A cruzada de Bolsonaro contra a sociedade civil

Com canetada, presidente desmonta Conselho sobre drogas – e há mais decretos do tipo a caminho. Leia também: a governo em guerra com os números do desmatamento; deputados querem regras frouxas para remédios importados

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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A SOCIEDADE NO MEIO DO CAMINHO 

Numa demonstração de que não tolera o dissenso, Jair Bolsonaro deu uma canetada e excluiu a participação da sociedade civil do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, o Conad. O decreto publicado ontem no Diário Oficial defenestrou os especialistas indicados por conselhos profissionais – um médico, um psicólogo, um enfermeiro, um assistente social e um educador –, além dos representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, da OAB e da UNE. Daqui para frente, só o governo tem voz na discussão: serão ao invés de 31 integrantes, 14 autoridades. Na composição, há assento para dois ministros: Sergio Moro, da Justiça – pasta a qual o Conad está vinculado – e se você pensou no nome ‘Osmar Terra’ acertou; é claro que o ministro da Cidadania não ficaria de fora. 

E é pelo passado de Terra que dá para medir o tamanho do autoritarismo de Bolsonaro. Em 2018, contamos nesta reportagem como ele, que ocupava o cargo de ministro do Desenvolvimento Social e Agrário no governo de Michel Temer, basicamente sequestrou o Conad com o intuito de subverter recomendações sobre a política de drogas – na linha do PL de sua autoria que o Congresso aprovou este ano e virou lei. Mas o que fez Terra? Ou, pelo menos, o que ele pôde fazer naquela circunstância? Manobrar regimentalmente. Jogar com as datas das reuniões, mudar a pauta acordada previamente. Ele tinha maioria no Conad, e as mudanças que queria passaram, mas teve de lidar com vozes discordantes – vindas da sociedade civil. 

Sob Bolsonaro, nem Terra, nem nenhum outro ministro precisa mais afetar modos democráticos. A régua, agora, é outra. “O que preocupa é que esta não é uma medida isolada. O governo Bolsonaro tem feito isso, o desmonte, em vários conselhos, como no Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), por exemplo. Trata-se da insistência em políticas governamentais anticientíficas”, disse o neurocientista Sidarta Ribeiro, que representava a SBPC no Conad em entrevista à Veja. “Agora, trata-se de um rolo compressor”, caracterizou.

Tudo indica que o ministro que tem a guerra às drogas como cruzada política poderá fazer do Conad uma espécie de gabinete para seus despachos. A frase do presidente dita ontem não deixa muitas dúvidas da lógica autoritária que vê na sociedade um empecilho: “Nós queremos enxugar os conselhos, extinguir a grande maioria deles para que o governo possa funcionar”, afirmou Bolsonaro. Somos uma pedra no meio do caminho – só resta saber para onde. 

RESPOSTA

De acordo com o Valor, representantes de conselhos que contam com participação da sociedade civil planejam ofensiva conjunta no Supremo Tribunal Federal e no Congresso. Isso porque, apesar de uma medida cautelar votada pelo STF no dia 13 de junho vedar a extinção por canetada presidencial daqueles colegiados criados por lei, e deixar de molho a contestação do decreto que extingue todos os demais fóruns, o governo não recuou. Além deste que alterou a composição do Conad, o jornal apurou que há 13 decretos semelhantes em fase de revisão final e outros 51 a caminho.

BOLSONARO E O INPE

Desde o começo do ano a reação do governo federal tem sido negar os números do meio ambiente. Não foi diferente na sexta, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciou alta de 102% no desmatamento da Amazônia em relação a julho do ano passado. A crise com o governo cresceu. Em coletiva de imprensa, Bolsonaro disse ter “a convicção que os dados são mentirosos” e acusou o diretor do instituto, Ricardo Magnus Osório Galvão, de estar “a serviço de alguma ONG”.

Galvão respondeu logo: “Os diretores dessas unidades de pesquisa não são escolhidos por indicação política ou porque o pai deles quis dar um filé mignon pra eles”. Ao Estadão, disse ainda: “Eu espero que ele me chame a Brasíliapara eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente”.

E ontem Marcos Pontes, o ministro da Ciência – que pouco apareceu neste primeiro semestre de governo – se uniu a Bolsonaro nos ataques ao Inpe. Em nota, escreveu que tem “grande apreço” pela instituição, mas entende e compartilha a “estranheza expressa pelo nosso presidente Bolsonaro”. Pediu que o Inpe apresente relatório completo sobre o monitoramento e criticou as respostas de Galvão na imprensa: “não corresponderam ao tratamento esperado na relação profissional”, segundo ele… 

Já o presidente declarou que o Inpe precisa falar com ele e com Pontes antes de divulgar algum número. “Eu não posso ser pego de calças curtas por aí”, disse, comparando: “é o mesmo que um cabo passar uma notícia sem passar pelo capitão, coronel ou brigadeiro”. Igualzinho. Segundo seu porta-voz, ele não quer impedir a divulgação, só “identificar, desde pronto o relatório, quais são as demandas e quais são as ações prospectivas”.

