Para qualificar a vigilância em saúde na Amazônia

Nova urbanização do Norte desafia políticas de saúde – seu padrão é muito distinto do resto do país. Do Acre, um bom exemplo: compreensão adequada da especificidade do gradiente urbano já foi decisiva para conter crise de malária

“Ambulancha” no Oeste do Pará. Foto: Ronilma Santos
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A Amazônia brasileira está mudando. A chave dessa mudança é a urbanização. Se a chave para entender a atitude do poder frente ao bioma ao longo de vários séculos está em epítetos como “inferno verde”, a traduzir uma desconfiança com a perigosa e desconhecida “selva” do Norte, a face da região, crescentemente, é a de um locus urbano – ainda que de uma urbanidade singular. Cada censo do IBGE que passa confirma mais claramente essa tendência.

Esse processo traz consequências para a implementação de políticas de saúde. O ensaio O que é o urbano na Amazônia? Implicações para a vigilância em saúde no bioma, de um trio de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade Federal do Pará (UFPA), especifica o argumento: para formular políticas corretas de vigilância de saúde, é imperativo se aprofundar nos detalhes dessa nova urbanidade amazônica. O estudo de Ana Cláudia Duarte Cardoso, Ana Paula dal’Asta e Antonio Miguel Vieira Monteiro foi publicado originalmente nos Cadernos de Saúde Pública, revista parceira de Outra Saúde publicada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

A vigilância não é tema lateral ou secundário para as políticas de saúde. Sua precarização (ainda que outros setores tenham sido similarmente precarizados) pelos governos dos últimos anos foi pré-condição para uma série de surtos de doenças antes controladas ou mesmo erradicadas. Por isso é essencial ficar atento às novas ideias que respondem a novas situações concretas. A incorporação de políticas bem formuladas e que atacam de frente os problemas candentes do Brasil será um dos pilares decisivos da reconstrução em curso do Sistema Único de Saúde (SUS).

Já há casos concretos de como incorporar às políticas de saúde um entendimento do espaço que não se prende a uma dualidade urbano-rural, dizem os autores, e trabalha com a ideia de um continuum. Um exemplo do Acre, citado no estudo, é particularmente instigante. E aponta: só essa compreensão afinada e sem dogmatismos da nova Amazônia, urbanizada de forma sui generis, poderá trazer resultados concretos – como a mitigação da transmissão da malária no Alto Juruá acreano (onde estão 90% dos casos da doença no estado), caso apresentado no estudo.

A singular Amazônia urbana e sua saúde

A história e as características da ocupação humana da Amazônia, como ressaltam os autores, é obscura para o público geral e em grande medida ignorada pelos governos e pelo terceiro setor. Pouco se difunde, ainda que essas informações já existam e estejam disponíveis em diversos estudos, sobre como vivia a “pulsante” população de milhões de habitantes da Amazônia pré-colonial – organizada inclusive em moldes urbanos, como na cultura Marajoara

O governo Vargas, nos anos 40, estimulou a Marcha Para o Oeste, iniciativa que ampliou a imigração à Amazônia, um fluxo que se acelerou ainda mais na ditadura militar. Sustentada em promessas de uma riqueza ilimitada a ser extraída do Norte, uma reorganização populacional  “autoritária e cega” (mas com precedentes que remetem ao extrativismo de corte colonial que ronda a região desde a chegada da Companhia de Jesus) apagou muitas experiências pregressas.

Essas experiências eram de uma urbanização própria, que se integra às especificidades do bioma, eles explicam. No lugar de “grandes aglomerados” servidos por um radicalmente distinto “entorno produtivo agrícola”, modelo de “separação dicotômica urbano-rural” própria da urbanização capitalista “central”, há aqui uma série de assentamentos dispersos ligados em forma de rede. Os fios dessa rede são os próprios rios e florestas que compõem o cenário amazônico; a vida humana une-se a eles em vez de suprimi-los. 

Tendo isso em mente, os pesquisadores propõem que a ocupação, na Amazônia, se expressaria como um continuum, isto é, como uma complexa conexão, sem particular hierarquia, de “distritos, povoados, comunidades, vilas, centros de operações comerciais e de serviços, madeireiras, fazendas, arranjos campesinos, seringais, garimpos, acampamentos de grandes obras, assentamentos da reforma agrária, acampamentos de sem-terra, novos quilombos e novas áreas indígenas”. Se misturariam nesse continuum aspectos do urbano, do suburbano e do rural.

