Por que Israel dispara contra a Saúde em Gaza

As forças de ocupação intensificam a guerra contra instalações e profissionais da saúde palestinos. Já não há energia no principal hospital. Recém-nascidos e pacientes graves morrem sem cuidado. Mas médicos e enfermeiros prometem resistir

Bebês recém-nascidos no hospital Al-Shifa, no norte de Gaza, tiveram de ser retirados das incubadoras após bombardeios acabarem com a energia elétrica do local. Foto: Dr. Ahmed El Mokhallalati
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Por People’s Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

Há uma característica terrível nos ataques recentes de Israel à Palestina, que tiveram início há pouco mais de um mês: os bombardeios a hospitais, centros de saúde e ambulâncias. Segundo as informações mais recentes da ONU, 20 dos 34 estabelecimentos já não estão mais em operação. E, nos últimos dias, tudo parece ter piorado. Há relatos de que tanques cercaram o Al-Shifa, maior hospital de Gaza, onde pacientes recebiam tratamentos e refugiados se abrigavam. Após bombardeios intensos no sábado, 11/11, não há mais energia no local. Faltam insumos médicos e alimento, e ninguém pode sair, sob risco de ser alvejado pelas forças de ocupação israelenses. Aqueles que tentaram fugir, foram mortos pelo exército, que agora impede que seus corpos sejam retirados para serem enterrados em uma vala comum. Os 39 bebês prematuros tiveram de ser retirados das incubadoras. Aqueles que sobreviveram estão recebendo cuidados precários. Alguns dos pacientes da UTI não conseguiram resistir.

Para narrar o horror passado pelos palestinos, Outra Saúde traz, hoje, três matérias produzidas pelo site People’s Dispatch. Os números de vítimas e as situações terríveis não param de se avolumar, e por isso selecionamos textos de três datas diferentes nos últimos 10 dias. É possível perceber, pela linha do tempo, como os ataques a hospitais estão escalando. Muitos médicos e enfermeiros decidiram, nos primeiros dias do conflito, que resistiriam enquanto houvesse pacientes para serem cuidados. Segundo os números mais recentes, certamente defasados, 195 profissionais de saúde já morreram. Receberam uma homenagem de seus colegas britânicos, que participaram neste sábado de um protesto gigante nas ruas de Londres – 300 mil pessoas pediram cessar-fogo imediato.

Por que Israel insiste no terror dos ataques a hospitais? A matéria de 3/11, do People’s Health Dispatch, nosso parceiro editorial, arrisca uma interpretação: a construção de uma rede forte de serviços de saúde em Gaza é parte essencial do movimento pela libertação da Palestina. “Os ataques incessantes às infra-estruturas de saúde em Gaza, além de serem verdadeiros atos de terror, são também uma tentativa de reprimir tal movimento.”

Fique com as matérias, em ordem cronológica decrescente. 

(G.L.)

11 de novembro, dia de Guerra Contra os Hospitais

O hospital Al-Shifa em Gaza, a maior instalação médica na faixa sitiada, foi forçado a suspender as suas operações na manhã de 11 de novembro, depois de ficar sem combustível. Pacientes pouco a pouco não conseguem mais resistir, enquanto as forças de ocupação israelenses cercam o hospital.

Franco-atiradores israelenses e drones posicionados ao redor do hospital abriam fogo a qualquer sinal de movimento.

Duas crianças feridas chegam ao hospital Al-Shifa após um bombardeio pelas forças de ocupação israelenses em 11 de outubro. Foto: Loay Ayyoub/The Washington Post

Abed Ghazal, um ativista palestino de saúde, integrante do Movimento de Saúde Popular, disse no sábado, 11/11, que é “surpreendente que os hospitais estejam sendo tratados como alvos legítimos”. Enquanto Ghazal fazia declarações à imprensa, as pessoas que trabalham em Al-Shifa, bem como as que ali se abrigavam, permaneciam sob ataque direto.

