Hora de olhar para as doenças negligenciadas

Uma organização global busca fazer o que as grandes farmacêuticas se recusam: pesquisar, em parceria universidades e cientistas, melhores tratamentos para doenças do Sul Global. Como atuam e quais são seus desafios?

Estudos e amostragem do Barbeiro, transmissor da doença de chagas. Foto: Arquivo/Ministério da Saúde
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Após a pandemia de coronavírus, falhas estruturais e limites de concepção dos mais diversos sistemas públicos de saúde ficaram expostos. Neste ano, a OMS alertou a generalizada falta de providências das nações em se prepararem para eventos similares. Assim, mantém-se aberto o espaço para pequenas, médias e grandes crises de saúde pública. É aqui onde parece se encontrar o tema das chamadas “doenças negligenciadas”, que afetam até 1 bilhão de pessoas no mundo.

“São doenças mais comuns no Sul Global e em países em desenvolvimento, os mais impactados por conflitos políticos, instabilidades econômicas e mudanças climáticas, fatores que ampliam a situação de vulnerabilidade de comunidades já marginalizadas e favorecem a disseminação de tais doenças. Forma-se, portanto, um ciclo no qual essas doenças acabam perpetuando condições de pobreza”, explicou Luis Pizarro, diretor geral da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi na sigla inglês), em entrevista ao Outra Saúde.

A organização se dedica a realizar parcerias com universidades, ONGs e grupos de pesquisadores para desenvolver métodos de tratamento de doenças que ficam fora do escopo da indústria farmacêutica. No dia 20 de outubro, a DNDi recebeu o prêmio Príncipe das Astúrias pelo seu trabalho na busca por soluções a respeito de enfermidades como leishmaniose, doença de chagas, HIV pediátrico e hepatite C. No momento, a organização, entre outros projetos, tem uma parceria com a Fiocruz para desenvolver métodos de prevenção a dengue.

“Desde a criação da DNDi, já disponibilizamos 12 tratamentos para seis doenças fatais, o que nos permitiu salvar milhões de vidas. Tudo isso só foi possível graças ao nosso modelo operativo baseado em parcerias. A DNDi é uma organização de P&D virtual, sem laboratórios ou fábricas. Portanto, todo o trabalho é feito com parceiros que detêm a infraestrutura necessária para as pesquisas”, contou Pizarro.

No momento, a organização se dedica a inovar no tratamento da Doença de Chagas, endêmica no sul global e em áreas frequentemente distantes das melhores infraestruturas de saúde.

“A doença de Chagas afeta mais de 6 milhões de pessoas no mundo e é endêmica em 21 países na América Latina, onde estão a maioria dos infectados. Na região, ocorrem cerca de 10 mil mortes devido à doença por ano. Atualmente, só existem dois medicamentos contra a doença, descobertos há mais de 50 anos, cuja eficácia diminui quanto maior o tempo que a pessoa convive com a infecção. Ambos devem ser tomados por oito semanas e podem provocar efeitos colaterais, o que dificulta a continuidade do tratamento pelos pacientes”, contou.

A partir das falas de Luis Pizarro, podemos entender o tema das doenças negligenciadas como uma boa ilustração dos dilemas por que a humanidade passa no momento. Entre as necessidades das massas de pessoas comuns e a ganância de grandes grupos econômicos com influência cada vez mais agressiva dentro de aparelhos de Estado, opta-se pelo desfinanciamento de políticas públicas fundamentais. Assim, reforça-se um modelo econômico que tem levado não só as economias, mas o próprio planeta ao colapso. E o meio ambiento é aspecto cada vez mais decisivo para o aparecimento ou até reaparecimento de doenças. Em suma, há condições de combater com sobras doenças como as que são alvo do esforço do DNDi; falta “apenas” a sua priorização nas agendas.

“A pandemia nos mostrou a capacidade de resposta rápida da ciência diante de problemas globais de saúde pública. Por outro lado, ficou evidente que ainda é preciso muito trabalho colaborativo entre os setores público e privado e organismos internacionais para que todos, independentemente de renda ou local de moradia, tenham acesso às inovações médicas”, sintetizou Luis Pizarro.

Leia a entrevista completa:

O que é a iniciativa DNDi e quais realidades levaram à sua construção?

A inciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) é uma organização internacional sem fins lucrativos de pesquisa e desenvolvimento de tratamentos para doenças negligenciadas. Nosso trabalho é descobrir, desenvolver e disponibilizar tratamentos seguros, eficazes e acessíveis para pacientes negligenciados.

A DNDi foi criada em resposta à frustração de médicos e ao desespero de pacientes diante de um cenário de medicamentos pouco eficazes, tóxicos e inacessíveis ou até mesmo inexistentes para o tratamento de doenças negligenciadas.

Na raiz do problema está a prevalência de um modelo de pesquisa e desenvolvimento de soluções médicas voltado para o lucro, no qual praticamente não há incentivo para o desenvolvimento de medicamentos contra doenças que afetam as comunidades mais pobres e vulneráveis.

Dessa maneira, a DNDi foi lançada em 2003 quando o Conselho de Pesquisa Médica da Índia, a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto de Pesquisa Médica do Quênia, o Ministério da Saúde da Malásia e o Instituto Pasteur da França, com a participação do Programa Especial de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da Organização Mundial da Saúde, se uniram a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF). Isso aconteceu depois que a MSF dedicou parte do dinheiro ganho com o Prêmio Nobel da Paz de 1999 para explorar um modelo novo, alternativo e sem fins lucrativos para desenvolver medicamentos para populações negligenciadas.

Por que há doenças negligenciadas? São doenças mais comuns ao sul global e países em desenvolvimento?

Porque são doenças que afetam principalmente pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, sobretudo mulheres e crianças. Dentro da lógica de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de medicamentos, voltada para o lucro e que predomina na indústria farmacêutica clássica, não há muito interesse na descoberta de novos tratamentos, mais eficazes e seguros, para doenças que impactam pessoas pobres e marginalizadas.

São, sim, doenças mais comuns no Sul global e em países em desenvolvimento, os mais impactados por conflitos políticos, instabilidades econômicas e mudanças climáticas, fatores que ampliam a situação de vulnerabilidade de comunidades já marginalizadas e favorecem a disseminação de tais doenças. Forma-se, portanto, um ciclo no qual essas doenças acabam perpetuando condições de pobreza.

A DNDi já conseguiu desenvolver remédios e tratamentos para 12 doenças. Como é este processo, como vocês conseguem viabilizar o desenvolvimento de tais terapias?

Desde a criação da DNDi, já disponibilizamos 12 tratamentos para seis doenças fatais, o que nos permitiu salvar milhões de vidas. Tudo isso só foi possível graças ao nosso modelo operativo baseado em parcerias. A DNDi é uma organização de P&D virtual, sem laboratórios ou fábricas. Portanto, todo o trabalho é feito com parceiros que detêm a infraestrutura necessária para as pesquisas.

Nós atuamos como o regente de uma “orquestra virtual”, coordenando as atividades dos nossos mais de 220 parceiros em quase 50 países, dentre os quais estão ministérios da saúde, governos, indústrias, universidades, centros de pesquisa, prestadores de serviços de saúde, organizações sem fins lucrativos e fundações.

Nossas conquistas nesses 20 anos são resultado do uso de inovação, parcerias, ciência aberta e práticas de advocacy para solucionar o problema da falta de medicamentos para doenças fatais que afetam principalmente pessoas pobres e marginalizadas.

O que levou à premiação na Espanha e qual o atual contexto da doença de Chagas?

O Prêmio Princesa de Astúrias de Cooperação Internacional 2023 concedido à DNDi é um reconhecimento ao trabalho colaborativo que realizamos na promoção da saúde pública. Ficamos extremamente honrados e com ainda mais disposição para lutar contra as doenças tropicais negligenciadas.

A doença de Chagas afeta mais de 6 milhões de pessoas no mundo e é endêmica em 21 países na América Latina, onde estão a maioria dos infectados. Na região, ocorrem cerca de 10 mil mortes devido à doença por ano. Atualmente, só existem dois medicamentos contra a doença, descobertos há mais de 50 anos, cuja eficácia diminui quanto maior o tempo que a pessoa convive com a infecção. Ambos devem ser tomados por oito semanas e podem provocar efeitos colaterais, o que dificulta a continuidade do tratamento pelos pacientes. Em 2011, a DNDi foi a responsável por desenvolver e registrar o primeiro tratamento pediátrico para a enfermidade.

Um dos grandes desafios, hoje, é fazer com que as comunidades afetadas, que em muitos casos vivem em áreas remotas, tenham acesso a diagnóstico e tratamento na atenção primária. Isso é extremamente importante, inclusive, para frear a transmissão materno-fetal da doença de Chagas. Por isso, criamos o Programa de Eliminação de Barreiras de Acesso e trabalhamos junto com ministérios de saúde de países da América Latina, dando-lhes apoio no fortalecimento da rede de serviços e na capacitação de profissionais de saúde no manejo clínico da doença de Chagas.

Além disso, estamos conduzindo um ensaio clínico para tornar o tratamento com os medicamentos existentes mais curto e seguro, enquanto fazemos pesquisas pré-clínicas com o objetivo de encontrar moléculas que possam vir a ser medicamentos completamente novos para a doença de Chagas.

Quais as principais ameaças dentro do rol das doenças negligenciadas na atualidade? Quais as melhores maneiras de evitá-las?

As mudanças climáticas são uma grande ameaça nesse contexto, porque aceleram ciclos de reprodução e alteram a distribuição geográfica de vetores de doenças. O desmatamento e a urbanização acelerada também são fatores críticos por contribuírem para a disseminação de doenças tropicais negligenciadas.

A pandemia deixou lições neste sentido? Como observa a reação de governos, fóruns internacionais como a OMS e indústria farmacêutica/científica diante deste momento histórico?

A pandemia nos mostrou a capacidade de resposta rápida da ciência diante de problemas globais de saúde pública. Por outro lado, ficou evidente que ainda é preciso muito trabalho colaborativo entre os setores público e privado e organismos internacionais para que todos, independentemente de renda ou local de moradia, tenham acesso às inovações médicas.

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