Por que defender a quebra de patentes na OMC

Iniciativa orquestrada pela África do Sul e Índia, que sofre forte resistência dos países ricos e da indústria, deve ir além da covid. Poderá garantir que o Sul global tenha autonomia para produzir fármacos e não depender da benevolência do Norte

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Desde 2020 está em debate, na Organização Mundial do Comércio (OMC), um acordo de suspensão de direitos de propriedade intelectual sobre medicamentos e vacinas que ajudam no tratamento da pandemia de covid. A quebra de patentes seria crucial para países de renda média e baixa enfrentarem a crise sanitária. Outra Saúde acompanha o debate ao longo dos últimos meses, com destaque para o último fato importante: um vazamento do rascunho de um documento que selaria um acordo considerado muito insuficiente. A OMC funciona por consenso, e o processo vem se arrastando por tanto tempo que pode chegar tarde demais. Mas duas matérias recentes mostram que é preciso insistir nessa batalha.

Em uma entrevista publicada no site da Fundação Medico International, a professora da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e integrante do Peoples’ Health Movement, Lauren Paremoer, discorre sobre a importância de um acordo que favoreça a quebra de patentes. Segundo sua análise, a nova versão parece ter sido criada a partir de uma combinação das posições dos Estados Unidos e da União Europeia: a concessão da quebra de patentes apenas para vacinas e a flexibilização de poucas restrições de importação. Não sobrou muito da ideia inicial proposta pela África do Sul e Índia, que incluía a liberação de direitos autorais, desenhos industriais e segredos comerciais para medicamentos e testagem, além dos imunizantes. De outro modo, o acordo apenas criaria mais uma camada de qualificação em termos de quem é elegível para quebrar patentes – dificultando o processo.

“Uma vacina tem patentes em diferentes subcomponentes e pode ser posta não apenas na substância, mas no processo. Então, por exemplo, quando há uma patente sobre métodos para produzir uma vacina de mRNA, isso pode ser aplicado a qualquer vacina de mRNA. Se alguém desenvolver uma vacina contra a tuberculose ou uma vacina contra o HIV usando essa tecnologia, isso pode se tornar um conflito legal”, explica Lauren. Segundo ela, a solução da Covax, iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que organizou países europeus para doarem vacinas à África, foi bastante frustrante. “Definitivamente há um sentimento de desilusão nas tentativas de forjar solidariedade por meio desses mecanismos multilaterais, no sentido de que a Covax, em particular, falhou. Talvez seja por isso que tem havido tanta ênfase na transferência de tecnologia.”

“Um problema maior e mais sistêmico”, continua Lauren, “é se isso se tornar o precedente para todas as futuras pandemias. Muitos estados e movimentos sociais pediram uma disposição de que os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips) sejam automaticamente suspensos durante emergências de saúde pública de interesse internacional, o que seria uma intervenção muito mais ampla”. 

O especialista em saúde pública e direitos de propriedade, o catalão Jaume Vidal, concorda com esse ponto de vista, em artigo publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo. Mas ele vê, na iniciativa articulada pela África do Sul e Índia na OMC, um fato muito importante. E tem esperança de que seja o começo de uma mudança: “Ao obter o apoio de outros governos e da sociedade civil organizada, os esforços de mobilização e divulgação dos últimos 17 meses cimentaram, na opinião pública, partidos políticos e outras partes interessadas, a noção de que há uma profunda necessidade de uma grande revisão de como o acesso às tecnologias de saúde é gerida e moldada. Uma conversa e discussão que continuará por muito tempo depois que a pandemia for declarada encerrada”.

Jaume finaliza: “Embora as discussões sobre a isenção do Trips possam ter mostrado os limites da diplomacia e o declínio do apelo do multilateralismo, também oferecem um exemplo valioso de como uma coalizão de governos, sociedade civil e cidadãos trabalhou em conjunto para uma resposta à crise guiada por uma bússola moral e não lucros econômicos de curto prazo ou ganhos políticos. Não foi a primeira vez e certamente não será a última”.

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