A luta da Saúde por um orçamento digno

Francisco Funcia, da ABrES, reflete sobre como o “arcabouço fiscal” afetará o SUS. E sustenta: flexibilizar as amarras que restringem o gasto público pode, além de tudo, fazer com que a economia cresça

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Em entrevista a Gabriel Brito

As discussões sobre o “arcabouço fiscal” proposto pelo ministério da Fazenda mobilizaram o país nas últimas semanas. Surgiram  interpretações diversas sobre a possibilidade real de o novo regramento permitir a retomada dos investimentos públicos. Nesta semana, Simone Tebet, ministra do Planejamento, anunciou a proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024, baliza do orçamento do governo. No evento de lançamento, afirmou que o novo arranjo adiciona R$ 172 bilhões em investimentos públicos. Confiante, a ministra ainda destacou que “o teto de gastos morreu”.

No entanto, uma análise mais atenta não parece permitir grande euforia. As regras, ainda não inteiramente compreendidas pelo público, parecem manter em dia as amarras sobre o orçamento público, tratados quase como um estorvo para o pensamento neoliberal, cujas ideias fracassaram a olhos vistos no Brasil. Ao Outra Saúde, Francisco Funcia, da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), analisa o novo arcabouço à luz da urgência do povo brasileiro em ver uma retomada de políticas sociais.

“O novo arcabouço fiscal ainda nos traz preocupação, embora abra uma flexibilidade para aumento das despesas. Mesmo que seja completamente diferente do que vigorava na lógica da Emenda Constitucional (EC) 95, o chamado teto de gastos congelados, estabelece parâmetros que ainda colocam muita restrição à possibilidade do crescimento econômico, à medida que também restringe o crescimento das despesas”, alertou.

Em sua visão, o novo pacto ainda mantém fortes controles sobre o papel do governo federal como indutor de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento social e econômico. Restrições que prejudicam inclusive o setor privado, uma vez que o gasto público é indutor de toda uma série de atividades econômicas que aquecem a economia real.

“Se a despesa não pode passar de 70% do crescimento da receita, ao longo do tempo se formarão superávits muito grandes, em detrimento ao atendimento das necessidades da população. Por isso é necessário saber como se chegou a tal parâmetro e quais metas ele carrega dentro de si”, questionou o economista.

A seu ver, as novas regras trazem avanços frente ao teto de gastos e seu conceito quase ditatorial de congelar investimentos por 20 anos. Mesmo assim, a sociedade precisa se apropriar do debate a fim de superar a atual correlação de forças, castradora do papel do setor público. Para Funcia, “em hipótese alguma a flexibilização de tais parâmetros colocará em risco a saúde fiscal do Brasil”.

O debate aqui colocado é uma excelente ilustração dos embates pelo orçamento público, sequestrado de forma quase sem precedentes por uma oligarquia financeira que dilacera a sociedade. Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, segue a fazer suas ameaças pela mídia associada ao sistema financeiro, ao afirmar que a batalha contra a inflação ainda não acabou e ela pode voltar no segundo semestre, um recado de que seu apego às bizarras taxas de juros brasileiras segue intacto. Cabe à sociedade continuar a pressionar por uma garantia duradoura de financiamento da política pública, para além da transitoriedade dos governos.

“Outra questão fundamental é pensar os pisos da Saúde e Educação, que precisam continuar constitucionais. Transformá-los em lei complementar, como vi algumas pessoas do ministério da Fazenda falando, preocupa porque facilita mudanças quando tivermos governos contrários à prioridade social”, explicou Funcia.

É neste aspecto que a ABrES, da qual é diretor, entra com sua contribuição, uma vez que produz conhecimentos geradores de novos conceitos e debates que podem repercutir na busca pelo bem estar social. Na entrevista, Funcia afirma a necessidade do estabelecimento de pontos de partida e de chegada com a nova política econômica e elenca três propostas complementares ao setor da saúde em consonância com o novo arcabouço, a fim de se atingir taxas de investimentos em saúde da ordem de 10% do PIB (entre gastos públicos e privados) em 10 anos.

