Saúde de Gaza: destruição pela bomba ou pelo cerco

Israel não mata só com mísseis: bloqueio à entrada de recursos em Gaza inviabiliza trabalho de hospitais palestinos. Médicos relatam superlotação de 600%, mortes evitáveis em massa e até cirurgias sem sedativos – indícios de um crime de guerra

Ambulância destruída ao sul da Faixa de Gaza após ataques de Israel — Foto: Said Khatib/AFP
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Por Grace Browne, na revista Wired | Tradução: Guilherme Arruda

Mesmo antes do mortal bombardeio do hospital al-Ahli al-Arabi na semana passada, o sistema de saúde de Gaza já estava à beira do colapso. Pelo menos 4,5 mil palestinos já morreram desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, e estima-se que mais 12 mil foram feridos, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. O sistema de saúde do enclave está recebendo um fluxo colossal de pacientes de emergência, ao mesmo tempo que sofre os efeitos de bombardeios ininterruptos e do corte de serviços de água e energia.

No dia 13 de outubro, as forças armadas de Israel declararam que todos os habitantes do norte de Gaza deveriam evacuar a região. Cumprir a ordem seria algo impossível para os hospitais, lotados de pacientes em situação crítica demais para serem movidos. Como disse a Organização Mundial da Saúde, a evacuação era uma “sentença de morte” para os doentes e feridos.

“O sistema de saúde está entrando em colapso ao nosso redor”, diz Ghassan Abu-Sittah, cirurgião plástico dos Médicos sem Fronteiras (MSF) que trabalha no hospital Al-Shifa, maior equipamento de saúde da Faixa de Gaza. Ele traz o relato de um sistema reduzido a um esqueleto.

Os pinos e hastes necessários para a estabilização de fraturas ósseas já acabaram nos departamentos ortopédicos, diz Abu-Sittah. A pressão da água encanada já não é mais forte o suficiente para permitir o funcionamento das máquinas de esterilização, o que leva o staff dos hospitais a depender de antissépticos químicos, obsoletos há décadas, para desinfetar seus equipamentos de trabalho. Não há mais ventiladores. Não há nem espaço o suficiente para os feridos. “Não temos mais espaço ou colchões para deixá-los nos corredores”, conta Abu-Sittah. Os trabalhadores da saúde estão exaustos e lutando para receber a enorme quantidade de vítimas da guerra.

No dia 18 de outubro, Abu-Sittah auxiliava no tratamento de um paciente com uma ferida infeccionada. Com todas as salas de operação cheias, os médicos não puderam tratá-la a tempo – o paciente acabou por perder a perna.

Desde que Israel bloqueou o acesso à eletricidade em Gaza, há mais de uma semana, os hospitais estão dependendo de geradores para seu funcionamento. Agora, seu combustível está perigosamente próximo do fim. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) alertou na quarta-feira passada que o Ministério da Saúde de Gaza está remanejando combustível de outros prédios públicos para manter os hospitais na ativa. “Tudo está acabando”, lamenta Zaher Sahloul, presidente da MedGlobal, uma ONG que apoia centros médicos em Gaza. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha afirmou que, sem eletricidade, “os hospitais correm o risco de virarem necrotérios”.

Os cirurgiões do hospital de Al-Shifa estão trabalhando sem sedativos, de acordo com Christos Christou, presidente internacional da MSF. Os membros da organização no local relatam ouvir “pacientes feridos gritando de dor”.

Al-Shifa também está trabalhando com 600% de superlotação, denunciou seu diretor-geral Muhammad Abu Salmiya em um editorial do The Lancet de 18 de outubro. No mesmo dia, ele afirmou à Associated Press que “os geradores do hospital se esgotariam em poucas horas”.

Chris Hanger, porta-voz da Cruz Vermelha, relatou à Wired que os cirurgiões de Al-Shifa estão trabalhando 24 horas por dia para cuidar dos feridos. “Eles nos dizem que todo o sistema está de joelhos. Até tentam fazer a triagem dos pacientes, mas não há nenhuma forma de receber todas essas baixas”, conta Hanger: “todos os centros cirúrgicos estão lotados”.

O Hospital Kamal Adwan, no norte de Gaza, está recebendo “majoritariamente corpos queimados, cadáveres varados de munição, e mulheres e crianças mutiladas”, afirma Sahloul, que está em contato constante com Hussam Abu Safiya, o médico-chefe da MedGlobal na região. Praticamente todas as vítimas são mulheres e crianças, diz Sahloul.

Outra preocupação é o risco de surtos de doenças oriundas do número exorbitante de cadáveres nas ruas. “Os hospitais estão transbordando de mortos”, relata Sahloul. Abu Safiya também teme que os corpos em decomposição contaminem a água de Gaza. Na última quarta-feira, todas as cinco estações de tratamento sanitário de Gaza foram forçadas a fechar por falta de energia, o que, de acordo com o OCHA, aumenta o risco de transmissão de doenças pela água. O hospital de Al-Shifa já está enterrando corpos em valas comuns.

Com os recursos à míngua, o cuidado dos pacientes severamente feridos pela guerra virou uma prioridade total. Nem mesmo os pacientes de câncer e outras doenças crônicas conseguem receber tratamento. O Hospital da Amizade Turco-Palestina, localizado ao sul da cidade de Gaza, está em vias de fechar, o que significa que 9 mil pessoas com câncer na Faixa de Gaza deixarão de se tratar. “Muitas dessas pessoas vão morrer, não pelos bombardeios, mas pela falta de acesso a medicamentos essenciais”, denuncia Sahloul.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu afirmou na quinta-feira (19/10) que, depois de uma conversa com o presidente estadunidense Joe Biden, aceitou que 20 caminhões com ajuda humanitária cruzassem a fronteira Egito-Gaza levando alimentos, água e suprimentos médicos. A Casa Branca informou que a ajuda já entraria em Gaza na sexta-feira, mas os primeiros caminhões só cruzaram a fronteira no sábado.

Enquanto isso, o sistema de saúde de Gaza continua a ruir – e o número de vítimas, aumentando. Os hospitais estão tão sobrecarregados que os médicos não conseguem impedir os pacientes de morrer, diz Abu-Sittah. “Nos tornamos um departamento de emergência em que não temos controle sobre quem sobrevive e quem morre”, ele conclui.

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