A despeito do sucesso parcial da imposição do modelo urbano de outras partes do país, o que os estudiosos apontam é que elementos da forma integrada à geografia local ainda estão presentes na Amazônia. E mais: as redes em torno de rios e florestas, bem como o chamado “periurbano estendido” (casa, roça, pomar e floresta estando dentro de um gradiente conectado, e não separados em caixinhas de urbano e rural), continuam sendo decisivas para entender sua estrutura urbana da região.

Como não podia deixar de ser, a urbanização acelerada do Norte do país fez com que emergissem “velhos e novos processos saúde-doença”. Justamente por isso tudo que torna a urbanização amazônica específica, não seria simplesmente possível implementar nesses locais um sistema de vigilância em saúde igual ao das outras regiões urbanizadas do país – pelo menos, não de forma a servir adequadamente à população desses locais. 

Citado no ensaio dos Cadernos de Saúde Pública, o artigo The Urban Gradient in Malaria-Endemic Municipalities in Acre: Revisiting the Role of Locality, de autoria de um grupo de pesquisadores do Inpe e da Fiocruz, apresenta a identificação no Acre do funcionamento do gradiente urbano de uma determinada região do estado, e como “o uso de uma representação baseada no continuum urbano-rural” ajudou a criar “melhor suporte territorial para o desenvolvimento de estratégias de intervenção para minimizar o peso da malária”.

O exemplo que vem do Acre

A malária é uma “doença da pobreza” que, no Brasil, tem o Norte como área endêmica. 99% dos casos autóctones estão na região. No Acre, 90% dos registros de malária vêm do Alto Juruá, na parte oeste do estado.

Antes, as estatísticas oficiais viam essa região acreana como simplesmente rural. Mas a observação mais aprofundada da região feita por esse grupo de cientistas viu outro cenário: naquele espaço, “colonizado” por estímulo do Estado a partir dos anos 70 nesse novo surto de ocupação do Norte, haveria o continuum de elementos urbanos e rurais tão singular à Amazônia.

As razões são variadas. Em várias pequenas cidades, encontram-se lagos para pesca. A renda da maioria das casas é composta por atividades econômicas tanto rurais quanto urbanas – mas há, por exemplo, famílias assentadas nas cidades cujo sustento vem exclusivamente do extrativismo vegetal, atividade rural por excelência. Os padrões de consumo típicos da sociedade industrial urbana se afirmam mesmo nas casas mais distantes, com seus computadores e motocicletas (estas últimas, presentes em impressionantes 100% das casas de algumas subdivisões do Alto Juruá).

Assim, “mesmo as localidades mais isoladas, com acesso limitado aos centros urbanos e distantes dos principais eixos de circulação de bens e informações, articulam comportamentos urbanos”. Por isso, “não se pode categorizá-las como estritamente rurais, seja por conta das atividades de geração de renda, dos modos de produção, ou dos padrões de acesso a bens e serviços e ao consumo”.

A malária, constatou-se, não poderia ser enfrentada sem dar conta dessa realidade. Indivíduos expostos ao mosquito Anopheles no interior das florestas convalesciam da malária em habitações urbanas – contrariando a visão clássica do ribeirinho isolado, infectado com a doença e impossibilitado de se deslocar até um posto para atendimento.

Com tudo isso em mente, registra o estudo, as ações de controle da malária foram municipalizadas na região do Alto Juruá em 2014. A lógica é clara: colocar as decisões nas mãos dos que conhecem o território – bem como sua lógica particular de ocupação, o continuum urbano-rural. A estratégia, apesar de enfrentar percalços como a falta de recursos dos municípios para garantir a busca ativa de casos e a manutenção dos postos de saúde, pode ter dado certo.

Os resultados estão nos números: em 2021, o Acre registrou uma queda de mais de 30% nos casos e de 43% nas internações. Já em 2023, houve um registro de 32% menos casos que no ano anterior.  O cenário é completamente oposto ao de outros estados, como Roraima, que vive uma escalada da malária estreitamente ligada ao avanço do garimpo ilegal – atividade, vale dizer, que se enquadra no tão amazônico amálgama entre rural e urbano da ocupação do território.

Inovações criativas no repertório que subsidia as políticas públicas, como esta interpretação da nova urbanização da Amazônia, devem ser difundidas com presteza no momento que o Brasil vive. Sua implementação é urgente porque a população precisa delas agora: ainda há uma janela para impedir que o retorno de doenças antes erradicadas, ou que a invisibilidade e a pobreza agravaram, se torne um fato de maiores proporções. A chance para reerguer políticas de saúde aliadas à ideia do bem estar social está aí. É preciso aproveitá-la, de acordo com as especificidades regionais do país.

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