Os militares e o SUS

Obediência cega ao presidente prejudica os cofres públicos. Inexperiência com saúde ameaça o Sistema Único

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Este texto faz parte da nossa newsletter do dia 26 de junho. Leia a edição inteira.
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Antes da pandemia do novo coronavírus, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército – que tem suas raízes na chegada da Corte portuguesa ao Brasil – produzia cloroquina para os militares com malária, lúpus e artrite reumatoide. Para atender essa demanda, foram necessários cerca de 265 mil comprimidos nos últimos três anos. Tudo mudou radicalmente no governo Jair Bolsonaro. Desde 23 de março, a produção aumentou cem vezes, alcançando 2,25 milhões de comprimidos. Para dar conta dessa ampliação, mais de RS 1,5 milhão foram sugados do Tesouro Nacional. A cloroquina em pó, matéria-prima necessária para o boom, veio da Índia, a um preço quase seis vezes maior do que o normal. Sempre que questionado pela imprensa, o Comando do Exército respondia que a mudança se devia a demandas de dois ministérios: Defesa e Saúde.

Mas a decisão não passou pelo Ministério da Saúde, revela agora Luiz Henrique Mandetta. Segundo o ex-ministro, a determinação partiu de Bolsonaro. “Não [participei da decisão]. Isso foi anunciado na época diretamente pelo presidente. Ele colocou nas redes sociais que teria telefonado para o primeiro-ministro da Índia solicitando o envio da matéria-prima, e que mandaria o Laboratório do Exército iniciar a produção”, disse em entrevista à Repórter Brasil. “Até onde eu sei, essa decisão foi tomada diretamente pelo presidente com o Itamaraty”, afirmou, emendando: “Eu não me lembro de isso ter ocorrido alguma vez na história, de um presidente determinar a fabricação de um remédio. Se voltarmos no tempo, acho que isso nunca aconteceu.”

“Foi uma determinação direta do Bolsonaro ao Exército, por meio de uma política esdrúxula, sem nenhuma consulta prévia nem embasamento médico, técnico ou científico. E o interessante é que o Exército cumpriu imediatamente”, corrobora o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que obteve informações depois de enviar um ofício ao Comando do Exército.

Agora, o Laboratório do Exército tem cerca de 1,85 milhão de comprimidos de cloroquina em estoque – o equivalente a quase 18 vezes sua produção anual nos anos anteriores. Outro milhão de comprimidos já foram entregues ao Ministério da Saúde. Se no início do mês, o ministro interino Eduardo Pazuello anunciava que a produção do Laboratório continuaria a todo o vapor – mesmo depois do anúncio da doação de dois milhões de pílulas pelos Estados Unidos –, depois que o Ministério Público do TCU pediu investigação sobre o caso, isso não parece tão certo. Ontem, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, disse à imprensa que não projeta ampliar a produção. Segundo ele, o laboratório só irá produzir novos comprimidos “se houver pedido do Ministério da Saúde” – o que, indiretamente, reforça a denúncia de Mandetta e Valente de que antes não houve tal requisição

Azevedo também reclamou. Para o ministro, há uma “especulação sem necessidade” sobre suposta irregularidade no aumento da produção da droga. Mas segundo o repórter Diego Junqueira, que vem seguindo o caso, o Laboratório assinou pelo menos 18 acordos para a compra de cloroquina em pó e insumos de fabricação na mesmíssima semana em que o Ministério da Saúde emitiu seu protocolo de orientação da administração da substância apenas em pacientes com quadros graves de covid que estivessem hospitalizados. Como dissemos aqui na newsletter segunda-feira, tudo sem licitação, e tudo servindo para nada em relação ao controle do coronavírus no Brasil, já que não há nenhuma evidência da eficácia do remédio. 

O ministro da Defesa também informou que cerca de 34 mil militares já atuaram em “operações contra a covid-19” – um número superior aos 25,8 mil homens enviados pela Força Expedicionária Brasileira para a Segunda Guerra Mundial. Realizaram ações como de entrega de insumos, cestas básicas e descontaminação de espaços públicos.

Quem dera se a atuação militar se limitasse a isso. Vivemos tempos em que servidores do Ministério da Saúde denunciam que são obrigados a assinar termos de confidencialidade, com ameaça expressa de prisão sob alegado descumprimento da Lei de Segurança Nacional, e recebem em suas caixas de e-mail aviso de que suas redes sociais particulares serão monitoradas pelo Conselho de Ética da pasta. É a consequência da militarização do Ministério. Ontem, Bolsonaro e o general que comanda a pasta interinamente há um mês e meio foram acionados pela Justiça. O juiz Evandro Reimão dos Reis deu cinco dias para que respondam às denúncias, em resposta a uma ação protocolada pelo deputado federal Jorge Solla (PT-BA). 

“O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da Saúde fez o que está acontecendo agora”, criticou Adriano Massuda, ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde da gestão do ex-ministro Arthur Chioro*, em entrevista ao El País Brasil. Ele, que retornou à vida de professor, continua: “Pode haver um processo de desmonte da engrenagem que fez o sistema de saúde funcionar nos últimos 30 anos que é muito perigoso. O Exército pode estar puxando para o seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do nosso país”. Afirmou ainda: “O Exército está ocupando cargos técnicos quando o Brasil tem profissionais extremamente competentes na área da saúde coletiva brasileira. Poucos países têm a inteligência que nós temos neste setor. Essa inteligência não está no Exército.” Como exemplo concreto, ele cita a baixa execução orçamentária da pasta, que gastou apenas 27% dos recursos liberados na pandemia.

Mas para Jair Bolsonaro, a gestão da pasta “está excepcional”. “Nunca vi isso na história do Brasil na questão de gestão. Sabemos que não é médico, mas ele está com uma equipe fantástica dentro do Ministério da Saúde. Sabemos que muitos querem que a gente coloque lá um médico, agora um médico dificilmente é gestor. Se aparecer um médico gestor, a gente conversa com o Pazuello e vê como fica”, declarou ontem.

A propósito: o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos anunciou ontem que pedirá transferência para a reserva. A presença de um general na ativa em cargo eminentemente político incomodava as Forças Armadas, segundo o Estadão.

* Esse trecho foi alterado às 10:40. Na versão anterior havia um erro: publicamos que Adriano Massuda foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas a informação estava incorreta. Ele foi secretário na gestão do ex-ministro Arthur Chioro, no governo Dilma Rousseff.

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