Por que não dá para desvendar a curva brasileira

Falta de exames não é o único problema: mistura de testes PCR e sorológicos torna impossível interpretar dados corretamente

Foto: Gerd Altmann
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O Brasil chegou a 90.188 óbitos e 2.555.518 casos conhecidos de covid-19. Os registros de ontem (1.554 novas mortes e 70.869 novas infecções) foram puxados para cima  pelo estado de São Paulo, que não havia divulgado seu boletim na véspera e somou os dados de terça e quarta. De todo modo, seguimos naquele platô que parece não ter fim: foram em média 1.043 mortes e 46.235 casos diários nos últimos sete dias. 

Mas há uma questão importante que tem passado um tanto desapercebida, em grande parte pela falta de transparência do Ministério da Saúde na divulgação de informações. É que, ao reunir em uma mesma categoria as infecções confirmadas por testes PCR e sorológicos, a pasta deixa de permitir o acompanhamento de como os contágios estão subindo no país. É claro que isso é uma dificuldade desde sempre, dada a falta de testes e a demora para que as amostras colhidas sejam analisadas e os resultados virem registros. Mas, quando só os resultados dos PCR são considerados, é possível ao menos estimar uma evolução. Quando a detecção de anticorpos entra na jogada, tudo fica muito mais nebuloso. 

Em seu boletim de ontem, o Ministério informou que, dos 2,3 milhões de casos positivos registrados até o último dia 25, só 907.147 mil foram detectados por testes PCR. Outros 1.417.921 mil (mais de 60% do total) vieram de testes sorológicos. E isso certamente varia muito entre estados. No Amazonas, por exemplo, ontem foram confirmados 975 novos casos da doença, mas nada menos do que 927 deles via testes de anticorpos. 

Além de esse tipo de teste ter um percentual de erro mais alto – que, em grande escala, acaba gerando informações muito poluídas – há outro problema grave. É que, como sabemos, eles informam se a pessoa já teve contato com o vírus depois de pelo menos uma semana do início dos sintomas. Ele pode dar positivo na semana seguinte à infecção, ou três meses depois, e não dá para saber em que momento a contaminação aconteceu. Quando um estado mostra seu número de novos casos confirmados – ou quando se diz que os novos casos subiram 36% no país em uma semana – , pode haver no meio dessa conta pessoas que ficaram doentes há poucos dias ou no começo da pandemia. Ou seja: é impossível avaliar de verdade como a curva está se comportando.

Para a tomada de decisões importantes, como o fechamento ou abertura de estabelecimentos e serviços, o número simplesmente não serve. Para o controle da pandemia, que depende do isolamento de infectados, tampouco. 

O Brasil não é o único a fazer isso (aliás, a falta de padronização no registro de infecções e mesmo de mortes é algo que dificulta bastante a comparação entre países). Quando, em maio, ficou claro que os Estados Unidos estavam usando essa tática para expandir sua capacidade de testagem, choveram críticas. “O teste PCR mostra quantas pessoas estão sendo infectadas, enquanto o teste de anticorpos é como olhar no espelho retrovisor. Os dois testes são sinais totalmente diferentes”, sublinhou, na revista The Atlantic, o diretor do Instituto de Saúde Global de Harvard Ashish Jha. E resumiu: a combinação dos dois tipos de resultado os torna “ininterpretáveis”

Ficaram encalhados

Não é só por falta de testes PCR que as incertezas se multiplicam. O Estadão informa que o Ministério da Saúde tem, guardados em seus estoques, 9,85 milhões de testes desse tipo – é quase o dobro dos cinco milhões entregues até agora a estados e municípios. E o principal motivo para isso é que faltam os insumos necessários para processar as amostras. Desde reagentes até cotonetes e tubos de laboratório. Também nos estados, os testes que chegam ficam encalhados esperando a chegada dos outros produtos. Segundo o Conass (conselho que reúne secretários estaduais de saúde), os reagentes não são entregues “com regularidade” pela pasta, e faltam vários equipamentos usados na análise. 

Sinais tardios

Como as curvas são pouco confiáveis, estados e municípios acabam tomando decisões a partir de sinais tardios: taxas de internações e número de mortes. Nos últimos 60 dias, caiu a ocupação de leitos de UTI em 16 estados, enquanto, em 11, ela cresceu. Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina e Sergipe estão nas piores condições, com mais de 80% dos leitos ocupados. Mas é claro que essa taxa depende da quantidade de leitos disponíveis, e um descrescimento não necessariamente indica que os contágios estejam diminuindo. No Rio Grande do Norte, a ocupação caiu de 86% para 63% em uma semana – não porque haja menos infectados, mas porque foram abertos novos leitos. Já em Pernambuco, a taxa ficou estável em 75%, apesar da abertura de novas vagas: nesse caso, a estabilidade é um mau sintoma.

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