A Saúde volta à mira da “racionalidade neoliberal”

Chega ao Senado projeto que distorce o cálculo do mínimo constitucional para investimentos em Saúde – e pode retirar 18 bilhões do SUS. Francisco Funcia analisa o cenário e adverte: movimentos de saúde precisam ser escutados

Foto: Gabriella Zanardi
.

Francisco Funcia em entrevista a Gabriel Brito

Chamou atenção a apresentação do Projeto de Lei Complementar 136/2023 do deputado federal Zeca Dirceu (PT-PR). Sob a motivação de compensar estados e municípios pelas perdas de arrecadação de ICMS impostas pela política eleitoreira de Bolsonaro, em 2022, o projeto pode limitar o aumento do orçamento da saúde para 2024, conforme prenunciam os resultados fiscais do atual exercício financeiro.

Em entrevista ao Outra Saúde, o economista e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde, Francisco Funcia, explica os nós da questão. Cuidadoso em suas posições, ele destaca que não há nenhuma manifestação do governo no sentido de apoiar qualquer redução potencial do orçamento do SUS, mas lamenta a rapidez com que o projeto foi apresentado, sem a participação dos movimentos de saúde.

O ponto central, como mostra a entrevista, é a interpretação que se dá ao critério de aplicação do piso federal em saúde. Como explica Funcia, trata-se de dispor de 15% da Receita Corrente Líquida da União. No PLP de Zeca Dirceu, tal mecanismo é substituído pela receita estimada, o que não faz sentido a partir do momento em que já se sabe do total arrecado.

A estimativa, como contextualiza o economista, é cabível quando se envia ao Congresso o Projeto de Orçamento para o ano seguinte. Mas sua aplicação, conforme a própria Constituição, deve seguir a quantidade real de recursos à mão. “A receita estimada para 2023 estava abaixo daquilo que se apresenta agora, quando se está arrecadando mais que o projetado”, afirma. Se a interpretação não for corrigida, a Saúde pode perder, segundo seus cálculos, R$ 18 bilhões.

Funcia lembra que o orçamento baseado em 15% da RCL não é nenhuma novidade. “O governo federal, através do Ministério da Saúde, já aplicou 14,8% da RCL em 2015; 14,8% em 2015; 14,96% em 2016; 15,37% em 2017. Ou seja, já temos antecedentes de aplicação em torno desses 15%, não é uma novidade, algo que nunca tenha sido praticado do ponto de vista de aplicação em saúde.”

Para ficar claro: não há uma diminuição do orçamento em relação a 2023. Mas talvez se perca a chance de aumentá-lo para além dos limites ditados pela ideologia da “austeridade” a serviço dos mercados financeiros. O governo parece estar absorvendo uma racionalidade neoliberal segundo a qual não se pode ir além do piso que, como diz o próprio substantivo, é apenas o patamar mínimo – e não máximo – de financiamento desta área fundamental da vida social.

“Se eu somar os R$ 22 bilhões que se colocou neste ano e os R$ 48 bilhões que haverá a mais no ano que vem, em relação aos R$ 170 bilhões de hoje, estamos falando de R$ 70 bilhões a mais para a saúde, em termos nominais. Não estou desprezando que houve esse acréscimo de recurso pelo atual governo, já pensando naquilo que contemplou para este ano e o que está contemplando para 2024. Mas não é disso que se trata. O que se trata é que o piso da saúde, antes da EC 95 [o ‘teto de gastos’], era 15% da Receita Corrente Líquida. Se esta emenda é revogada, deve-se voltar aos 15% da Receita Corrente Líquida arrecadada. É certo que o governo não tirou recursos da saúde, mas ao definir agora uma nova regra não está contemplando todos os recursos que deveriam vir. Ficamos com cerca de R$ 18 bilhões a menos”, ilustra Funcia.

Dessa forma, cabe a todos observar as movimentações no Senado e, quem sabe com um debate público mais participativo, alterar os rumos da proposta. Afinal, cai-se na velha história do cobertor curto, onde a justa aplicação de recursos financeiros em um lado promove a injustiça do desfinanciamento de outra política social importante.

Para além deste espaço, caberia questionar se de fato houve uma reversão da política de espoliação neocolonial na Petrobrás e no setor de óleo e gás, uma vez que seu excedente econômico, ao invés de servir à União e seus entes federados, segue a priorizar acionistas privados sem compromisso com qualquer ideia de desenvolvimento nacional. Por ora, cabe ao menos pedir um lugar à mesa.

