A PEC do Plasma e a micropolítica do Capital

Tramita, no Senado, projeto que permite a comercialização de sangue e hemoderivados. Mais um indício de como a privatização corrói o sistema público de saúde “pelas beiradas”. Como provocar o debate político para barrá-la?

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Em agosto de 1988 Betinho1 subia na tribuna do Congresso Nacional para defender, em discurso emocionado, a proibição da comercialização do sangue e seus derivados, no Congresso Constituinte, convocado exclusivamente para redigir a nova Constituição Federal do Brasil. O debate acalorado acontecia após o dramático impacto da epidemia de aids no país, impulsionada pela falta de controle e qualidade do sangue, que potencializou o contágio do vírus HIV via transfusões. “A tragédia da aids é a tragédia da morte, que passa por este sistema de saúde marcado pela comercialização, pelo lucro e pela impunidade”, disse Betinho. Ele próprio, e seus dois irmãos, hemofílicos, foram vítimas fatais da baixa qualidade do sangue à época.

Por maioria de votos os constituintes decidiram pela proibição da comercialização de órgãos e tecidos humanos, incluindo o sangue e hemoderivados. Assim encerra-se este episódio na Constituinte. Após a decisão histórica caberia apenas ao Estado, o processamento e distribuição de sangue e hemoderivados no país. Isto está inscrito no Art. 199, parágrafo 4º. da Constituição Federal. A política do sangue estaria resguardada pelo Sistema Único de Saúde, que é o principal destinatário dos seus serviços e produtos.

No entanto, tramita no Senado Federal a chamada PEC do Plasma, que se refere ao Projeto de Emenda Constitucional 10/2022, que se aprovada, reverte a decisão constitucional de proibir a comercialização de sangue e hemoderivados. Pela proposta o art. 199 da Constituição Federal seria acrescentado do seguinte parágrafo:

§ 5º A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde.”

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal marcou para dia 13 de setembro de 2023 a apreciação da PEC 10/2022. A proposta que a uma primeira vista parece sutil, é mais uma investida rumo à tão discutida “privatização da saúde”, ou seja, mais uma entrada do capital privado na saúde, “comendo pelas beiradas”. A expressão bem popular, segundo o léxico da língua portuguesa significa “fazer devagarinho”, ir devagar, sem pressa, até alcançar o objetivo. Faltando praticamente um mês para celebrarmos os 35 anos da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, em 5 de outubro, estamos às voltas com mais uma proposta regressiva às importantes conquistas civilizatórias inscritas na carta magna.

Setores privatistas historicamente se posicionaram contrários à Universalização de acesso aos serviços assistenciais proposta pelo SUS. No último período parece que deixou de ser o foco um conflito frontal, e sua intervenção micropolítica passa a priorizar janelas de oportunidade. Se aproveitando do fato de que o Brasil ainda não é autossuficiente em hemoderivados, a política de sangue surge como uma possibilidade para novos e promissores negócios. Os fantasmas de um tempo não muito longínquo, mas de triste memória, em que se pagava para coletar plasma humano, voltam à cena neste momento.

O mercado de hemoderivados no Brasil movimenta cerca de 10 bilhões de reais por ano, segundo dados publicados pela Revista Exame (18/4/2023), a partir de informações das farmacêuticas. Isto explica a insistência em setores do Congresso Nacional em aprovar a PEC 10/2022 pautada no Senado agora em setembro.

O país já possui fábrica para hemoderivados e medicamentos feitos por engenharia genética. Está sendo construída pela Hemobrás em Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) é uma estatal com 100% do Capital Social pertencente ao Governo Federal. Sua função é garantir aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de medicamentos derivados do sangue. Esta unidade é a maior da América Latina, com capacidade para processar 500 mil litros de plasma ao ano. O suficiente para tornar o país autossuficiente em hemoderivados, conforme pode ser visto em informações do site da empresa (https://hemobras.gov.br). Ou seja, estamos muito próximos de conseguir suprir toda necessidade do país por meios próprios.

A inteligência micropolítica de setores liberais da economia atua por infiltração política, possibilidades construídas no escopo legal do SUS, instituindo dispositivos que permitam potencializar a atividade privada. Realiza de forma paulatina os objetivos de reverter o monopólio estatal sobre o sangue e derivados; e apropriação do fundo público da saúde, através da venda de serviços e produtos ao SUS. Privatizar em nichos específicos, sem grande alarde, mas potentes o suficiente para realizar a dinâmica de acumulação em grande escala.

A PEC do Plasma é um exemplo da tática que supõe atuar na microfísica das relações de troca, com base em dispositivos institucionais como o que propõe a PEC 10/2022. Enquanto alguns pensam que a privatização vem por cima, ela está no meio, no interstício da institucionalidade, nas brechas da política. Nunca foi tão necessário investir na politização da base da sociedade, tomando como objetivo cada evento como este. Os territórios que são os lugares de produção da vida, e trabalho das pessoas, se constitui também como local privilegiado para o debate político. É ali que o protagonismo dos trabalhadores das redes de saúde se encontra com a força generosa das comunidades. Este é o encontro gerador de potência solidária. E só a solidariedade é capaz de formar um dique contra as investidas liberais sobre a saúde, que fazem sua aposta na monetarização da vida, o capital humano. Nesta proposta da PEC do Plasma, o sangue é precificado, revertendo a ideia solidária que presidiu a formulação da política na Constituição de 1988.

Diversas entidades do judiciário, a Hemobrás, Conselho de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde, Conselho Nacional de Saúde, a Frente pela Vida e outros movimentos sociais, já se posicionaram contrários à PEC 10/2022. Contra esta entrega ao setor privado, deve-se propor investimentos na Hemobrás, para fazer com que a empresa possa produzir no máximo da sua capacidade. Ao mesmo tempo fortalecer a Coordenação Geral de Sangue e de Hemoderivados (CGSH), órgão do Ministério da Saúde encarregado de execução da política de atenção hemoterápica e hematológica conforme a Lei 10.205/2001, que regula a questão da coleta, processamento e distribuição de sangue e hemoderivados no Brasil.

1 O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, ativista dos direitos humanos no Brasil, liderou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, conhecida popularmente como a campanha contra a fome. Dedicou a vida à luta pela democracia, pela erradicação da pobreza e das desigualdades. Hemofílico, morreu de Aids em 9 de agosto de 1997, deixando um exemplo de solidariedade e de luta pela transformação social. Seus irmãos Henfil e Chico Mário, ambos artistas e ativistas sociais, como ele, foram contaminados pelo vírus HIV em transfusões de sangue e faleceram por este motivo.

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