Como recuperar os hospitais federais do Rio de Janeiro

Com Bolsonaro, foi entregue aos militares, que cortaram leitos e serviços. Agora, é possível resgatá-los, recuperando sua capacidade produtiva e a integração na rede. De atenção integral, podem prestar serviços essenciais aos brasileiros

Foto: Divulgação
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Gilberto Scarazatti em entrevista a Gabriel Brito

Histórico palco de disputas políticas, os hospitais federais do Rio de Janeiro são um importante braço do sistema público de saúde. Herança da época em que o Rio era a capital, tais estruturas fazem parte de uma rede que inclui importantes institutos, como os do Câncer e de Cardiologia – e foram outra faceta da tragédia dos anos Bolsonaro na área da saúde. Em abril, a ministra da Saúde Nísia Trindade nomeou uma nova equipe para a Diretoria de Gestão Hospitalar (DGH), que cuidará deste importante departamento do ministério da Saúde.

No governo anterior, o DGH foi importante feudo dos militares, que assim puderam influenciar importante manancial de cargos e verbas. À população e profissionais de saúde, restou a precarização e abandono, com obras inacabadas, especialidades inteiras fechadas e precarização da força de trabalho, a ponto de milhares de profissionais terem seus contratos renovados por decisão judicial a fim de evitar um colapso ainda maior na prestação de serviços.

Ao Outra Saúde, Gilberto Scarazatti, médico com experiência na assessoria dos hospitais federais, explica a importância dessa estrutura cujos atendimentos não se restringem à população carioca e terão um importante papel na redução das filas de cirurgias do SUS. “Acredito que ocorrerá melhorias na integração sistêmica dos hospitais federais do Rio de Janeiro. A ministra tem vivência real desta situação e sua concepção, observadas algumas declarações, são de recuperação da capacidade produtiva e da integração”, explicou Scarazatti.

Ele se refere às intensas lutas de bastidores pelo controle desse filão da saúde pública, que inclusive retardaram a nomeação da nova diretoria, que será comandada por Alexandre Telles, presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro. “Essas disputas são herança patrimonialista do Estado brasileiro e, neste sentido, ainda atuam como reservas patrimoniais de corporações, da tradição médica carioca e das forças políticas que operam o patrimonialismo brasileiro”, completou.

Em sua visão, apesar da queda de braço histórica, o ministério de Nísia poderia aproveitar o momento para iniciar uma transição de parte dessas estruturas para estado e município do Rio.

“Não acho necessário que todos os hospitais federais do Rio de Janeiro continuem sob gestão federal, ao mesmo tempo em que considero que parte significativa deles deva continuar, em especial os institutos, mas também alguns hospitais. Acredito que os demais entes, governo estadual e municipal, não detenham estrutura e força para assumir a totalidade destes hospitais, mesmo que preservemos os institutos desta abordagem, mas é muito importante iniciar um projeto de progressão de transferência de gestão”, pondera.

De toda forma, há muito tempo perdido a ser recuperado. Neste início de ano, o governo federal já conseguiu reabrir 305 leitos dos 593 que se encontravam fechados sem justificativa no último ano.

“O principal a fazer seria a recuperação da capacidade produtiva; o segundo seria a integração efetiva dos serviços em redes, a despeito de qual seja a governança. A população não pode sofrer ainda mais o sucateamento, o distanciamento destes serviços da dinâmica do SUS local, estadual e nacional, pois os hospitais federais têm alcance nacional para muitos serviços que realizam e muito a contribuir com um SUS de fato interfederativo”.

Como mostrou relatório produzido especificamente sobre os hospitais federais, o abandono dos hospitais cariocas causou fortes estragos. E trata-se de uma estrutura preciosa da qual o Estado brasileiro não pode prescindir na produção de serviços de saúde de qualidade, inclusive em termos de processo formativo de seus profissionais.

Como são hospitais completos, ou seja, possuem recursos de diagnóstico e de produção dos procedimentos cirúrgicos, podem atuar com resolução integral. Esses hospitais podem realizar os exames, os procedimentos, se necessário atuar sobre as intercorrências e podem realizar as avaliações dos especialistas em complemento, realidade distinta da imensa maioria dos hospitais brasileiros.

Confira a entrevista de Gilberto Scarazatti ao Outra Saúde.

Como foi sua experiência na participação da gestão dos hospitais federais? Existem muitas disputas políticas fisiológicas em torno deste filão do sistema público de saúde?

Tive participações como “apoiador” do Ministério da Saúde nos anos de 2004, 2005 e de 2010 até 2013 nos Programa QualiSUS e SOS Emergências, respectivamente. Ambos os programas objetivaram qualificar as emergências hospitalares de vários hospitais do Rio de Janeiro e dentre eles os hospitais federais de Andaraí e Bonsucesso. Em síntese, as emergências de ambos eram superlotadas e sucateadas. Respondiam por demandas gigantescas de suas respectivas regiões. A cidade do Rio de Janeiro, à época vivia e vive um imenso desencontro interfederativo, ou seja, os diferentes entes de governança têm baixa afinidade e não planejam em conjunto, ou sequer agem solidariamente.

Construímos projetos de recuperação física e tecnológica das emergências destes dois hospitais federais no programa QualiSUS. Já no programa SOS Emergências atuamos na qualificação das equipes das emergências, além da recuperação predial e tecnológica. Outros hospitais municipais e estaduais do município do Rio de Janeiro estiveram incluídos nos mesmos programas. No caso dos hospitais federais de Andaraí e Bonsucesso, as “obras” ainda estão incompletas. Os hospitais Miguel Couto e Souza Aguiar, municipais, completaram as agendas de obras, de equipamentos e receberam capacitações clínicas em emergência entre o curso dos dois programas. No caso dos hospitais estaduais, alguns evoluíram na qualificação e em tecnologia, como o Albert Schweitzer por exemplo.

