Por que excluir a Saúde do “arcabouço fiscal”

Frente pela Vida prepara-se para propor, à sociedade e ao Congresso, alteração do projeto. Um dos coordenadores da rede sustenta: se o governo quer cumprir seus compromissos sociais, não pode limitar o investimento público

Foto: Prefeitura de João Pessoa/PB
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Túlio Batista Franco em entrevista a Gabriela Leite

O “arcabouço fiscal”, proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não pode ignorar os anos de desmonte de políticas sociais. Essa a posição da Frente pela Vida, grande rede de movimentos sociais relacionados com o tema da Saúde Pública, foi detalhada por Túlio Batista Franco, um dos coordenadores da rede, na entrevista abaixo. A sugestão da Frente é que se aprove uma emenda ao Projeto de Lei Complementar 93/2023, que regulamenta o tema, para que não apenas Saúde, mas também Educação, Ciência & Tecnologia e Direitos Humanos sejam postos fora dos limites fiscais.

O “arcabouço fiscal” de Haddad, explica Túlio, é uma grande melhora em relação ao chamado “teto de gastos” imposto durante o governo de Michel Temer – mas um teto continua a existir. Em termos gerais, ele estipula que o gasto público só poderá crescer o equivalente a 70% dos recursos obtidos com o aumento da arrecadação de impostos. E isso, dentro de um limite máximo de 2,5% do PIB – e mínimo de 0,6%. Segundo estudos registrados em matérias do Outras Palavras, essas regras fiscais podem enforcar o governo Lula. Apenas como comparação: no segundo governo de Lula 2, entre 2007 e 2010, o gasto social cresceu, em média, 6% do PIB ao ano – mais do dobro do máximo previsto agora.

Túlio argumenta: “Os dados mostram que o limite de 2,5% é muito baixo, e pode dificultar que o Estado continue sendo a grande alavanca do crescimento econômico, o único capaz de agir de forma eficaz contra as crises cíclicas da economia”. Ele continua: “Amarras muito severas na economia podem colocar uma trava no governo, e dificuldades em cumprir com as necessidades urgentes de investimento social e na saúde”.

Em documento em que comunicou a sua posição, a Frente defende: “o SUS está presente em todos os rincões do país, levando o cuidado a todas as pessoas. Ao mesmo tempo sofreu com um subfinanciamento crônico, e nos últimos anos sofreu com o desfinanciamento, cortes nominais de bilhões de reais do seu orçamento, em uma tentativa de asfixiar e precarizar as redes de assistência à saúde”.

Leia a entrevista completa

Há ainda uma diretriz de financiamento do SUS da qual a Frente pela Vida não abre mão, por entender que poderá garantir enormes avanços no sistema: o de que o investimento em Saúde Pública seja de pelo menos 6% do PIB – hoje, ele representa apenas 3%. Túlio ensina que essa mudança é necessária porque colocaria o Brasil próximo da realidade dos principais sistemas de saúde públicos do mundo. Por aqui, o investimento privado é maior que o proveniente do Estado – outra discrepância apontada por economistas da saúde.

“A Frente pela Vida não é contrária a uma regra fiscal”, pondera Túlio. “Nossa proposta atua por dentro do Projeto de Lei Complementar que propõe o ‘arcabouço fiscal’. Visa contribuir de forma propositiva e solidária ao governo, para criar uma emenda a este projeto, protegendo as políticas sociais das restrições do cálculo da regra fiscal proposta.” Ele entende que há espaço para fazer críticas populares ao governo Lula sem resvalar para os ataques da oposição: “a maior fonte de governabilidade está no apoio da população, dos movimentos sociais”, afirma.

A Frente pela Vida não limita seu olhar à Saúde: em seu posicionamento, está destacado também que a Educação, a Ciência & Tecnologia e os Direitos Humanos devem da mesma forma sair do “teto”. “São políticas praticamente inseparáveis, e que se manifestam intensamente no interior da sociedade, nos próprios territórios de vida das pessoas”, defende Túlio. Ele ainda acredita que a decisão da Frente pela Vida, tomada após duas plenárias e por unanimidade, pode influenciar outros setores: “acredito que a partir daí os segmentos sociais devem procurar estudar que efeitos que o arcabouço fiscal tem em suas políticas setoriais e verificar que diálogo devem manter com esse projeto de lei e com o Congresso Nacional”.

Fique com a entrevista completa.

Você pode explicar qual a posição da Frente pela Vida em relação ao “arcabouço fiscal”?

A posição da Frente pela Vida em relação ao arcabouço fiscal parte de um pressuposto, que é a grande perda de financiamento que o sistema de saúde teve nos últimos quatro anos, na ordem de mais de 40 bilhões de reais. Isso em um momento em que houve aumento da população e aumento do adoecimento causado pela covid, o que pressionou ainda mais a demanda de atendimento e cuidado de saúde. Devido a essa defasagem, é necessário fazer uma recomposição do orçamento da saúde. Essa é a primeira questão.

A segunda questão é que nós temos como meta atingir o patamar de o mínimo 6% de investimento público na Saúde – e que ao menos 3% sejam de investimento federal, acompanhando os países desenvolvidos. Essa meta está ligada a um outro objetivo: inverter a origem do investimento dos atuais 40% público e 60% privado, para que seja majoritariamente público. É assim que se dá na maioria dos países desenvolvidos, o maior percentual é público e acima de 6% do PIB.

Esses objetivos de recomposição do orçamento da saúde em função de uma grande necessidade de fortalecimento do SUS fez com que nós, ao examinarmos o “arcabouço fiscal”, sentíssemos uma certa preocupação em relação à capacidade de respostas do governo às necessidades sociais, diante de tantas amarras que o novo regime fiscal lhe impõe. Em especial com o fato de os gastos com Saúde estarem inseridos no cálculo. 

Porque nós entendemos que o “arcabouço fiscal” estabelece um novo teto de gastos, que restringe o investimento público a 70% da variação real da receita do ano anterior, limitado a 2,5% como crescimento máximo das despesas, que é baixo para as grandes necessidades de investimentos sociais, e da Saúde em particular. Para se ter uma ideia, durante os governos Lula 1 e 2 e Dilma, ano a ano, o crescimento das despesas públicas federais foi sempre superior ao que se propõe na nova regra fiscal. Na crise econômica de 2008, o governo foi a grande alavanca que evitou seus efeitos nocivos à economia brasileira, através de investimento público.

Os dados mostram que o limite de 2,5% é muito baixo, e pode dificultar a que o Estado continue sendo a grande alavanca do crescimento econômico, o único capaz de agir de forma eficaz contra as crises cíclicas da economia. Amarras muito severas na economia podem colocar uma trava no governo, e dificuldades em cumprir com as necessidades urgentes de investimento social e na saúde.

Nos preocupamos com a saúde, mas estendemos nossa apreensão também para os segmentos da Educação, Direitos Humanos, Ciência e Tecnologia, por serem políticas associadas à Defesa da Vida, Proteção e Bem-Estar. Então a Frente pela Vida resolveu propor que esse “arcabouço fiscal” que foi apresentado ao Congresso, através do Projeto de Lei Complementar (PLP) 93/2023, receba uma emenda que retire os gastos destes segmentos do cálculo.

Essa é a posição da Frente pela Vida, que vem se somando a todas as entidades do país, governamentais ou não governamentais, no esforço de reconstrução do Brasil. Apoiamos as iniciativas do governo que envolvem o esforço de recuperar as políticas sociais e públicas. Entendemos a necessidade de haver uma regra de ajuste fiscal, mas entendemos, ao mesmo tempo, que essa regra deve proteger as políticas sociais que são imprescindíveis à condição humana, e que estão inscritas na Constituição Federal como de direito fundamental.

Como os movimentos sociais podem agir neste momento de fragilidade democrática, enquanto a oposição de ultradireita busca brechas para desacreditar o governo? O que fazer quando precisam fazer a crítica ao que foi posto pelo governo Lula, cuja eleição foi garantida por esses próprios movimentos?

A Frente pela Vida não é contrária a uma regra fiscal. Entendemos a necessidade de uma regulação que busque uma certa estabilidade macroeconômica. Por isso nossa proposta atua por dentro do Projeto de Lei Complementar que propõe o “arcabouço fiscal”, no sentido de contribuir, de forma propositiva e solidária ao governo, para criar uma emenda a este projeto, protegendo as políticas sociais das restrições do cálculo da regra fiscal proposta.

Nós achamos que, assim, estamos dialogando de forma produtiva com o governo e com o Congresso Nacional. Um diálogo no sentido de ao mesmo tempo apoiar que haja regras, mas de dizer que elas precisam também contemplar a extrema necessidade que temos de financiamento das políticas sociais. É uma medida urgente, depois de enfrentarmos um governo ilegítimo que veio de um golpe em 2016, em seguida quatro anos de autoritarismo neofascista e uma pandemia na qual o governo atuou de forma genocida, enfraquecendo o próprio sistema de saúde.

O Congresso Nacional precisa entender que o ajuste fiscal tem que proteger essas políticas que dão segurança e proteção à vida da população, que asseguram direitos. A Saúde, Educação combinada com Ciência e Tecnologia, Direitos Humanos, são fatores inclusive de desenvolvimento do país. Essas questões não podem ser perdidas de vista. É por isso que, com objetividade e buscando o diálogo, nós vamos propor ao Congresso essa emenda que retira estes segmentos do cálculo do arcabouço fiscal.

Mas, ao mesmo tempo, estamos fazendo isso de forma dialógica, propositiva e produtiva – ou seja, o arcabouço fiscal pode existir, mas em uma configuração diferente da que foi apresentada. A base da sociedade tem uma enorme expectativa com esse governo, e essa expectativa não pode ser frustrada, ou seja, nos preocupa a capacidade do governo investir o suficiente nas políticas sociais, como foram seus compromissos. Eu diria o seguinte: a maior fonte de governabilidade está no apoio da população, dos movimentos sociais, porque na medida em que se tem o apoio desses setores, e ampliam-se as possibilidades do governo. Essa é a questão importante.

O diálogo que a Frente pela Vida pretende fazer é produtivo, achamos que arcabouço pode ser reconfigurado para atender de forma mais segura as principais políticas sociais.

Qual o plano de atuação da Frente pela Vida para somar-se ao debate público e colocar sua posição?

A Frente pela Vida soltou um documento oficial constando sua posição. Nós vamos participar do lançamento, no dia 10 maio, da Frente Parlamentar de Defesa do Sistema Único de Saúde, em Brasília, onde vamos entregar nosso documento. E, nessa oportunidade, vamos marcar também uma audiência com a relatoria do projeto de lei 93/2023 e fazer uma visita às bancadas da Câmara Federal e do Senado Federal para levar nossa proposta. Pretendemos ainda dar conhecimento da nossa posição, através de audiência com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, com a ministra da Saúde, Nísia Trindade e o ministro da Educação, Camilo Santana. Queremos nos reunir também com a ministra Simone Tebet, do ministério do Planejamento, que está envolvida com essa discussão.

Vamos fazer, então, um amplo processo de discussão e manifestação da posição da Frente pela Vida, tanto no Congresso Nacional quanto com alguns ministérios. Nossa posição está sendo difundida pelas centenas de entidades que participam da Frente, e decidiram de forma unânime em nossa plenária nacional por esta proposta. Entendemos que, com isso, podemos impactar uma parcela grande da população brasileira em torno dessa questão. E queremos sensibilizar tanto o relator do PL do novo regime fiscal quanto os parlamentares que vão decidir sobre a matéria no Congresso Nacional. É essa a esperança que nós temos.

Você acha que essa decisão pode influenciar outros setores?

Nós esperamos que sim. Nesse momento nós focamos em Saúde, Educação e Ciência e Tecnologia, Direitos Humanos. São políticas praticamente inseparáveis, e que se manifestam intensamente no interior da sociedade, nos próprios territórios de vida das pessoas. Há uma grande inserção na sociedade, nas comunidades há sempre uma escola, uma unidade de saúde, pessoas necessitando de proteção, que refletem nas políticas e em torno de projetos comuns. Então nós focamos nessas áreas, mas acredito que a partir daí os segmentos sociais devem procurar estudar que efeitos que o arcabouço fiscal tem em suas políticas setoriais e verificar que diálogo devem manter com esse projeto de lei e com o Congresso Nacional.

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