Para reconstruir a indústria brasileira de medicamentos

Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública aponta os fatores que levaram a produção nacional a perder força e autonomia. E indica, em meio ao processo da Conferência Livre de Saúde, caminhos para sua recuperação

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Jorge Bermudez em entrevista a Gabriela Leite

O Brasil poderia seguir outro rumo no que diz respeito à garantia de acesso a medicamentos e tecnologias de saúde a sua população. Ontem, o Outra Saúde publicou uma nota em que discutia a recusa do Congresso Nacional em discutir a lei de quebra de patentes em momentos de emergência. A lei 14.200/21 foi sancionada por Bolsonaro com vetos que inviabilizam a produção nacional de fármacos capazes de ajudar no combate à pandemia de covid. Esses vetos ainda podem ser derrubados – e há apoio popular para isso. Mas essa lei seria suficiente para impulsionar a indústria brasileira de medicamentos e vacinas?

Para refletir em torno dessa questão, no momento em que a Conferência Livre de Saúde debate rumos para um SUS fortalecido e ampliado, conversamos com Jorge Bermudez, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fiocruz, e membro do Painel de Alto Nível do secretário-geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos. Ele critica a interferência de Bolsonaro na lei de suspensão de patentes, os lucros obscenos da indústria farmacêutica e as desigualdades causadas por essa lógica. Condena o chamado “teto de gastos”, que contribui para o subfinanciamento do SUS e também para a piora das condições de vida dos brasileiros. Defende uma política de Estado que fortaleça o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, para garantir tanto o acesso a medicamentos e vacinas à população quanto o desenvolvimento numa área que já se provou frutífera no Brasil. E poderia “projetar o país e a região num ambiente muito mais solidário e includente”. Eis sua entrevista.

Qual a situação atual da lei de patentes no Brasil?

A Lei 14.200/2021, originada no PL 12/2021 do Senador Paulo Paim, aprovada com esmagadora maioria no Senado e na Câmara dos Deputados, objetivou excepcionalizar os termos de concessão de licença compulsória (“quebra de patentes”) em caráter provisório e emergencial a todas as tecnologias sob proteção patentária relacionadas com a pandemia. Os vetos do presidente (Veto 48, Mensagem No. 432 ao Presidente do Senado Federal) desfiguraram o objetivo de tratar emergência como emergência. Um deles desvinculou a “quebra de patentes” à ritualística que já temos na nossa regulação, que representa um processo demorado e burocrático que se tenta evitar nas características emergenciais desta e de qualquer outra pandemia ou emergência, nacional ou internacional. Mesmo derrubando os vetos do presidente, essa lei se restringe a medidas excepcionais em tempos excepcionais. Mas poderia estar sendo vista como um exemplo da liderança que caracterizou o Brasil no passado.

As atuais diretrizes de propriedade intelectual, que têm como base o Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio e que se traduziram no Brasil na mudança da nossa Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), colocam em confronto questões explicitadas no Relatório do Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em 2016, que denominaram “incoerências entre os direitos individuais (proteção patentária), as prioridades em saúde pública (o acesso a medicamentos e tecnologias), as leis e regulação de direitos humanos e as regras do comércio”. 

A indústria farmacêutica alega que as patentes servem para garantir o investimento em pesquisas em novos medicamentos. Esse argumento é válido?

Nesse ponto, fica muito clara a diferença entre custo, valor e preço das tecnologias, em especial as de aprovação mais recente e que atendem aos interesses especulativos da grande indústria e seus investidores e conselhos diretivos. O mundo está cheio de exemplos recentes e também o fato de que a premissa de que a proteção patentária, o monopólio e os preços elevados eram necessários para a recuperação dos investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação não mais se justificam como verdadeiros. Hoje, a “financeirização”, o investimento em ações objetivando criar mais lucro aos acionistas em detrimento das funções originais de P&D é evidente nas grandes corporações do setor farmacêutico global, um dos setores mais rentáveis no mundo e que desconhece recessão.

Quais são as consequências desses bloqueios legais para o SUS, em um contexto de subfinanciamento?

Se vamos admitir que o direito à saúde e o acesso a medicamentos e tecnologias são direitos fundamentais, as tecnologias em saúde não podem ser tratadas como mercadorias sujeitas às regras do mercado. A falta, o desabastecimento, a impossibilidade de acesso a medicamentos fragiliza os sistemas de saúde e impõem sofrimentos às pessoas que precisam desses insumos, podendo onerar ainda mais o nosso SUS, já combalido pelo desfinanciamento e subfinanciamento. O teto de gastos imposto pela EC-95/2016 é incompatível com a necessidade de incorporar novas tecnologias, necessárias para o tratamento de agravos à saúde.

Mas essa realidade hoje não se restringe a países de renda média ou baixa, mas acaba atingindo também os países centrais, países de renda alta. Medicamentos como os antirretrovirais, os antivirais de ação direta para o tratamento da Hepatite C, os produtos oncológicos ou os produtos da denominada Medicina Individualizada, Medicina do Futuro (terapia gênica, terapia celular) se apresentam com preços inacessíveis mesmo para os sistemas de saúde privados ou países com altos poderes aquisitivos.

Quais os caminhos para corrigir essas desigualdades e garantir o direito à saúde no Brasil?

No Brasil, para se reverter a atual dependência tecnológica do exterior e fortalecer nosso parque produtor, tanto público como privado, torna-se necessária uma política de Estado que fortaleça o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, responsável pela produção de bens e serviços relacionados com a saúde. Entretanto, para atingir esse objetivo, teríamos que ter um governo que priorizasse as políticas públicas e os direitos sociais e não o ultraliberalismo e as políticas restritivas que caracterizam os atuais governantes, tendo levado o Brasil de volta ao Mapa da Fome e aumentando a pobreza, o desemprego e o subemprego.

Estamos lidando com uma política que fracassou em termos de assegurar acesso a tecnologias, que penaliza os países menos desenvolvidos e que gera lucros cada vez maiores aos dirigentes e acionistas das grandes corporações farmacêuticas. Em termos globais, o atual sistema pode ser considerado um sistema falido. Saúde é um direito e as tecnologias não podem ser tratadas como mercadorias que objetivam lucro. O Brasil tem uma base produtiva sólida, no setor farmoquímico (produção de IFA ou matérias-primas ) e farmacêutico (formulação farmacêutica), com avanços em áreas mais novas como a Biotecnologia. Parcerias sólidas, cooperação internacional e fortalecimento das relações internacionais com blocos como o Mercosul, os BRICS, CPLP, entre outros, seria projetar o Brasil e nossa região num ambiente muito mais solidário e includente, no contexto da Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, na meta de “não deixar ninguém para trás”.

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