Confira a entrevista com Francisco Funcia.

A LDO 2024 prevê aumento de R$ 172 bilhões nos gastos da união. Ao explicar a peça orçamentária, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, afirmou que o chamado teto de gastos acabou e fez referência ao novo arcabouço fiscal como mecanismo que permite esse aumento. Como você analisa essa LDO e que impactos acredita que tal aumento pode ter?

A primeira coisa a reconhecer é que foi a primeira vez nas últimas décadas que um governo assumiu o compromisso de pensar a questão fiscal de forma associada às necessidades de recursos para várias áreas, especialmente saúde e educação, colocadas como prioridade.

No entanto, o novo arcabouço fiscal ainda nos traz preocupação, embora abra uma flexibilidade para aumento das despesas. Mesmo que seja completamente diferente do que vigorava na lógica da Emenda Constitucional (EC) 95, o chamado teto de gastos congelados, estabelece parâmetros que ainda colocam muita restrição à possibilidade do crescimento econômico, à medida que também restringe o crescimento das despesas.

Por exemplo, há um limite de crescimento da despesa correspondente a 70% do crescimento da receita. É um parâmetro que precisamos entender como foi construído. Como se chegou a isso? É muito restritivo, dadas as condições que o Brasil passou, especialmente nos últimos quatro anos. A crise exige um trabalho de reconstrução em várias áreas sociais e de infraestrutura, coisas que demandam recursos. E não dá para pedir à população que já ficou penalizada esperar mais.

Portanto, temos de buscar mecanismos para ser mais flexíveis comparativamente aos parâmetros que estão sendo colocados, porque em hipótese alguma a flexibilização de tais parâmetros colocará em risco a saúde fiscal do Brasil. Pelo contrário, gerará condições para que a economia cresça, para que o setor privado cresça e se fortaleçam também as contas públicas, por conta do crescimento econômico.

Por que em seu entendimento o novo arcabouço limita a atividade econômica, tanto do setor público como privado?

Se entendemos que o setor público representa algo em torno de 35% do PIB, dividido entre governos federal, estaduais e municipais, sendo o peso federal maior, veremos que ele realiza despesas através, por exemplo, da contratação de coisas produzidas pelo setor privado. Ao pagar funcionários, permite que com seus salários consumam produtos geradas no setor privado.

Vou dar o exemplo da Saúde: dois terços de seu orçamento são de transferências a estados e municípios. O setor de saúde, privado e público, representa 10% do PIB. Gastar mais em Saúde gera um efeito dinâmico sobre a economia como um todo. O chamado gasto público, às vezes associado a algo prejudicial ao setor privado, tem um efeito multiplicador sobre o conjunto da atividade econômica. É o que a proposta do novo arcabouço fiscal deixa claro. Por isso mudou a regra e se estabeleceu a possibilidade de crescimento da despesa.

Talvez os parâmetros aqui colocados devam ser mais debatidos com a sociedade, pois ainda são um pouco restritivos. Se a despesa não pode passar de 70% do crescimento da receita, ao longo do tempo se formarão superávits muito grandes, em detrimento ao atendimento das necessidades da população. Por isso é necessário saber como se chegou a tal parâmetro e quais metas ele carrega dentro de si.

E quais deveriam ser as metas? Considera decisivo que Saúde e Educação fiquem fora do arcabouço para garantir patamares maiores de investimento público, como se ventila em algumas outras áreas, como financiamento de estatais, acordos sobre precatórios e repasses a estados e municípios?

Esse é um dado positivo do arcabouço, que tirou a limitação relacionada com a receita nos campos da Saúde e da Educação. É óbvio que tirá-las não quer dizer que estão com a possibilidade de crescimento ilimitado. O objetivo fundamental é saber claramente qual a meta. 15% da receita corrente líquida, como o governo já declarou, é o ponto de partida, o momento de transição. Acabou a EC-95 e retornam os 15% da receita corrente líquida como patamar de investimento, conforme a EC-86. Esse é o ponto de partida, mas não é o ponto de chegada. Aonde queremos chegar? É isso que precisamos entender um pouco melhor na proposta.

Outra questão fundamental é pensar nos pisos da Saúde e Educação, que precisam continuar constitucionais. Transformá-los em lei complementar, como vi algumas pessoas do ministério da Fazenda falando, preocupa porque facilita mudanças quando tivermos governos contrários à prioridade social.

Portanto, colocar na Constituição os pisos da Saúde e da Educação é algo fundamental. São áreas que devem se manter protegidas, com regras claras que não permitam redução de valores e gradativamente cresçam de valor em termos reais.

Como enxerga as críticas à esquerda, elaboradas por alguns economistas que não têm certeza se tal arcabouço permitirá aumento real dos investimentos públicos em áreas sociais, como a Saúde, comparando com os anteriores governos Lula, em que as taxas de investimentos anuais do Estado seriam superiores?

Mais do que pensar comparativamente com um outro período, porque também era um outro contexto, acho que elas precisam trabalhar com quais metas estão colocadas, ou seja, aonde se espera chegar, por exemplo, na Saúde. Onde se espera chegar com os gastos em Saúde na perspectiva da recuperação e do incremento dos gastos? Existem propostas como a da ABrES, que apontam para um gasto federal equivalente a 3% do PIB em 10 anos, por exemplo.

Não é vincular ao PIB, mas é ter como uma referência e partir de um valor per capita, com fatores de crescimento real até chegar, num determinado prazo, àquela meta. É isso que está em discussão. O mais importante é ter na própria proposta do governo a noção de onde se quer partir e aonde se espera chegar.

Em linhas gerais, essas novidades satisfazem as propostas da ABrES em que medida?

Somos a favor de fatores de correção a serem aplicados sobre um valor per capita calculado a partir da média das despesas empenhadas em 2020 e 2021 ou a partir do valor que está sendo adotado neste ano como referência de piso para saúde (15% da Receita Corrente Líquida).

São eles: a) Fator de Atualização Monetária (variação do IPCA);

b) Fator de Redução de Iniquidade, isto é, parcela da taxa de crescimento médio real anual dos gastos tributários com despesas médicas no Imposto de Renda entre 2004 e 2019 ou metade do crescimento médio real anual do gasto tributário com planos de saúde no IR entre 2004 e 2018;

c) Fator do Envelhecimento Populacional: crescimento da participação da população idosa sobre o total da população nos últimos anos.

Em resumo, essa é a proposta da ABrES para um incrementar os recursos para o SUS de forma gradual, mas que cresce anualmente, de modo a se conseguir que 60% dos gastos totais em saúde sejam públicos (atualmente, dos 9,6% do PIB gastos em saúde, a fatia pública seria de 6%). E dentro destes gastos públicos, 50% deveriam ser federais (ou, na situação atual, 3% do PIB).

Isso colocaria o Brasil em situação parecida com o cenário internacional, no qual cerca de 70% do gasto total em saúde é público.

O novo arcabouço fiscal, ainda que seja visto como um avanço frente ao teto de gastos, segue em disputa?

Diferentemente dos pisos, a regra fiscal não pode ser constitucional. Corretamente, pensa-se em colocá-la como lei complementar. E vejo como uma transição. Sem dúvida nenhuma é um avanço em relação à EC-95, e tem de ser avaliado à luz da correlação de forças que existe agora, o quanto podemos mudar no momento ou poderemos construir de forma gradual um processo de mudança. Mas é bom entender que já se aponta para uma mudança, ainda que algumas questões precisem ser melhor debatidas com segmentos da sociedade.

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