O que faltou nas manchetes de domingo

Protestos de sábado têm pouco destaque na imprensa e geram medo exagerado por “aglomerações”: embora não seja nulo, risco de contágio com máscaras e em espaços abertos é baixo

Foto: Pilar Olivares / Reuters
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Multidões foram às ruas no sábado, em pelo menos 180 cidades, protestando contra o governo Jair Bolsonaro e pedindo por vacinas e auxílio emergencial – e, de quebra, mandando  um claro e necessário recado ao Congresso. Não havia acontecido nada parecido desde o começo da pandemia. As manifestações tiveram destaque em veículos de comunicação internacionais e chegaram a ser manchete no site do britânico The Guardian, mas não se pode dizer o mesmo dos brasileiros.

Na TV, as reportagens ao vivo nos principais canais de notícias foram quase insignificantes (veja aqui e aqui), principalmente quando comparadas à extensa cobertura dos protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd, no ano passado. O Jornal Nacional deu três minutos. No domingo, os principais jornais – cujos repórteres, aliás, têm feito um ótimo trabalho na cobertura da pandemia – não consideraram os protestos como uma notícia digna de capa. O Estadão preferiu dar destaque ao fato de que “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”; o Globo deu uma manchete positiva sobre a economia (“O PIB reaquece”) e uma foto grande de Gilberto Gil, para falar dos famosos que já foram vacinados… A exceção foi a Folha, que deu o devido relevo ao acontecimento mais importante do fim de semana.

Neste último jornal, a coluna de Mathias Alencastro diz que “o cortejo tinha a alma de uma marcha fúnebre“, o que torna ainda pior a falta de visibilidade: “Muitas vezes, quem critica a cobertura dos meios de comunicação desconhece a complexidade do noticiário de um grande jornal ou de um canal de televisão. Mas é difícil encontrar uma justificativa para omitir a dimensão cerimonial da manifestação política de sábado (29). Os meios de comunicação que acompanharam intensamente o sofrimento dos brasileiros durante a pandemia, mas optaram por dar pouco destaque à manifestação, fizeram mais do que privar a sua audiência de uma notícia importante. Eles cometeram um erro editorial: não souberam distinguir o luto do protesto”. 

Os cuidados certos

Apesar da pauta urgente, a convocação dos atos rachou a oposição ao governo, por conta da situação atual da pandemia no país. Vários especialistas alertaram que, mesmo com poucas chances de contágio devido à ênfase em medidas preventivas, os atos poderiam ter consequências ruins neste momento. “Os manifestantes usaram máscaras, mas houve aglomeração” é uma frase que as reportagens repetiram até perder de vista – e que só escancara o quanto a comunicação sobre os riscos da transmissão tem sido falha. 

Um ano atrás, quando George Floyd foi morto e os Estados Unidos começaram a ver uma onda de protestos antirracistas, essa mesma preocupação estava posta. Em apenas dois meses de pandemia, o país já tinha mais de 110 mil óbitos e quase dois milhões de infectados; a média  de mortes estava caindo há algumas semanas mas ainda estava em um patamar elevado, com mais de mil por dia. Flexibilizações de isolamento aconteciam em vários estados e, quando Floyd foi morto, os casos já tinham voltado a crescer em metade do país. Um pesquisador chegou a prever que cada dia de protestos levaria a três mil novas infecções.  Mesmo assim, incontáveis médicos explicitaram seu apoio aos atos e aderiram às manifestações em todo o país, por considerarem que aquilo era, sim, essencial.

Vale ressaltar que estávamos em maio de 2020, quando ainda não se sabia tanto sobre o vírus. Embora cientistas de aerossóis já estivessem gritando a plenos pulmões que ele se transmitia pelo ar, essa hipótese ainda era pouco disseminada e, em alguns ambientes, pouco aceita. Hoje, a cena é outra. Sabemos bem as formas pelas quais o SARS-CoV-2 e todas as suas variantes se transmitem e, com isso, conseguimos (ou deveríamos conseguir) enviar mensagens claras sobre os riscos associados a cada comportamento. Como é de praxe na saúde pública, aliás. Na pandemia, isso não tem acontecido.

Nos Estados Unidos, os protestos antirracistas não tiveram nenhum efeito significativo na disseminação do vírus no país. O que faz total sentido quando pensamos que o contágio se dá pelo ar: lugares ao ar livre oferecem baixo risco; somando-se a isso o uso amplo de máscaras, a chance de infecção é ainda mais reduzida. Além do mais, os protestos no Brasil acabaram se revelando uma enorme campanha de informação sobre o uso de PFF2, que oferece um grau de proteção altíssimo mesmo em ambientes com alto risco de contágio. Em várias cidades, a maior parte dos manifestantes usava esse tipo de proteção, e houve ainda distribução do equipamento a quem não tinha.

Bolsonaristas estão usando as “aglomerações” para afirmar que a esquerda perdeu seus argumentos. Esse raciocínio nem seria possível, se as formas de contágio e as melhores medidas de prevenção tivessem tido maior destaque ao longo do último ano. Mas, agora, cá estamos. Com ou sem protestos, os casos de covid-19 no Brasil já estão subindo e devem continuar assim. Para não permitir que as manifestações sejam culpabilizadas por isso, cabe colocar as coisas em seus devidos lugares, deixando claro o que oferece maior ou menor perigo. E dizer com todas as letras que não há comparação possível entre protestos realizados da forma mais segura possível, por quem quer o fim da pandemia, e manifestações de pessoas sem máscara em apoio a quem nos colocou nessa enrascada.

Em tempo: no Recife, a Polícia Militar repreendeu os manifestantes com violência. Dois homens (que sequer participavam do protesto) foram atingidos no olho por balas de borracha e perderam parte da visão.

Sentiu

Jair Bolsonaro evitou comentar os protestos, mas postou uma foto nas redes sociais segurando uma camiseta com os dizeres: “Imorrível, imbroxável, incomível“. Então tá…

Ele também intensificou sua agenda de viagens pelo país, e os compromissos incluem reinaugurações de obras já realizadas ou iniciadas por gestões anteriores, segundo o Estadão. Desde o começo do ano, essas viagens já consumiram R$ 1,67 milhão, só em diárias da sua equipe de segurança. 

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