“Esperamos que o governo federal, especialmente a área econômica, abra um espaço para escutar a posição do campo da saúde, daqueles que estão defendendo a luta contra o subfinanciamento do SUS, que é histórica e vem desde a Constituição de 1988. Especialmente esse campo da saúde que tem lutado contra o desfinanciamento do SUS que a Emenda Constitucional 95 promoveu.”

Fique com a entrevista completa.

O que comenta sobre o Projeto de Lei Complementar (PLP) 136/2023, que permitiria um orçamento de saúde abaixo do piso federal?

Em primeiro lugar, precisamos contextualizar a discussão. O que me pareceu, daquilo que foi apresentado, inclusive como justificativa desse projeto, é a necessidade do cumprimento das metas fiscais, dentro do quadro do novo arcabouço fiscal. E aí entrou-se numa seara de interpretação jurídico-legal, constitucional, acerca de qual é o piso federal do SUS. O projeto acabou por criar uma coisa que não existia até então. Está escrito na Constituição que o mínimo – que é de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), aprovado pela Emenda Constitucional (EC) 86, que vigorou até a entrada da EC 95 [do “teto de gastos”] – era sobre o arrecadado no exercício financeiro anual.

Já esse projeto considera que o mínimo incide sobre a Receita Estimada na Lei Orçamentária. A receita estimada na Lei Orçamentária para 2023 estava abaixo daquilo que se apresenta agora, quando se está arrecadando mais que o projetado. Assim, nessa perspectiva, com o objetivo de tratar de algo que surgiu de uma interpretação jurídico-legal-constitucional a respeito de qual seria o piso de 2023, decidiu-se criar uma nova regra de piso.

Na minha opinião, parece prematuro, fruto de um debate insuficiente, até porque nós estamos falando de algo que tem poucos dias, desde a aprovação da Lei Complementar 200/23, a Lei do Arcabouço Fiscal. Em menos tempo ainda, surge essa interpretação, que começou a ganhar corpo, especialmente depois daquela entrevista de um secretário do Ministério do Planejamento [Paulo Bijos, que disse que a solução para os pisos de saúde e educação ainda estão “em aberto”. Leia aqui].

A meu ver, foi precipitado sair com um projeto de lei com tal teor sem esperar um respaldo do campo jurídico, para dar conta da discussão em torno do que está valendo ou não – no caso os 15% da RCL arrecadada em 2023, e não a estimada.

No limite, quem criou essa situação agora de colocar em dúvida a questão dos 15% a respeito da RCL também deveria esperar agora que os juristas façam uma avaliação dessa questão.

Além deste respaldo jurídico, não faltaria um debate mais cuidadoso com o próprio setor afetado, a exemplo do Conselho Nacional de Saúde?

Sim, são dois aspectos importantes. Este segundo aspecto a meu ver é mais relevante e reforça a tese de que o PL foi precipitado, que deveria ter ouvido, no mínimo, o Conselho Nacional de Saúde, instância deliberativa do Sistema Único de Saúde. Além do CNS, deveriam ter sido escutadas as entidades da reforma sanitária brasileira. Deveriam ter sido escutadas, por exemplo, a Frente pela Vida, que reúne várias dessas entidades, a fim de saber se há algum risco de que não valeriam os 15% da RCL arrecadada no exercício de 2023 e se avaliar qual seria, então, o caminho a seguir.

Mais do que isso, se houve alguma questão relacionada ao cumprimento de meta ligada ao novo arcabouço fiscal, na mesma linha de raciocínio, deveria ter sido, antes de qualquer projeto de lei, conversado com os setores que, do ponto de vista legal, representam o SUS, como o Conselho Nacional de Saúde na esfera federal. É uma diretriz constitucional a participação da comunidade no SUS, sendo que o Conselho Nacional de Saúde tem representantes dos usuários, dos trabalhadores e dos gestores. Seria o espaço mais adequado para a discussão.

Sem falar que acabamos de ter uma Conferência Nacional de Saúde em que foi aprovada a necessidade de mais recursos para o Sistema Único de Saúde, inclusive com parâmetros a serem buscados. E a Conferência Nacional de Saúde representa também um espaço deliberativo do Sistema Único de Saúde. Nessa perspectiva, a meu ver, faltou por parte do deputado a atenção, o cuidado de, antes de encaminhar um projeto de lei dessa natureza – que na prática estabelece uma nova regra e introduz um conceito até então nunca colocado, que é da receita estimada no orçamento – ouvir e encontrar uma solução. O que teria de estar no orçamento, com base nos 15% da RCL arrecadada, seriam R$ 188 bilhões, de acordo com os números de 2023.

Quando foi debatido o orçamento deste ano, em dezembro de 2022, houve uma ação muito positiva do governo eleito, ainda antes de tomar posse, no sentido de articular com o Congresso mais recursos para a saúde. O parâmetro que o governo adotou para fazer essa discussão, lá em dezembro de 2022, foi de 15% da Receita Corrente Líquida.

E naquele momento não tínhamos a mesma noção de agora a respeito da possível arrecadação de 2023. Assim, corretamente, para fazer a programação do orçamento, teve de se usar uma receita estimada. Agora, a partir do momento em que já se está no governo, já se executa o orçamento e tem um cenário de que a receita vai ser maior, complementa-se o orçamento. É essa a lógica.

Assim, parece que se desperdiça um cenário favorável para retroceder, em vez de avançar, no financiamento da saúde pública.

O governo federal, através do Ministério da Saúde, já aplicou 14,8% da RCL em 2015; 14,96 % em 2016; 15,37% em 2017. Ou seja, já temos antecedentes de aplicação em torno desses 15%, não é uma novidade, algo que nunca tenha sido praticado do ponto de vista de aplicação em saúde. É mais um motivo para dizer o seguinte: se há alguma questão a ser buscada em relação ao cumprimento da meta fiscal, em relação aos gastos que se imaginavam para 2023, aumento etc., deve-se sentar com o Conselho Nacional de Saúde, com as entidades da reforma sanitária, a exemplo da Frente pela Vida, e buscar soluções.

Se não dá pra aplicar tudo neste ano, compensa-se no ano que vem? Não sei, tem que sentar e conversar, mas não simplesmente de uma forma unilateral. Claro que deputados têm autonomia para fazer isso, mas politicamente falando deveria ter sido ouvido o campo que representa a saúde e isso infelizmente não foi feito.

É certo que não ouvi até agora nenhum representante do governo oficialmente fazer coro com a proposta, não há nenhuma posição oficial do governo defendendo a ideia de redução de recursos para a saúde. Assim, continuo com a fala do presidente da República, enquanto era candidato, naquela Conferência Livre pela Saúde e Democracia, organizada pela Frente pela Vida, quando se manifestou enquanto candidato e depois, após tomar posse, várias vezes falou que “saúde não é gasto, saúde é investimento”. Eu continuo acreditando nessa perspectiva.

O que foi feito no PLP do deputado Zeca Dirceu, infelizmente vai na contramão dessa perspectiva, pois de forma prematura faz um projeto para estabelecer uma nova regra de piso que, em relação ao que está na emenda 86, o reduz, baseado numa interpretação de alguns setores ou de alguns segmentos, ou até mesmo talvez juristas consultados, de que não valeria a regra da emenda 86 no ano de 2023. Primeiro, deveria ter sido esgotada a discussão jurídica para depois verificar o que poderia ser feito. Mesmo assim, na minha leitura, se era para fazer uma alteração, era para garantir o que está escrito na Constituição: 15% da Receita Corrente Líquida arrecadada no exercício. É isto. Portanto, se era para ter feito o projeto de lei, para reforçar o entendimento constitucional, era para também reforçar o que estava escrito.

De toda forma, parece que ficamos presos a uma racionalidade neoliberal onde não se vislumbra um aumento mais robusto do financiamento da saúde. Em suma, trata-se do piso como se fosse teto?

O que está norteando o PL é a questão do Arcabouço Fiscal, mas durante a discussão do projeto, ninguém falou em reduzir recursos da saúde. Se houve alguma mudança de rota, antes de colocar o projeto de lei, precisaria ouvir o Conselho Nacional de Saúde, as entidades da reforma sanitária, especialistas, enfim, da área da economia da saúde, para buscar uma posição que fosse mediada na perspectiva de que a saúde não perca recursos.

É importante destacar que os 15% da RCL foi a resposta, digamos, que ocorreu do ponto de vista de regulamentação do piso da saúde ao Projeto de Lei de Iniciativa Popular 321 (PLP 321, de 2013), que, com mais de 2,2 milhões de assinaturas tinha um único dispositivo: que o piso da saúde fosse equivalente a 10% das receitas correntes brutas da União, o que corresponderia, mais ou menos, a 19,4% das Receitas Correntes Líquidas da União.

Os 15% da RCL também já vinham sendo questionados. E eu repito: já vinha sendo aplicado. Que debate não parta dos 15% da RCL como mínimo é um retrocesso.

Estaríamos às portas de uma nova batalha pelo orçamento, tal como na transição de governo?

Os R$ 22 bilhões a mais que o governo colocou no orçamento deste ano, em relação à peça orçamentária enviada pelo governo anterior, tinham como base esse piso e não o piso estabelecido pela EC 95. Foi um ato bastante positivo do governo, antes mesmo de tomar posse. Eu também tenho clareza que, neste momento, o que está sendo debatido na Programação Orçamentária para 2024 da saúde é um valor equivalente aos 15% da Receita Corrente Líquida, efetivamente, de acordo com a arrecadação estimada para 2024, em termos atualizados.

Assim, tem recurso a mais para a saúde. Se eu somar os R$ 22 bilhões que se colocou neste ano e os R$ 48 bilhões que haverá a mais no ano que vem, em relação aos R$ 170 bilhões de hoje, estamos falando de R$ 70 bilhões a mais para a saúde, em termos nominais. Não estou desprezando que houve esse acréscimo de recurso pelo atual governo, já pensando naquilo que contemplou para este ano e o que está contemplando para 2024. Mas não é disso que se trata. O que se trata é que o piso da saúde, antes da EC 95, era 15% da Receita Corrente Líquida. Se esta emenda é revogada, deve-se voltar aos 15% da Receita Corrente Líquida, efetivamente, arrecadada.

É certo que o governo não tirou recursos da saúde, mas ao definir agora uma nova regra não está contemplando todos os recursos que deveriam vir. Ficamos com cerca de R$ 18 bilhões a menos.

De modo que a própria base do governo assume esta chamada racionalidade dos mercados mesmo em um momento onde a pressão em favor da “austeridade” fiscal refluiu…

Historicamente tem sido assim. O piso no governo federal virou teto. Isso é histórico. Desde quando foi instituído, em 2000 – salvo raríssimas exceções, como a pandemia, o surto de H1N1 ou de dengue – o piso virou teto.

Assim, preciso reforçar, pois muita gente diz que não estamos levando em consideração que o governo aportou mais recursos. Nós reconhecemos, sim, que o governo está aportando mais recursos e é bom que fique explícito. Aportou R$ 22 bilhões e vai aportar R$ 48 bilhões a mais em relação aos R$ 170 bilhões do orçamento de 2023.

Mas eu repito que não é disso que se trata. Trata-se de uma questão de princípio e de cumprimento da Constituição, numa lógica mais de ordem política. Se eu tinha um piso de 15% da RCL que foi suspenso pela Emenda 95, porque até imediatamente antes da Emenda 95 já se aplicavam esses 15%, quando se suspende a EC 95 deve-se voltar ao piso da Emenda 86, de 15%.

O que gera essa dificuldade de interpretação foi a Emenda Constitucional 86 combinada com a Lei Complementar 200, do Arcabouço Fiscal. Ninguém, em nenhum momento, quando se discutiram tais instrumentos, falou em tirar recursos do SUS, no sentido de não voltar aos 15% da RCL.

Não é receita estimada que está escrito na Constituição; é 15% da receita arrecadada. Do exercício financeiro do ano. Não está escrito na Constituição receita estimada, isso é uma invenção. Portanto, repito: por conta da precipitação do deputado em não conversar com os setores envolvidos, agora temos uma emenda pior que o soneto.

O que entidades como as que você faz parte defendem? Em que direção acreditam que tal debate deveria ser conduzido, inclusive de maneira a deixar o governo menos refém do Congresso, na eventualidade de uma nova luta política pelo orçamento, como visto no momento da transição?

Não posso falar por todas essas entidades da reforma sanitária e defesa do SUS, até porque elas ainda estão em processo de elaboração de respostas, mas enquanto presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde, esperamos que o governo federal, especialmente a área econômica, abra um espaço para escutar a posição do campo da saúde, daqueles que estão defendendo a luta contra o subfinanciamento do SUS, que é histórica e vem desde a Constituição de 1988. Especialmente esse campo da saúde que tem lutado contra o desfinanciamento do SUS que a Emenda Constitucional 95 promoveu.

Gostaríamos de ser ouvidos e encontrar espaço de diálogo no governo, um espaço de negociação com esse campo para verificar uma alternativa para garantir, no mínimo, os 15% da Receita Corrente Líquida para o Sistema Único de Saúde em 2023.

Leia Também: