Cidadania científica contra o negacionismo

Governo lança programa Saúde com Ciência, para combater fake news e disseminar conhecimento, em especial entre os jovens. Big Techs e Justiça participarão do esforço. Conseguirão reverter os anos de espalhamento de mentiras?

Luara Baggi (ASCOM/MCTI)
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A terça-feira, 24/10, marcou um importante esforço conjunto entre os ministérios da Saúde, da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Justiça para transformar o combate às fake news em uma política pública. O evento realizado no Centro Internacional de Convenções de Brasília (CICB) viu as ministras Nísia Trindade e Luciana Santos, acompanhadas por Flavio Dino, lançarem o programa Saúde com Ciência, que visa organizar ações de fomento ao conhecimento desde as comunidades escolares e coibir, inclusive juridicamente, as fake news que incidam na saúde pública. O evento contou ainda com uma talvez inédita presença de representantes das principais gigantes donas das redes sociais mais usadas pelo público.

Além de uma plataforma, que contará com site próprio e materiais de divulgação científica, foi lançado o Programa Nacional de Popularização da Ciência (Pop Ciência), que converge na mesma direção e ambiciona envolver 400 mil estudantes de ensino médio na promoção de práticas que facilitem o acesso ao conhecimento científico. Por fim, ambas ministras fizeram reunião que terminou com o anúncio do investimento de R$ 1 bilhão no NB4, chamado de laboratório de máxima contenção biológica, “o primeiro da América Latina e o primeiro do mundo a ser conectado a uma fonte de luz síncrotron. Permitirá monitorar, isolar e pesquisar os agentes biológicos para desenvolver métodos de diagnóstico, vacinas e tratamentos. O fato de ser conectado ao Sírius, acelerador de partículas, representa oportunidade única para estudos de patógenos”, anunciou o MCTI.

Quanto ao programa Saúde com Ciência, em seu evidente jogo de palavras, visa reverter as tendências mapeadas de produção de desinformação. Segundo a Saúde, o programa será baseado em cinco pilares. O mais chamativo talvez seja o último, que fala explicitamente sobre responsabilização de agentes propagadores de fake news. E é neste aspecto que o poder judiciário entra em cena – não à toa estavam presentes no evento membros da Advocacia Geral da União (AGU) e Controladoria Geral da União (CGU).

“Fizemos um mapeamento que pegou 6.800 conteúdos que podem ser considerados desinformação, afetando 23 milhões de usuários. São notícias que consideramos criminosas. É papel do ministério encaminhar a órgãos da justiça casos que requerem investigação e responsabilização sobre quem mente. Dúvidas não são a mesma coisa que propagar notícias falsas”, afirmou Nísia Trindade.

Este aspecto é importante, afinal, o Brasil atravessa uma situação desconcertante: as investigações que implicam Jair Bolsonaro no roubo de joias caminham muito mais rapidamente do que a sua criminalização pela gestão da pandemia. Se a apropriação de presentes valiosos é indigna e imoral ao cargo da presidência, a sistemática desinformação praticada durante a crise sanitária ceifou centenas de milhares vidas.

“Falamos da fake news que mata. E matou muita gente na pandemia. E certamente foi decisivo para, entre outras coisas, termos o vírus do sarampo circulando novamente, a possibilidade de retorno da pólio. É a primeira vez que temos todas as plataformas de redes sociais, cada uma com sua linguagem, reunidas num esforço único de combate à desinformação”, destacou Paulo Pimenta, chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência.

No evento, Nísia voltou a enfatizar a importância da Programa Nacional de Imunizações e a convocar a sociedade a participar do esforço de retomada de níveis satisfatórios de cobertura vacinal. “O Brasil já teve certificado de erradicação de sarampo e perdeu. Só vamos recuperar grandes coberturas vacinais se combatermos a desinformação. O Instituto de Defesa da Democracia e da Democratização da Comunicação publicou pesquisa e 20% afirmaram ser verdadeira a informação de que vacina faz mais mal do que bem a crianças. A desinformação, como sempre vimos quando apareciam novas campanhas, coloca em risco a vida da população e deve ser combatida de forma drástica”, argumentou.

Por sua vez, Luciana Santos falou em fomentar a “cidadania científica”, objetivo primordial do Pop Ciência. “A faceta mais cruel do negacionismo foi na pandemia. Nosso governo baseia políticas públicas em evidência científica, como no combate à fome, preservação ambiental e emergência climática e transição energética. A ciência é instrumento de geração de valor, de inovação, de riquezas e soluções para nossos problemas. É o conhecimento que nos liberta e precisamos garantir que seja cada vez mais amplo para a população. Temos o desafio de promover letramento científico da população e queremos aproximar o conhecimento das pessoas”, discursou.