Os profissionais de saúde em Al-Shifa agora são forçados a prestar cuidados sem acesso a praticamente nenhum material médico, e os pacientes precisam amontoar-se nos corredores, declarou Ghazal. Como muitos enfermeiros e médicos passaram semanas trabalhando sem parar nos hospitais, com poucas notícias sobre seus familiares e amigos, a pressão começa a piorar.

Embora os trabalhadores de saúde de Al-Shifa tenham prometido permanecer enquanto os pacientes precisassem de cuidados, criticaram a repercussão ao que acontece no hospital. A resposta internacional aos ataques a Al-Shifa e a outros complexos hospitalares em Gaza está longe de ser suficiente, condenou Ghazal, e deve ser denunciada pelo que é.

Em declarações à Al Jazeera, o diretor da Al-Shifa, Muhammad Abu Salmiya, disse: “Os pacientes morrem a cada minuto, as vítimas e os feridos também não estão resistindo”. Ele confirma que um bebê em uma incubadora já havia morrido, bem como um jovem na Unidade de Terapia Intensiva.

O vice-ministro da Saúde de Gaza, Dr. Youssef Abu Alreesh, disse ao canal de notícias que todos os geradores e fontes de energia do hospital estavam desligados. Há 39 bebês recém-nascidos em incubadoras em Al-Shifa, agora mantidos vivos através de apoio manual, uma vez que tanto os geradores como os painéis solares deixaram de funcionar.

Pouco depois do apagão que aconteceu no sábado, o pátio de Al-Shifa também foi atingido por bombardeios, causando um incêndio. As ambulâncias foram impedidas de entrar ou sair do complexo hospitalar.

As Forças Ocupação Israelenses isolaram o complexo hospitalar, enquanto os edifícios nas suas proximidades foram bombardeados sem parar durante mais de 12 horas desde a manhã de sábado. “Qualquer pessoa que se mova dentro do complexo é alvo”, disse Salmiya, acrescentando que um membro da equipe médica foi baleado e morto por um atirador enquanto tentava chegar até os bebês na incubadora.

“Algumas famílias tentaram sair, mas foram alvo e agora estão mortas fora do hospital”, disse Alreesh à Al Jazeera. Segundo ele, a unidade de cuidados intensivos do hospital também foi atingida por tiros de morteiro.

Al-Shifa não tem mais eletricidade nem internet e ficou sem combustível, comida, água e suprimentos médicos. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) declararam na manhã de sábado que não conseguiram entrar em contato com nenhum de seus funcionários dentro de Al-Shifa, acrescentando que havia pacientes no hospital que estavam em estado crítico e incapazes de se mover.

Dezenas de milhares de pessoas deslocadas pelo bombardeio israelense, que procuravam abrigo no pátio do hospital, agora também estão presas.

O diretor-geral do Ministério da Saúde palestino, Mounir Al-Barsh, afirmou que uma vala comum teria que ser cavada em Al-Shifa no sábado para enterrar os corpos de 100 pessoas que morreram no Em Al-Shifa. “Não podemos nos mover dentro ou fora do perímetro do hospital. Estamos cercados, não podemos enterrar nossos mortos.”

Israel bombardeou o Hospital Al-Shifa pelo menos cinco vezes entre 9 e 10 de novembro, conforme confirmado pelo porta-voz do Ministério da Saúde palestino, Ashraf al-Qudra. Pelo menos 13 pessoas foram mortas depois que Israel bombardeou o departamento de obstetrícia e o pátio de Al-Shifa na manhã de sexta-feira, 10/11.

As forças israelenses também lançaram bombas de fósforo branco, proibidas internacionalmente, nos bairros ao redor de Al-Shifa na sexta-feira, informou a agência de notícias Wafa.

Duas pessoas também foram mortas num ataque nas proximidades do Centro Médico Al-Nasr. O ataque forçou o encerramento do hospital infantil da instalação, que é a única unidade de cuidados pediátricos especializados remanescente no Norte de Gaza, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.

Em outra declaração, na noite de sexta-feira, a organização humanitária Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS) condenou um ataque direto das forças de ocupação ao hospital Al-Quds, incluindo o disparo direto de munições reais contra a sua UTI. O ataque matou uma pessoa desabrigada e feriu outras 28.

Até sexta-feira, o hospital permanecia isolado pelo quinto dia consecutivo em meio à escassez de alimentos, água e suprimentos médicos, devido aos contínuos bombardeios israelenses que destruíram edifícios e ruas nas proximidades e cortavam as rotas de acesso a Al-Quds.

O chefe do hospital Al-Nasr e do Hospital Pediátrico Al Rantisi, Mustafa al-Kahlout, disse à CNN que as instalações estavam “completamente cercadas” e que os tanques israelenses estavam posicionados no exterior. O Hospital Al-Rantisi também foi diretamente atingido em 9 de novembro, o que causou incêndios e danos, de acordo com uma atualização do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. O hospital Al Awda, em Jabalia, também foi bombardeado em 10 de novembro, naquele que está sendo chamado de “dia de guerra contra os hospitais”.

De acordo com uma atualização publicada pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários em 10 de Novembro, 20 dos 36 hospitais de Gaza já não funcionam devido aos ataques de Israel. As forças de ocupação mataram pelo menos 11.078 palestinos desde o início do bombardeio genocida de Gaza, em 7 de Outubro. Outras 27.490 pessoas ficaram feridas durante este período.

9 de novembro, os ataques se intensificam

As forças israelenses continuam a lançar ataques aéreos contra hospitais e outras instituições de saúde em Gaza. De acordo com as informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde palestino em 9 de novembro, 195 profissionais de saúde foram mortos e 130 instituições de saúde foram alvo de ataques desde que começaram os bombardeios de Israel, no início de outubro. Desde então, mais de metade dos hospitais de Gaza foram colocados fora de serviço, devido aos danos e aos efeitos do bloqueio total à Faixa.

Os últimos ataques aéreos ocorreram nas proximidades do Hospital Indonésio, no norte de Gaza. Dezenas de pessoas foram mortas e feridas. O hospital, uma das maiores instituições de saúde deste tipo na área, acolhe atualmente pelo menos 2 mil desalojados internos, além de centenas de pacientes, segundo voluntários da ajuda humanitária dentro do hospital. Durante os ataques da semana passada, partes do teto do hospital começaram a ruir, conforme relatado por voluntários ao People’s Health Dispatch. O trabalho do hospital foi sistematicamente prejudicado nos últimos 34 dias, pois o combustível escasseia e os suprimentos disponíveis não são suficientes para atender às necessidades dos pacientes.

O risco de ficar sem combustível aumenta a cada hora, e o encerramento do Hospital Indonésio significaria não só o fim da prestação de cuidados de saúde, já limitada, mas também o fim do abrigo às pessoas que ali se encontram. Segundo os voluntários, logo no início da guerra, os profissionais de saúde decidiram permanecer no local enquanto as pessoas estivessem à procura de abrigo e, embora ainda mantenham sua posição, a situação material deteriora-se a cada hora.

Além do Hospital Indonésio, os ataques israelenses dos últimos dias continuam a dificultar a prestação de cuidados em outros centros de saúde, incluindo a maior instituição de Gaza, o Hospital Al-Shifa. Um dos informes mais alarmantes do Ministério da Saúde revelou o impacto dos ataques nos serviços de saúde para crianças, já que o Hospital Infantil Al-Nasr, o Hospital Infantil Al-Durrah e o Hospital Especializado para Crianças Al-Rantisi foram forçados a fechar a maior parte de suas enfermarias.

Neste momento, permanecem disponíveis parcos recursos para as crianças nos cuidados intensivos e nos serviços de pediatria, e é provável que se esgotem em breve se o fornecimento de combustível e mantimentos não for retomado. Com mais de 4 mil crianças mortas pelos ataques israelenses, a cessação dos cuidados pediátricos na Faixa de Gaza certamente terá efeitos devastadores nos próximos dias.

3 de novembro, agressão e resistência

Três grandes hospitais no norte de Gaza – o Hospital Indonésio, o Hospital Al-Shifa e o Hospital Al-Quds – estiveram sob fogo israelense em 3 de novembro. A organização humanitária Sociedade do Crescente Vermelho Palestino também relatou ataques a um comboio de seus veículos que voltava de Rafah, transportando pacientes para serem transferidos para o Egito.

Hospital Al-Quds. Foto: Mohammed Saber/EPA

As consequências dos ataques acrescentaram dezenas de pessoas ao devastador número de mortos registado pelo Ministério da Saúde palestino, que alcança agora mais de 9 mil pessoas. Os mortos e feridos nos ataques incluem pacientes que deveriam ser transportados de Al-Shifa para Rafah, profissionais de saúde e o jornalista Haitham Hararah.

No início de novembro, 14 dos 36 hospitais em Gaza já não estavam em operação devido ao ataque contínuo das forças de ocupação israelenses e ao cerco total da faixa, afirmou o escritório da Organização Mundial de Saúde (OMS) nos territórios palestinos ocupados. Isso inclui o Hospital da Amizade Turco-Palestina, a única instituição que presta cuidados oncológicos em Gaza. Al-Shifa, Al-Quds e o Hospital Indonésio já estavam no limite antes dos ataques de 3/11. Combinados, os três hospitais abrigam aproximadamente 65,5 mil pessoas que foram desalojadas até ao final de outubro – mais da metade de toda a população procurou refúgio em unidades de saúde no dia 2 de novembro.

Os três hospitais também estão sem suprimentos médicos essenciais e contando as últimas gotas de combustível necessárias para acionar os geradores. Horas depois de Al-Shifa ter sido atingido pelo ataque aéreo, o seu gerador principal parou de funcionar, mergulhando o hospital na escuridão e colocando em risco a vida dos pacientes – incluindo aqueles que respiram por meio de ventiladores, bem como bebês em incubadoras. Há dias que os profissionais de saúde do hospital tratam pacientes nos corredores, rodeados por dezenas de milhares de pessoas. Mesmo antes de o gerador principal de Al-Shifa parar de funcionar, o Hospital Indonésio já tinha mudado para as reservas, a fim de acompanhar o suporte de cuidados intensivos.

Nas semanas anteriores aos ataques, Israel emitiu avisos de evacuação aos três hospitais atingidos hoje. As ordens foram recebidas com descrença pela equipe médica, pois não há forma segura de transportar os pacientes, nem local seguro para levá-los. Vendo que as autoridades israelenses não viram problemas em atacar hospitais na Palestina antes mesmo de 7 de outubro, de qualquer forma, os avisos poderiam ter sido apenas uma formalidade. Na verdade, os ataques de Israel a centros de saúde e hospitais, tais como os ataques a escolas e mesquitas, são tudo menos danos colaterais e não intencionais.

Israel tem atacado estabelecimentos de saúde na Palestina ao longo dos anos, numa tentativa consciente de drenar as necessidades básicas da sociedade e romper a resistência. Tem sistematicamente colocado como alvo hospitais, centros de cuidados de saúde primários, serviços de ambulância e profissionais de saúde. Isto inclui tanto ataques físicos, como os que o mundo testemunhou nas últimas semanas, quanto ataques administrativos como os que levaram à proibição dos comitês de saúde que garantiam a Atenção Primária, grande parte em bases voluntárias.

A criação dos comitês de saúde correspondia ao reconhecimento da importância política que a saúde tem na luta por uma Palestina livre: a construção de uma rede independente de serviços de saúde foi e continua a ser parte integrante do movimento de libertação. Os ataques incessantes às infra-estruturas de saúde em Gaza, além de serem verdadeiros atos de terror, são também uma tentativa de reprimir tal movimento. No entanto, apesar das investidas, os profissionais de saúde da Palestina continuam resistindo à pressão. Na verdade, tornam-se mais enérgicos no seu apelo ao mundo para proteger o direito à saúde na Palestina, pondo fim à ocupação.

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