Entre os inúmeros motivos para a baixa adesão dos hospitais federais aos programas elejo alguns:

  1. Resistência corporativa interna dos hospitais;
  1. Gestão entrecortada entre diferentes atores: nos hospitais, no departamento de gestão situado no Rio de Janeiro e no próprio ministério da Saúde, dificultando a tomada de decisões;
  1. Sucateamento desproporcional em termos físicos (nas emergências) e tecnológicos;
  1. Envelhecimento da força de trabalho, desatualização técnica e precarização dos recursos humanos substitutivos com alta rotatividade e baixa fixação de equipes (principalmente nas emergências).

A falta de estruturação de redes e de integração regulatória, entre tantos outros motivos nas relações de sistema e interfederativas, manteve estes serviços em “estado de autonomia”. O programa terminou sem que a maior parte dos recursos tivesse sido empregada nos projetos de qualificação das emergências dos dois hospitais federais aqui citados.

Recentemente, neste ano de 2023, tive notícias de que ambas as reformas das emergências do Andaraí e Bonsucesso não estão totalmente concluídas.

Qual o peso dessa rede de hospitais do Rio no SUS?

São cerca de 2.000 leitos! É uma distinção específica pela quantidade de recursos estruturais. Um orçamento anual aproximado de 5 bilhões de reais, outra distinção significativa. Uma baixa produção proporcional, portanto, um custo de efetividade elevado. Por outro lado, concentra conhecimento técnico, formação em serviço, que é o ensino aplicado como residências, estágios e especializações distintos. Os hospitais federais, somados aos institutos, representam recursos de resolução exclusivos em relação aos dois outros entes e seus hospitais próprios, não somente em volume, mas em especificidade e em notoriedade, como o Instituto Nacional do Câncer (INC), o Instituto Nacional de Cardiologia (INC) e o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO).

São herança patrimonialista do Estado brasileiro e, neste sentido, ainda atuam como reservas patrimoniais de corporações, da tradição médica carioca e das forças políticas que operam o patrimonialismo brasileiro.

Não acho necessário que todos os hospitais federais do Rio de Janeiro continuem sob gestão federal, ao mesmo tempo em que considero que parte significativa deles deva continuar, em especial os institutos, mas também alguns hospitais. Acredito que os demais entes, governo estadual e municipal, não detenham estrutura e força para assumir a totalidade destes hospitais, mesmo que preservemos os institutos desta abordagem, mas é muito importante iniciar um projeto de progressão de transferência de gestão.

Ao mesmo tempo, a integração num mesmo sistema de saúde pode avançar e têm ocorrido avanços no sistema de regulação e de disponibilização de recurso em redes, porém, modestamente, com idas e vindas de maior integração e retrocessos. Aqui, não podemos considerar que esta resultante da baixa integração sistêmica dos hospitais federais seja obra exclusiva dos próprios hospitais, pois pesa muito a capacidade dos demais gestores de interagirem com esta dinâmica.

O que pensa das primeiras medidas e nomeações do ministério da Saúde para o departamento que cuidará desta rede sediada no Rio de Janeiro?

Acredito que ocorrerá melhorias na integração sistêmica dos hospitais federais do Rio de Janeiro. A Ministra tem vivência real desta situação e sua concepção, observadas algumas declarações, são de recuperação da capacidade produtiva e da integração. Ao mesmo tempo acho que não ocorrerão transferências, pois ainda pesam contrariamente as forças corporativas internas dos serviços hospitalares.

No âmbito nacional, que direcionamento gostaria ver do ministério da Saúde para os hospitais federais? Quais seriam os principais gargalos?

O principal seria a recuperação da capacidade produtiva e o segundo seria a integração efetiva dos serviços em redes, a despeito de qual seja a governança. A população não pode sofrer ainda mais o sucateamento, o distanciamento destes serviços da dinâmica do SUS local, estadual e nacional, pois os hospitais federais têm alcance nacional para muitos serviços que realizam e muito a contribuir com um SUS, de fato interfederativo.

Os hospitais federais podem ser chave no encaminhamento de atendimentos de média e alta complexidade do SUS e também no novo esforço em se zerar a fila de cirurgias e procedimentos médicos lançado pelo ministério?

Para o Rio de Janeiro sim, sem qualquer dúvida. Precisam ser recuperados técnica e fisicamente e nos quadros de recursos humanos. A contrapartida dos hospitais federais à gestão de fila, desde que recuperados, vai muito além do número de procedimentos e da diversidade de sua produção, pois são geradores de movimento e de opinião, influenciam ou podem influenciar a produção nos demais serviços do SUS.

Mudanças significativas entre os momentos dos programas que citei acima e os dias de hoje vêm ocorrendo, tanto na tecnologia dos procedimentos cirúrgicos e na forma de resolvê-los como na agilidade de soluções necessárias. Como são hospitais completos, ou seja, possuem recursos de diagnóstico e de produção dos procedimentos cirúrgicos propriamente, podem atuar com resolução integral. Explicitando, podem realizar os exames, os procedimentos, se necessário atuar sobre as intercorrências e podem realizar as avaliações dos especialistas em complemento, realidade distinta da imensa maioria dos hospitais brasileiros.

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