Justiça e suposta censura

Para além dos esforços dos ministérios de Nísia e Luciana, o aspecto político mais relevante do evento no CICB foi a presença de autoridades do poder judiciário, em especial aquelas capazes de encaminhar processos contra os propagadores de fake news, a exemplo dos indiciados no relatório final da CPI da Pandemia.  

“2021 foi o ano de menor porcentagem de brasileiros vacinados, 52%. A estratégia trata de coibir prejuízos sistêmicos, a mentira deliberada com fins ilícitos. Não se trata de combater o direito de opinião. O atentado à saúde é alarmante por si só, mas fake news atingem o direito de acesso à informação verdadeira, não raras tornando-se pretexto para agressão de profissionais de saúde ou jornalistas”, disse Jorge Messias, advogado geral da União.

Dino, Messias e Vinicius Marques de Carvalho, da CGU, foram enfáticos em afirmar que não se trata de censura, muleta repetida à exaustão por uma extrema direita construída em cima da fraude sistemática de informações, com pesada influência na percepção da realidade de uma parcela da opinião pública, como evidenciou o movimento golpista eclodido após a vitória eleitoral de Lula.

“Trata-se de uma discussão sobre direitos. Uma série de questões relacionadas a direitos políticos e seu impacto sobre regimes democráticos. Também referimos a direitos sociais, como educação, com impactos sobre políticas de preservação ambiental, por exemplo. Revogamos portaria que restringia liberdade de opinião de servidores públicos em redes sociais, mas isso significa direito de disseminar desinformação”, explicou Carvalho.

Ao falar de falsificação, o procurador ainda deu um recado direto a Bolsonaro. “Ainda investigamos quem falsificou carteiras de vacinação de presidente e filha de presidente. Óbvio que tudo é apurado. Mas sabemos que houve a falsificação. Isso é muito grave, não podemos esquecer”.

“É importante dizer que a mentira virou negócio altamente lucrativo. Foram identificados 87 canais de Telegram que afrontam a política pública de imunização, ao vazar informações confidenciais do Conecte-SUS, crime previsto no artigo 313-A do Código Penal. Vemos desinformação que promovem crimes de curandeirismo e charlatanismo, previstos nos artigos 283 e 284 do CP. Outros casos estão sob análise e serão tratados com o devido rigor”, completou Jorge Messias.

Nesse sentido, as autoridades reforçaram o esforço que iniciaram ao lado das plataformas digitais. Resta saber como estas empresas que tanto lucraram com a produção industrial de mentiras reagirão diante do recado do Estado brasileiro. Ao final do evento, Flavio Dino evocou os lemas de campanha eleitoral, que falavam de amor, e relacionou com a mensagem da filosofia positivista condensada na bandeira brasileira.

“Auguste Comte [filósofo maior desta corrente] falava em amor ao lado de ordem e progresso, mas esqueceram de colocar a palavra amor na bandeira do Brasil. Estamos nos contrapondo a ideologias de ódio com ideias de humanismo e fraternidade”. Sobre os argumentos de censura, foi taxativo. “Temos uma falácia no argumento quando se fala da liberdade. Essa gente farisaica se diz defensora da liberdade. Mas nós é que o fazemos quando defendemos a vida. Eles defendem morte e crime. Não somos a censura, mas vacina é obrigatória, em nome de que? Da preservação da vida, valores que embasam a democracia. Não podemos algemar ninguém e levar a manu militari para vacinar, mas podemos e devemos impor restrições a quem não se vacina”.

Quanto à saúde pública, Nísia Trindade prometeu apresentar dados mais firmes sobre taxas de imunização da população em novembro, momento em que aproveitou para comentar esforços da Secretaria de Informação e Saúde Digital na unificação das informações dos dados de vacinação de estados e municípios. Mas tudo indica que já há uma reaproximação do país aos seus melhores índices de cobertura vacinal. E, ao atrelar conscientização e educação científica com responsabilizações jurídicas, a atual chefia do Estado brasileiro parece disposta a dar um passo significativo na contenção da onda de extrema-direita, para além do campo da saúde. “Temos a oportunidade de dar uma contribuição não só para o país, mas o mundo inteiro”, concluiu Paulo Pimenta.

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