O diretor do Inpe explicou: “Mandamos os dados do Deter (sistema de detecção em tempo real) para o Ibama. Os dados do Prodes (sistema que aponta a taxa anual, e oficial, de desmatamento) são sempre mandados com antecedência ao ministério antes de divulgação. Os dados de junho mesmo foram mandados uma semana antes. Estranho dizerem que não avisamos”; “Além disso, temos de cumprir a Lei de Acesso à Informação. E é ingenuidade supor que se pode esconder esses dados. Os satélites estão todos em cima. Não tem como embargar”. 

Cientistas saíram em defesa do Inpe, com manifestações da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da ABC (Academia Brasileira de Ciências).

Segundo o Estadão, o ministério avalia demitir Galvão por justa causa, caso se considere que ele “agiu para prejudicar a imagem do Brasil”.

POR ENCOMENDA

O uso de agrotóxicos é um problema. O de agrotóxicos piratas pode ser ainda maior –  eles podem ser desconhecidos, podem não ter sido testados, podem ter princípios ativos proibidos. De modo que é preciso controlar. Mas uma reportagem da Agência Pública, baseada no Relatório Anual de Propriedade Intelectual da administração Trump, traz uma informação interessante: o governo dos EUA fez treinamento com a polícia brasileira para combater o comércio ilegal de pesticidas. E foi a pedido do grupo CropLife, que representa multinacionais produtoras de venenos. O workshop teve participação de autoridades dos EUA e de representantes das principais empresas da indústria produtora de agrotóxicos. 

Em tempo: a Anvisa deve votar hoje um novo marco legal para avaliação e classificação toxicológica de agrotóxicos. 

Ontem o Ministério da Agricultura liberou mais 51 agrotóxicos. Já são 262 este ano. 

SEM ANÁLISE

Um projeto de lei quer franquear entrada automática no Brasil de medicamentos já aprovados nos Estados Unidos, Japão, Canadá e União Europeia. O autor do projeto que esvazia as competências da Anvisa atende pelo nome de General Peternelli (PSL-SP), e já garantiu o apoio de deputados de outros nove partidos. A justificativa dada para a mudança é a demora na aprovação, particularmente no caso de remédios usados para tratar doenças raras. A agência reguladora, por sua vez, reitera que é preciso verificar critérios diferentes para que medicamentos vindos de fora possam circular por aqui. Exemplo disso é o estudo de estabilidade feito pela Anvisa para garantir que o medicamento mantenha sua qualidade durante todo o prazo de validade, já que o Brasil é mais quente e úmido que os países citados no PL. Além disso, a agência lembra que os estudos conduzidos em medicamentos internacionais não necessariamente consideram as especificidades epidemiológicas da população brasileira. Além disso, haveria danos à indústria nacional. “É uma questão de política externa. Os outros países terão vantagem sobre os produtos brasileiros”, afirmou o ex-presidente da agência, Gonzalo Vecina Neto, em entrevista ao Estadão.

O projeto de Peternelli está na fila da Comissão de Seguridade Social e Família, ainda sem previsão de entrar na pauta. 

OUTRA TESOURADA

Ontem, o governo federal anunciou um contingenciamento de R$ 1,442 bilhão no orçamento do Executivo. O secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues, tentou dar uma “boa notícia”: segundo ele, seria preciso contingenciar R$ 2,251 bi, mas o governo decidiu usar o restante das reservas orçamentárias, diminuindo o baque. Ainda não se sabe quais ministérios serão afetados. Esta má notícia sairá em decreto presidencial na semana que vem.

SERÁ?

Terá chegado a hora de a indústria tabagista ressarcir os bilhões gastos pelo SUS com doenças causadas pelo cigarro? A resposta para essa pergunta está na 1ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre, onde tramita desde maio uma ação protocolada pela Advocacia-Geral da União (AGU) para que as empresas devolvam tudo o que a rede pública gastou nos últimos cinco anos. De acordo com reportagem do Zero Hora, a primeira movimentação do processo aconteceu na última sexta-feira, quando a juíza Graziela Cristine Bündchen acatou o pedido da AGU para acionar multinacionais no processo.  Com isso, as indústrias estrangeiras que controlam as fabricantes de tabaco brasileiras passam a ser rés na ação e podem ser responsabilizadas. O pedido engloba dois grupos que controlam 90% do comércio de cigarros em todo o Brasil: Souza Cruz (controlada pela British American Tobacco PLC), Philip Morris Brasil Indústria e Comércio e a Phillip Morris Brasil S/A (controladas pela Philip Morris International). 

De acordo com a equipe de advogados da União que atua no caso, a citação das matrizes através das subsidiárias brasileiras reforça a tese de que as empresas atuam como corporações transnacionais, ou seja, conglomerados econômicos que remetem para o exterior os lucros obtidos com seu negócio, deixando a responsabilidade pelo pagamento dos danos à saúde para a sociedade brasileira.

Um estudo publicado em 2017 pelo Ministério da Saúde e pelo Inca apontou que o consumo de cigarros e outros derivados do tabaco causa um prejuízo anual de R$ 56,9 bilhões ao país. Deste total, R$ 39,4 bilhões são com custos médicos diretos – o que corresponde a 8% de todo gasto com saúde – e R$ 17,5 bi com custos indiretos, decorrentes da perda de produtividade, provocadas por morte prematura ou incapacitação de trabalhadores.  

Conforme a peça da AGU, que tem mais de 200 páginas e 400 documentos anexados, as empresas teriam se omitido e manipulado informações sobre os danos do cigarro, agindo de má-fé para aumentar suas vendas e lucros. O órgão mira o precedente aberto pelos Estados Unidos, onde se ajuíza ações do gênero desde 1994. Por lá, a indústria do cigarro foi obrigada a pagar mais de R$ 500 bilhões nos últimos 20 anos.  

SEM RESPOSTA

Oito meses após a saída dos médicos cubanos, 2.149 vagas do Mais Médicos não estão preenchidas. O Ministério Público Federal entrou com uma ação contra a União, e estima que mais de seis milhões de pessoas estejam sem atendimento nos 705 municípios onde há vagas ociosas. O Ministério da Saúde afirmou à Deutsche Welle, em nota, que está trabalhando no novo programa. É uma resposta-padrão dada desde o início do ano, quando a promessa era lançá-lo ainda no primeiro semestre. 

NÚMEROS DAS HEPATITES

Entre 2008 e 2018, o número de pessoas diagnosticadas com hepatites virais aumentou 20% no Brasil, chegando a 42.383. No período, contudo, houve queda de 9% nas mortes atribuídas à doença, que somaram 2.184 em 2017. Os números são do Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais 2019, divulgado ontem pelo Ministério da Saúde. 

NADA JUSTO

Rosilaine Santiago da Rocha é moradora da favela Manguinhos, no Rio. E pode perder a guarda do filho de oito anos por isso. O juiz considerou que “nos dias que correm, é mais seguro residir fora do município do Rio de Janeiro” e é melhor para a criança morar com o pai em Joinville. Detalhe: o marido já respondeu por violência doméstica e por tentar matar a ex-mulher. O episódio gerou uma medida protetiva. “Ele jurou que ia destruir a minha vida. E está fazendo isso”, disse a mulher. 

RENÚNCIA

O ministro da Saúde da República Democrática do Congo, Oly Ilunga, renunciou ontem por conta da condução do governo em relação ao surto de ebola. A presidência anunciou na semana passada que tomaria o controle dessa gestão, criando uma secretaria técnica específica – sem o conhecimentodo ministro.

O DINHEIRO É A MENSAGEM

Além da editoria “HealthTech” paga pela DASA, o Meio agora conta com o patrocínio da Coca-Cola. João Peres, d´O Joio e do Trigo, chamou nossa atenção para o anúncio feito ontem. De acordo com o texto, a maior newsletter brasileira terá agora uma editoria “voltada para produtividade e foco, seja na carreira, seja nos estudos” – tudo embalado pela propaganda do novo produto da multinacional, que quer vender uma espécie de café enlatado para os brasileiros. Mas sabe o que há por trás desse tipo de produto que promete “aumentar o foco”? Um problema de saúde pública, como mostramos nessa reportagem sobre o crescimento do mercado que pretende esticar os limites da resistência humana.  

DEMANDA DE SAÚDE (E FILÃO DE MERCADO)

Em 2023 o mercado da reprodução assistida alcançará R$ 115,5 bilhões no mundo, segundo a consultoria Allied Market. Já de acordo com a Sociedade Médica de Fertilidade Europeia, um em cada seis casais tem problemas de fertilidade em algum momento de sua vida reprodutiva. O problema é cada vez mais frequente, na medida em que as opções de vida mudaram – outras prioridades vêm na frente dos filhos. E os sistemas públicos não têm acompanhado a tendência, deixando a maior parte dos tratamentos nas mãos do mercado privado. Segundo a reportagem do El País, que foca na realidade espanhola, há fundos de capital de risco, como o Warburg Pincus, que investem no filão, que ainda tem muito o que crescer – para sermos exatos, 9% ao ano, também de acordo com a Allied Market. Só na Espanha, o número de clínicas dobrou em uma década, chegando a 107, enquanto a média de nascimento do primeiro filho subiu para 32 anos. No mundo, nasceram sete milhões de bebês nasceram por reprodução assistida desde o primeiro tratamento in vitro, em 1978.  

CONFIRMADO

O local da 16ª Conferência Nacional de Saúde foi confirmado. Vai ser o Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, em Brasília.

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