Ciência, chave para uma nova industrialização

Conferência Nacional de Ciência & Tecnologia, que acontece em junho, está sendo construída Brasil afora. Há otimismo com uma possível virada de chave do governo, que pode impulsionar a superação da dependência externa. E a Saúde terá papel central

Foto: Sabrina Bracher
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Ainda orientado pelo sentido de “reconstrução”, o governo federal deu início à agenda de atividades e encontros que culminarão na Conferência Nacional de Ciências Tecnologia e Inovação – por um Brasil justo, solidário e desenvolvido, a ser realizada em Brasília entre os dias 4 e 6 de junho. Na esteira de conferência municipais e estaduais, a capital abrigou nesta semana uma Conferência Livre e uma temática. Aberto a contribuições de grupos diversos, além da própria comunidade científica, o encontro nacional pretende oferecer condições de representar mais do que um mero rito institucional, apresentando alternativas reais.

“Existe um processo de grande mobilização nacional que tem à frente o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTi), além de institutos como o CNPq e a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. E há a sociedade como um todo, os pesquisadores, quem têm compromisso com a ciência. É um grande processo de mobilização para discutir a nova estratégia de ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Essa é a grande marca da 5ª Conferência: estabelecer uma estratégia nacional, com contribuições definidas dos pesquisadores, dos atores na área da pesquisa e da ciência, mas também da sociedade”, explicou Julieta Palmeira, médica e assessora da Finep, um dos braços principais do Ministério.

Nesse sentido, as conferências livres, uma novidade em relação às edições anteriores, sinalizou a envergadura da mobilização e sua compreensão histórica. Além de importantes nomes do MCTI e da máquina de governo, uma boa quantidade de pesquisadores, professores e cientistas marcou presença, mesmo a distância, na transmissão online do evento.

“Foi um debate muito rico deste novo momento do Brasil, onde se entende que a ciência e a tecnologia precisam ser instrumentos para aperfeiçoamento da democracia, principalmente a partir das possibilidades que se abrem de participação social em diversos espaços, algo colocado pelo presidente Lula como método de governo e que precisa ganhar os territórios”, comemorou Ronald Santos, farmacêutico e coordenador da Secretaria Nacional de Participação Social, que mediou o evento.

Fechar a ferida do bolsonarismo

É impossível falar dessa Conferência sem observar o trauma deixado pelo bolsonarismo em toda a comunidade científica brasileira. Além do negacionismo, parte mais escandalosa do ultraconservadorismo que tomou de assalto o Estado brasileiro, os anos de Bolsonaro na presidência foram marcados por um desmonte metódico do financiamento da universidade e consequentemente da pesquisa. O desfinanciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT) para garantir mais verbas ao chamado orçamento secreto, instrumento que de fato garantiu a impunidade dos múltiplos crimes do ex-presidente, jamais será esquecido por quem o viveu na pele.

“Há um clima de mobilização nacional, porque com a retomada do governo federal há uma perspectiva de compromisso com a ciência. O negacionismo ainda tem seus focos em determinadas áreas, mas vejo a comunidade científica com grande intenção de participação para definir as diretrizes de uma estratégia nacional de ciência, tecnologia e inovação. A participação dos pesquisadores e cientistas avançou bastante. Também há nesse clima fatores de uma grande expectativa em relação ao financiamento”, analisou Julieta Palmeira.

Isso é, para além de superar o legado bolsonarista de desmonte do Estado e obscurantismo ideológico, a Conferência de junho será balizadora do papel que o MCTi desempenhará. Como explicou Julieta, não só se definirá os projetos principais a serem incentivados pelo ministério de Luciana Santos até o fim do mandato de Lula. Também se delineará políticas estruturantes, conforme definidas no Novo PAC e na chamada “Nova Industrialização”, o coração da política desenvolvimentista apresentada pelo governo federal. 

“Nós todos sabemos que a inovação é algo decisivo para a soberania nacional e o desenvolvimento brasileiro. Com a ampliação dos financiamentos do FNDCT, com o próprio lançamento do programa Nova Indústria, abarcando diversas áreas, como transição energética, saúde, da inteligência artificial, bioeconomia, mobilidade urbana, gerou-se uma grande mobilização”, disse Julieta.

Como se vê, seu discurso está diretamente associado ao projeto macroeconômico e o novo PAC, que se divide em seis “missões”, na busca por um modelo que mitigue a dependência externa e adense as cadeias produtivas do país. Tudo com a finalidade essencial de gerar emprego e renda em grande escala.

