Universidades: Fature-se ou te devoro, diz MEC

Programa privatizante do governo quer submeter Educação ao mercado — e inclui atendimento privado nos hospitais universitários. Leia também: emergência internacional no ebola; podem faltar remédios essenciais no SUS

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
.

Por Maíra Mathias e Raquel Torres

MAIS:
Esta é a edição de 18 de julho da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui.

O FUTURE-SE E O SUS

Na apresentação do Future-se, programa lançado ontem pelo Ministério da Educação (MEC), não faltaram menções à saúde. A força motriz da iniciativa – que já foi apelidada pelas redes de ‘Fature-se’ – é fazer com que as universidades dependam cada vez menos do Estado e cada vez mais do mercado. Para isso, deverão captar recursos do setor privado, em troca de prestação de serviços – leia-se, pesquisas – ou até mesmo emprestando sua fachada para que alguma empresa inscreva lá seu nome. Assim, a Faculdade de Medicina da USP poderia chamar-se Faculdade de Medicina Amil. 

A explicação do programa ficou a cargo de um desarticulado Arnaldo Lima, que hoje está à frente da secretaria de Educação Superior do MEC (mas é funcionário do antigo Ministério da Fazenda). Frases como “o professor vai ficar rico” e “queremos nos transformar na Apex da educação” foram jogadas em meio a uma exposição um tanto incompreensível sobre fundos imobiliários, fundos patrimoniais, fundos de investimentos…

A EBSERH, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada em 2011 no governo Dilma Rousseff para fazer a gestão dos hospitais universitários, foi citada algumas vezes como exemplo. Primeiro, como modelo de gestão capaz de fazer centralizar compras públicas – e, nessa hora, “empresas” como o Hospital Albert Einstein e o Sírio Libanês foram saudadas por Lima, embora não tenha ficado claro se por que fazem boas compras devido a escala de suas operações ou se os hospitais (que têm isenção fiscal devido a um programa federal chamado Proadi) têm algum papel a cumprir no Future-se. 

Mas a EBSERH também foi lembrada por Lima quando o secretário da Sesu falou que, hoje, as universidades direcionam 55% das despesas discricionárias (que não envolvem salários de servidores) para cinco áreas: vigilância, gestão de mobiliário, limpeza, água e contratos de terceirização. “A gente quer isentar os reitores dessa tarefa, assim como a EBSERH fez genialmente, para que os reitores, estudantes e professores pensem em pesquisa, pensem em dar aula”, disse. No fim de abril, o governo federal impôs um bloqueio de 30% nas verbas discricionárias das universidades e institutos federais. Mas esse detalhe não foi mencionado durante a apresentação.

Arnaldo Lima continuou com um depoimento pessoal, já falando sobre outro assunto: “Hoje, por exemplo, eu sou uma pessoa que tem um plano de saúde. Quando sou atendido pelo SUS, meu plano de saúde é obrigado a restituir o SUS. A gente vai fazer a mesma coisa. Os hospitais universitários que atenderem um público, eles também vão poder cobrar convênio e vão aproximar o setor privado aqui, a indústria farmacêutica, e quando a gente realmente começa a descobrir que o que a gente quer é descobrir a cura da dengue.” Deu para entender? Pois é. 

De acordo com o MEC, universidades, hospitais e institutos federais contam com um R$ 1 bilhão de receitas próprias. Hoje, esse dinheiro arrecadado vai para a Conta Única do Tesouro. E fica, portanto, sujeito a contingenciamento devido ao limite constitucional ao crescimento do gasto público estabelecido pela EC do Teto. A proposta do MEC é que organizações sociais façam a gestão desses recursos captados pelas instituições públicas. “Acho que ninguém se preocupou tanto com as universidades como a gente, né ministro”, disparou Lima, para quem se as instituições já captam R$ 1 bi “sem nenhum incentivo” deverão captar muito mais se aderirem ao programa do MEC.

O secretário da Sesu disse que o Future-se pretende consolidar o marco legal da ciência, tecnologia e inovação e que o objetivo será “ver os portfólios” das universidades e “viajar o mundo em busca de recursos”. “Se o professor-pesquisador for para o mercado ele não terá muito sucesso porque ele não tem um viés empreendedor”, lamentou a certa altura. Mas os professores poderão “ter o melhor emprego do mundo” caso se dediquem a registrar patentes e recebam dinheiro das parcerias público-privadas. 

O professor da Unicamp, Leandro Tessler, foi entrevistado por O Globo e faz a seguinte ponderação: “O problema que vejo é que passa uma mensagem de como se o Estado fosse se desonerar das universidades. À medida que elas ganham autonomia, vão ter que ser responsáveis por seu financiamento. Isso é um perigo muito grande na minha percepção.  A maior parte da pesquisa de ponta que se faz no Brasil é básica, que não é de interesse industrial. No mundo inteiro, isso é bancado por dinheiro estatal. Esse projeto dá a impressão de que só é válida a pesquisa que tem algum interesse industrial.”

O coordenador executivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, também falou ao jornal sobre a preocupação de que com a necessidade de potencializar a captação de recursos, as universidades deixem de olhar para suas funções fins: “A questão é que a adesão parece voluntária, mas na prática será obrigatória. Porque o modelo atual será sucateado. Portanto, as universidades deixarão de cumprir suas funções de ensino, pesquisa e extensão para se dedicar à captação de recursos. Harvard não é modelo, Harvard é pequena. Nosso modelo precisa ser nacional mesmo, pois os desafios brasileiros são específicos.”

O valor previsto para captação em incentivos é de R$ 102 bilhões, dos quais R$ 50 bilhões viriam de fundo imobiliário composto por patrimônio da União, R$ 33 bilhões de fundos constitucionais, R$ 17,7 bilhões de lei de incentivos fiscais e depósitos à vista e ainda R$ 1 bilhão de verba cultural.

Segundo a Folhao ministro Abraham Weintraub disse que ao menos 20 reitores das universidades já aderiram “de boca” ao projeto. Mas o UOLressalta em reportagem que os reitores defenderam ontem que é preciso reverter o congelamento de 30% das verbas discricionárias imposto às instituições antes de definir se elas irão ou não aderir ao Future-se. E o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, Reinaldo Centoducatte, confirmou que os reitores não foram consultados para a construção do projeto. “A Andifes vai constituir grupos para estudar, analisar e fazer proposições em cima dessa proposta que o governo está nos apresentando. Ainda consideramos prematura uma análise mais aprofundada, que poderia levar a qualquer tipo de adesão ou não no futuro”, afirmou ao UOL

O Future-se entrou ontem mesmo em consulta pública. É possível participar até o dia 7 de agosto. As propostas recebidas serão compiladas de 14 a 21 de agosto, e um plano final, elaborado pelo MEC, deve ser enviado ao Congresso no fim do mesmo mês. Entre as leis que precisam ser alteradas, estão a de fundos constitucionais, dos depósitos à vista, de incentivos fiscais e o marco legal de ciência e tecnologia.

EMERGÊNCIA INTERNACIONAL

Onze meses depois do início do surto de ebola na República Democrática do Congo que já matou mais de 1,6 mil pessoas, a OMS o declarou emergência internacional de saúde pública. Em três outras ocasiões o organismo havia optado por não fazer a declaração, mas, como vimos por aqui, as coisas chegaram a outro patamar com o registro de um caso em Goma, que tem mais de um milhão de habitantes e faz fronteira com Ruanda. Com a nova declaração, espera-se facilitar a arrecadação internacional de fundos. Além disso, com ela a OMS fez uma série de recomendações ao país afetado e seus vizinhos. Mas as fronteiras não devem ser fechadas – isso causaria impactos econômicos e sociais que poderiam até agravar o surto.

A vacina que tem sido usada, da Merck, ainda está em fase experimental. A Johnson & Johnson desenvolveu mais uma – também experimental – e, com um milhão de doses já disponíveis, está em um “impulso agressivo” para usá-la, segundo o Stat. Mas o ministro da saúde da República Democrática do Congo, Oly Ilunga, pôs um freio: “Estamos na presença de uma situação muito, muito perigosa. Temos pessoas que não querem discutir [seus planos] com o governo. Pessoas que não têm respeito pela ética. E eles estão prontos para introduzir uma nova vacina e criar novos problemas de comunicação e problemas de confiança com a comunidade. Então, tomei a decisão de dizer não. Nós não vamos começar uma discussão novamente”. Um dos grandes problemas no combate ao vírus tem sido a desconfiança da população nos profissionais de saúde – alguns já foram assassinados. 

MENOS OVERDOSES

A notícia em princípio é boa: dados preliminares divulgados pelo New York Times mostram que as mortes por overdose de medicamentos nos EUA caíram 5% no ano passado (de 72 mil em 2017 para 68 mil em 2018). É a primeira queda desde os anos 1990, quando começou a epidemia de opiáceos por lá. Mas, segundo a Vox, há pegadinhas por trás dos números. A primeira está no fato de que os dados são justamente preliminares, e os números exatos só vão sair em dezembro. Mas há outras questões. Por exemplo: entre 2011 e 2012, as mortes pareciam ter começado a se estabilizar… mas aí vieram opioides sintéticos como o fentanil, e as overdoses dispararam de novo. Como o fentanil ainda não está disseminado por todo o país, ele ainda tem ‘espaço’ para aumentar muito as mortes nos próximos anos. Então, o resultado deve ser celebrado com parcimônia. 

E, em Paris, o Louvre cobriu com fita crepe as placas que indicavam a Ala Sackler de Antiguidades Orientais do museu. O nome vinha por conta de uma doação de US$ 3,6 milhões feita pela família Sackler em 1996. Os Sackler são proprietários da Purdue Pharma, que responde a mais de mil ações judiciais por promover o remédio OxyContin – um dos principais vetores da epidemia de overdoses – sabendo dos seus riscos. Nos últimos meses, outros museus, como o  Guggenheim, o Metropolitan, a Tate e o National Portrait Gallery disseram que deixariam de aceitar suas doações. No caso do Louvre, o diretor disse que as placas foram cobertas porque já passou o período de 20 anos de homenagem. 

PDPs

Ainda na esteira das 19 parcerias para o desenvolvimento produtivo – as PDPs – suspensas pelo Ministério da Saúde com sete laboratórios públicos, o Estadão de hoje traz informações sobre auditorias da Controladoria-Geral da União na Fiocruz. Segundo o jornal, os relatórios do órgão de controle questionam preços, impactos, cronogramas, precarização do trabalho e produção em algumas das PDPs da Fundação. Não se sabe, no entanto, se os questionamentos da CGU recaíram sobre as mesmas seis PDPs suspensas pelo Ministério. Um dos relatórios foi feito em 7 de abril de 2017. Nele, a CGU conclui que não verificou impacto positivo na política de parcerias e diz que os cronogramas de transferência de tecnologia de oito PDPs de Farmanguinhos estavam atrasados. Uma segunda auditoria, feita entre maio e junho do ano passado, identificou que nenhum dos medicamentos comprados via parceria estava sendo produzido pelo laboratório. E recomendou, por fim, que Farmanguinhos avaliasse “a conveniência e a oportunidade” de dar continuidade às oito PDPs com o Ministério da Saúde. 

Estadão procurou outros laboratórios que sofreram suspensões – e parece que há um alinhamento (ou concordância) entre vários deles, que afirmaram que a medida é transitória, antiga ou não afeta a produção atual. “A Fundação para o Remédio Popular (Furp) alegou que PDPs referentes aos remédios gosserrelina e leuprorrelina já estavam suspensas desde 2018, após notificação do laboratório Cristália. O Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) esclareceu que, apesar de ter sido selecionado pelo Ministério da Saúde para ser fornecedor de seis medicamentos para o SUS, nenhum deles ainda é produzido. E ressaltou que o prazo da PDP é de dez anos e detalhes ainda são negociados com a pasta. Da mesma forma, a Funed se reuniu ontem com integrantes do governo federal”, informa o jornal.

Aliás, a Fiocruz divulgou ontem uma nota em que informa que mais de 80% das PDPs firmadas pela autarquia continuam ativas. O texto tem um tom um pouco ambíguo: não acusa o Ministério da Saúde em momento algum, mas ao mesmo tempo termina com uma manifestação de “apoio irrestrito” à política do complexo econômico industrial da saúde – que muitos analistas afirmam que está sob ataque com a suspensão das 19 PDPs. 

Também a Abrasco, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, lançou uma nota sobre a suspensão dos contratos do governo com laboratórios públicos: “A posição do Ministério da Saúde, expressa em nota divulgada em 16 de julho, afirma que a suspensão é temporária, mas antecipa uma punição antes de conhecer as razões de eventuais atrasos no cronograma estabelecido na parceria. Por vezes, estes atrasos foram provocados pela própria administração desse programa no passado recente. Isto é agravado pelo fato de que o estado brasileiro viabilizou investimentos, por vezes vultosos, para levar a cabo a parceria.” 

E o Saúde Popular ouviu Ronaldo Dias, presidente da Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob) e do laboratório Bahiafarma, que tem sido a principal fonte contra o Ministério da Saúde até agora, e alerta: “O que está se concretizando é uma possibilidade elevada de um novo desabastecimento como visto ao longo dos últimos meses em diversas reportagens e, além disso, uma dificuldade, a longo prazo, de sustentabilidade do Sistema Único de Saúde. Sem a política de PDP a tendência é que o preço desses medicamentos aumente consideravelmente”. 

ONDE SE CORTA

Habitação, educação, defesa nacional e direitos da cidadania: segundo um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos com base em dados do portal do Orçamento do Senado, são estas as áreas mais afetadas pelo contingenciamento total de R$ 31 bilhões feitos pelo governo Bolsonaro. É pior na habitação, onde houve corte de mais de 90% dos recursos.

Leia Também: