Qualquer escorregão é arma política

Fala confusa de membro da OMS sobre transmissão por assintomáticos é exaltada por Jair Bolsonaro

.

Este texto faz parte da nossa newsletter do dia 10 de junho. Leia a edição inteira.
Para receber a news toda manhã em seu e-mail, de graça, clique aqui.

O tempo dos mal entendidos sem consequências já passou. Ontem, problematizamos aqui as considerações de Maria van Kerkhove, chefe do programa de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS). Na segunda-feira, falando sobre escolhas e estratégias, ela defendeu que os governos foquem nos indivíduos sintomáticos. Segundo ela, as pessoas que contraem o novo coronavírus, mas não desenvolvem sintomas também raramente transmitem o Sars-CoV-2. Não há muita pesquisa sobre isso, de modo que Kerkhove fez referência a relatórios de países que fazem muitos testes e rastreiam as cadeias de infecção. 

A explicação incompleta foi multiplicada sem contextualização por muitos veículos jornalísticos e, claro, usada por políticos mal intencionados, como Jair Bolsonaro. Ontem, o presidente brasileiro comemorou: “Esse pânico que foi pregado lá trás por parte da grande mídia começa talvez a se dissipar levando em conta o que a OMS falou por parte do contágio dos assintomáticos“.

O problema central é que além do vírus ter um tempo de incubação considerável antes de os primeiros sintomas aparecerem, pesquisas já mostraram que a carga viral é particularmente forte nesse período – o que faz dos indivíduos pré-sintomáticos um grande risco. E, bom, até que apareçam os sintomas nada os distingue dos assintomáticos. Então como seria possível aos governos focarem em pré-sintomáticos? Por adivinhação? 

Esse debate foi aparecendo depois, nas redes sociais, mas não durante a coletiva da OMS segunda-feira. E Bolsonaro usou a escorregada da autoridade sanitária para fazer sua pregação preferida: a livre circulação de vírus e pessoas. Sustentou que a declaração de Kerkhove é sinal verde para acelerar a extinção das medidas restritivas e reabrir o comércio.

A defesa foi feita ontem, durante uma reunião ministerial transmitida ao vivo pelo canal oficial do governo, na qual a OMS apareceu ora como base para as ideias bolsonaristas, ora como alvo de críticas do governo brasileiro, que resolveu se alinhar aos Estados Unidos na campanha de difamação do organismo internacional.  

“Aparentemente há falta de independência da OMS, falta de transparência e, sobretudo, coerência em orientações sobre aspectos essenciais… A origem do vírus, o compartilhamento de amostras, o contágio por humanos, os modos de prevenção, a quarentena, o uso da hidroxicloroquina, a indumentária de proteção e agora na transmissibilidade por assintomáticos. Em todos esses aspectos a OMS foi e voltou, às vezes mais de uma vez. Isso nos causa preocupação”, atacou o chanceler Ernesto Araújo.

O vai e vem a que Araújo se refere tem, em muitos dos exemplos que ele próprio usou, a ver com a velocidade inaudita que as pesquisas científicas ganharam nessa pandemia. Pesquisas que, muitas vezes, são disseminadas sem a revisão dos pares. E essa velocidade que leva a erros de avaliação, como no caso mais famoso da hidroxicloroquina. Para alguns pesquisadores, ouvidos pelo New York Timesa OMS tem falhado em separar o joio do trigo e comunicar de maneira objetiva e didática as conclusões dos estudos que têm potencial de orientar as políticas públicas. Eles citam o atraso da Organização em recomendar o uso das máscaras, apesar de um conjunto de pesquisas que apontavam o papel do aerossóis, aquelas gotas de saliva invisíveis, na transmissão. 

Depois da reunião, Jair Bolsonaro voltou a dizer que o Brasil pode deixar o organismo da ONU depois da pandemia e comparou a OMS a “um partido político”. A politização da pandemia feita pelo presidente, por outro lado, não será motivo para que os organismos de saúde nos abandonem. “A Organização continuará trabalhando com o Brasil. Estamos capacitando profissionais de saúde em Manaus e em outras áreas. O Brasil tem uma história de cooperação com a OMS e a Opas, além de um sistema de saúde único, uma joia. Acreditamos que, independentemente da coisa política, nós continuaremos apoiando o Brasil’, disse ontem Marcos Espinal, diretor do departamento de doenças transmissíveis da Organização Pan-americana da Saúde.

Leia Também: