residentes, mestrandos e doutorandos, mas também os pós-doutorandos. Isto é, a gente luta pelos direitos dos pesquisadores de uma maneira mais geral.

A conta-gotas ao longo do ano, o governo fez muitos anúncios e declarações de intenções, ainda que não muitas medidas concretas, no sentido de expandir o complexo econômico-industrial da saúde, fortalecer a indústria farmacêutica nacional e reindustrializar o Brasil. Que perspectivas isso abre para o pesquisador em formação? Como isso se alinha com o projeto de país que você estava falando que a ANPG defende?

Eu acho que o complexo é um ponto crucial. Nós precisamos dele, porque temos um Sistema Único de Saúde que atende a 75% de uma população de 200 milhões de pessoas e é preciso incentivar um consumo interno forte. Queremos que, o que o SUS puder, seja comprado do Brasil, para que isso traga riqueza para nós mesmos. Mas, para além dele, outras estratégias têm sido lançadas.

A mesma secretaria que coordena o Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GECEIS), que é a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (SECTICS), do Carlos Gadelha, lançou um pouco antes, em julho, uma série de editais para financiamento de pesquisas voltadas para o que a Saúde precisa – trabalhos sociais, básicos. São editais que trazem um financiamento amplo que nunca mais tinha acontecido. E não só eles: além da SECTICS, também estão saindo lançamentos da Saps com oportunidades para pesquisadores.  Ou seja, a nosso ver, o ministério da Saúde tem feito editais para ir atrás de ciência e tecnologia.

No aspecto de traçar metas, está surgindo uma lógica diferente. Antes, o pesquisador buscava financiamento para fazer o que queria. Agora, o Ministério tem feito muito isso de propor algo e convidar os pesquisadores a fazerem o que está proposto. A nosso ver, isso está correto. Uma das que a gente já tem uma sinalização [de que vai ocorrer] é uma nova edição da Pesquisa Nacional de Avaliação de Uso Racional de Medicamentos (PNAUM). 

Isso para dizer que o CEIS é só um ponto – ainda que um ponto crucial. Não podemos passar mais o que passamos na pandemia, um país que não consegue produzir minimamente máscaras e respiradores no volume adequado, tendo que comprar de fora. Essa construção do CEIS vem lá de 2002, deu uma parada com o golpe e com o Bolsonaro, mas está sendo retomada em outro patamar, envolvendo três ministérios importantes, o da Saúde, o da Ciência e Tecnologia e o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Inclusive, estão em consulta pública agora os itens e as parcerias público-privadas que serão prioritárias, o que demonstra a ampliação desse diálogo com a sociedade e a gente está buscando opinar no que será feito.

Até aqui, conversamos mais sobre as questões ligadas a medidas e eventos do governo. Mas e as lutas da ANPG? Em que embates os pós-graduandos se envolveram em 2023?

Nós iniciamos o ano nos centrando muito fortemente na campanha pelo reajuste das bolsas. Foi a nossa principal bandeira. Conseguindo isso, nós tivemos duas grandes lutas que foram vencidas aos poucos. A primeira foi a inclusão da pós-graduação na Lei de Cotas, que foi sancionada recentemente. Pela primeira vez, haverá cotas nos processos de seleção. Outra foi a inclusão dos pós-graduandos na Lei de Assistência Estudantil

Já para o próximo período, nós só vamos nos aquietar quando conseguirmos a Previdência para mestrandos e doutorandos. Não achamos justo que essas pessoas passem pelo menos seis anos da vida sem poder contribuir com o sistema previdenciário, sem ter direito a nada, sendo que elas contribuem com 90% da ciência do Brasil.

Além disso, queremos um novo reajuste nas bolsas no ano que vem. A ANPG calcula que [para reparar as perdas] era necessário um reajuste de 70%, acabou acontecendo um de 40% em 2023, mas nós ainda precisamos dos outros 30%. Não desconsideramos que já foi uma grande vitória – principalmente para quem acabava tendo que usar todo o dinheiro das bolsas para pagar as contas e comer. Mas é muito importante retomar tudo o que nos foi tirado.

No Congresso Nacional, nós estamos pautando a Lei Florestan Fernandes, uma legislação que vai trazer um mecanismo de reajuste anual. Ela não vai abarcar só isso, vai trazer uma “cesta de direitos dos pós-graduandos”, como nós chamamos, mas também vai incluir esse reajuste. O nome vem do fato de que o primeiro projeto a propor algo nesse sentido foi feito pelo Florestan quando ele era deputado federal, em 1989. Estamos tentando fazer essa lei avançar nesse ano para garantir essa cesta de direitos já em 2024.

Que perspectivas a ANPG está traçando para as lutas da ciência e da saúde do ano que vem?

Acho que é muito importante a gente ter uma noção do quanto as eleições e as mudanças de governo são importantes para a realidade nacional. Ter um país que consegue avançar e caminhar de uma maneira prudente a partir da mobilização social – porque a eleição do Lula foi uma grande mobilização social – é importantíssimo. Não se pode perder de vista o quanto as eleições de 2024 também vão ser importantes para ampliar essa mobilização social, para ampliar direitos, para ampliar a qualidade de vida da nossa população. 

Na ANPG, nós  sempre fazemos um debate muito sério em relação a isso, principalmente nas capitais. Não que isso não seja importante nos interiores, mas as capitais têm muito mais aporte de ciência e tecnologia, e é importante que sejam eleitas pessoas comprometidas com essas pautas. Nessa luta, no ano que vem, atualizar a plataforma eleitoral da ANPG vai ser muito importante, pensando agora na municipalidade: como os municípios podem ser desenvolvidos cientificamente, como eles podem financiar a ciência, como buscar soluções científicas para os seus problemas a partir de editais… 

Aqui no Recife temos algumas pesquisas financiadas pelo município, e temos dialogado com a prefeitura no sentido de isso acontecer mais. Não pode passar só pelos ministérios, as cidades podem fazer isso também. A solução para o número de casas abandonadas ou do problema das enchentes no Recife pode passar por editais de financiamento de ciência e tecnologia municipal.

Na ANPG, nós queremos que se formem cada vez mais pós-graduandos brasileiros e que nós cheguemos às taxas de mestres e doutores dos países desenvolvidos, mas nós não acreditamos que eles só podem ir para a academia. Queremos mestres e doutores pensando ciência no mercado de trabalho, no SUS, nas gestões públicas, não só na academia. Os egressos da pós-graduação precisam ser inseridos nesses espaços. É importantíssimo para o desenvolvimento nacional que a gente tenha gente com pensamento científico gerindo as nossas cidades.

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