Saúde e SUS como atores centrais

Em todos os debates das conferências que antecedem o encontro nacional de junho, a Saúde apareceu como carro chefe das propostas que serão encaminhadas pelo MCTI. Aqui, o chamado Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS) é a menina dos olhos da Conferência, ainda que temas como meio ambiente e outros ramos produtivo-industriais também tenham protagonismo.

“A Conferência Livre de Ciência, Tecnologia e Saúde revela uma grande prioridade em relação à questão dos direitos e em relação ao fortalecimento do SUS. Discutimos a perspectiva de saúde no contexto da própria ciência e tecnologia, ou seja, uma visão de ciência e tecnologia que deve estar a serviço de melhorar a qualidade de vida das pessoas e do desenvolvimento sustentável. Queremos ampliar a saúde, em especial a produção de medicamentos e insumos, assim como fortalecer a pesquisa. Queremos uma rede de interação entre pesquisa e produção. Isso porque muitas pesquisas avançam, mas não terminam virando um produto que possa ser absorvido na vida da população através de prevenções, tratamentos e inovações”, afirmou Julieta Palmeira.

Como já destacado pela ministra da Saúde Nísia Trindade, uma economia de maior base produtiva interna é chave para a chamada soberania sanitária. Na pandemia, ficou gritante o gargalo brasileiro em sua capacidade de produzir não só vacinas, como até insumos básicos, a exemplo de máscaras e equipamentos médico-hospitalares relativamente simples. O financiamento da ampliação de laboratórios estaduais e fábricas de medicamentos, a retomada do Farmácia Popular e da Hemobrás são fatos já concretos desta orientação.

“A visão do Complexo Econômico Industrial da Saúde parte da concepção de que as transformações políticas, sociais e ambientais são indissociáveis da dimensão econômica, produtiva, e da ciência, tecnologia e inovação. Nesse sentido, não há sociedade equânime e sustentável se a dimensão econômica da produção não muda. Reproduziremos o modelo de sociedade que é excludente e insustentável”, afirmou Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde (Sectics/MS), em aula especial dada na Farmanguinhos, no início de março.

A conta é simples: ao aumentar a produção interna em insumos de saúde e pelo menos diminuir a balança comercial de produtos em saúde, libera-se recursos para ampliar o financiamento do SUS, tanto em termos de estrutura como de valorização e contratação de mão de obra. Isso num contexto onde o sistema público de saúde brasileiro emprega quase 3 milhões de pessoas, o que já denota seu potencial de, simultaneamente, promover um serviço público essencial, gerar desenvolvimento econômico e integração social.

“É um projeto de desenvolvimento que busca a qualidade de vida das pessoas e tem a ver com o clima, os direitos sociais, a perspectiva de que o SUS não é um plano de saúde para pobres, mas um sistema que lida exatamente com o direito à saúde e a efetivação da democracia. A conferência é momento de entendimento da relação da saúde com a tecnologia e a inovação, com base também na garantia de direitos e do acesso ao que existe de mais avançado, a fim de melhorar a qualidade de vida”, situou Julieta, que já foi presidente da Bahia Farma, laboratório público deste estado.

Como se vê, a Conferência será um ponto de ebulição e cruzamento de diversos debates que disputam o Brasil: papel do Estado, financiamento, modelo econômico e participação social (aspecto onde o SUS é entendido como exemplo histórico). “A conferência reafirmou princípios fundamentais da articulação dessas três categorias: ciência e tecnologia, participação/democracia e saúde. São valores importantes, podemos dizer que já conseguimos, desde a promulgação da Constituição em 1988, algumas vitórias importantes. Conseguimos, em especial, afirmar uma ideia de ‘contratação’ social da técnica e da ciência, no sentido de produzir mais vida, mais direitos, mais democracia. Tenho certeza que a 5ª Conferência dará um conjunto importante de contribuições”, sintetizou Ronald Santos.

“A mobilização da comunidade científica também passa pela compreensão de que a definição de diretrizes e estratégias tem a ver também com o financiamento, porque a ciência não sobrevive sem ele. No Brasil, o financiamento da pesquisa e da ciência, de um modo geral, tem sido efetivamente do poder público. Mas ainda é insuficiente. Se inovação é decisiva para o desenvolvimento brasileiro, é preciso entendimento de que há necessidade de financiamento público do Estado brasileiro. Isso significa o fortalecimento das redes de pesquisa, da produção. No caso da saúde, estímulo aos laboratórios públicos, à indústria pública de medicamentos e insumos etc.”, completou Julieta Palmeira.

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