Patentes e transferência de tecnologia: duas faces da mesma moeda bloqueando vacinas contra a covid-19

Luciana Lopes e Matheus Falcão falam sobre o que está dificultando a vacinação no Brasil e no resto do mundo

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Por Matheus Falcão e Luciana Lopes

O acesso a vacinas contra a covid-19 caminhou passos importantes com o apoio à proposta de suspensão de patentes por parte de atores historicamente contrários, com destaque para o governo dos EUA, possivelmente o maior defensor de patentes a nível global, e a Fundação Bill e Melinda Gates, principal financiador privado da Organização Mundial da Saúde (OMS) e feroz oponente do uso das flexibilidades legais que suspendem a eficácia de patentes, como o licenciamento compulsório.

Essas mudanças de posicionamento foram comemoradas em diversas partes do mundo, já que, no atual cenário desolador da pandemia, as vacinas representam a luz no fim do túnel.

A triste constatação de que a humanidade não produz imunizantes em quantidade suficiente para abastecer a população global faz com que esse túnel pareça muito longo, tornando urgente a discussão sobre formas de encurtá-lo.

Políticas de imunização, historicamente, centraram seu êxito em dois fatores: disponibilidade de vacinas – limitada tanto pela escassez quanto por preços elevados – e a capacidade dos sistemas de saúde de levá-las até as comunidades em tempo adequado.

Nesse campo, o Brasil é um exemplo de sucesso. O Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973, alcançou recordes internacionais. Na década de 80, vacinamos 18 milhões de crianças em um só dia contra a poliomielite, contribuindo para que a região das Américas se tornasse a primeira do mundo livre da enfermidade e da paralisia infantil.

Já a disponibilidade de imunizantes foi resolvida, no caso brasileiro, com o investimento estatal em políticas públicas para a produção local de imunobiológicos.

Em 1985, foi criado o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), que pretendia constituir um parque produtivo público, substituir importações e viabilizar as ações de saúde pública por meio do PNI. Por isso, hoje, nosso país dispõe de laboratórios farmacêuticos públicos capazes de abastecer o programa nacional e até mesmo programas internacionais da OMS.

O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz, por exemplo, forneceu ao SUS, em 2020, mais de 111 milhões de doses de vacinas e tem exportado seu excedente para mais de 70 países. Desde 2007, esse laboratório é pré-qualificado pela OMS para fornecer a vacina Meningocócica AC, abastecendo o programa da organização que leva imunizantes a mais de dez países na região africana.

No mesmo sentido, o Instituto Butantan, centenário laboratório público paulista, abastece o SUS com sete vacinas, incluindo aquelas contra influenza, hepatite A, hepatite B e raiva.

Não à toa, esses dois laboratórios protagonizam a solução brasileira para a crise da covid-19, tendo executado parcerias de transferência de tecnologias com laboratórios estrangeiros para a produção nacional de imunizantes (AstraZeneca para produção da Covishield, no caso da Fiocruz, e Sinovac, para produção da CoronaVac, no caso do Butantan).

Em um levantamento feito pelo pesquisador Thomas Conti, o Brasil figurava, no início de maio, na 45ª posição no ranking de nações que mais doses de vacina aplicaram contra a covid-19, sendo que, sem a CoronaVac, estaríamos na 83ª posição.

Por que faltam vacinas?

Frente à capilaridade do SUS e do PNI e da importante capacidade dos laboratórios públicos brasileiros, a urgente questão é levantada: por que faltam vacinas?

Em parte, isso se deve à má gestão federal da pandemia e a políticas de austeridade que afetam as políticas de saúde e de inovação tecnológica. No entanto, a principal barreira ao acesso a essas tecnologias é a falta de doses suficientes em nível global – o que afeta o Brasil e diversos países e resulta em uma corrida por imunizantes que privilegia os mais poderosos.

Em 12 de maio, mais de 1,3 bilhão de doses de vacinas contra a covid-19 já haviam sido aplicadas. Enquanto 53% da população do Reino Unido já recebeu uma dose da vacina, só agora o Brasil está chegando próximo à marca de 16% de cobertura vacinal. Mas há diversos outros países, sobretudo na América Latina, na África e na Ásia, que ainda não conseguiram doses para vacinar nem 1% de suas populações. Em janeiro, dez países ricos concentravam 75% das doses aplicadas.

Há duas limitações fundamentais que impedem o aumento da produção de vacinas e dificultam a superação desse cenário:  limitações jurídicas – isto é, patentes e outras restrições de propriedade intelectual – e limitações de capacidade tecnológica.

O monopólio sobre as tecnologias em saúde

As patentes são monopólios temporários garantidos pelo Estado a agentes econômicos que, em tese, trouxeram uma inovação ao mercado. Elas foram criadas como um mecanismo institucional de estímulo à inovação. Seu fundamento é que o desenvolvimento de um novo produto é um processo caro e cheio de incertezas, que envolve alto risco para o investidor. Assim, garantir ao inventor um monopólio temporário sobre a inovação garantiria a recuperação do investimento e a continuidade da busca por novas tecnologias.

Contudo, séculos de história produziram inovações nos mais variados campos sem a necessidade de monopólios legais. O Brasil, por exemplo, não permitia, entre 1971 e 1996, que produtos químico-farmacêuticos e medicamentos fossem objeto de patentes.

A situação mudou em 1994, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a aprovação do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês).

O TRIPS impôs que todos os Estados-membros da OMC aplicassem um mínimo de proteção a direitos de propriedade intelectual, a exemplo de patentes, marcas e segredos industriais.

Um de seus resultados foi a piora da crise global de acesso a antirretrovirais, aumentando o número de mortes por HIV/AIDS, já que se dificultou o acesso a medicamentos genéricos e, consequentemente, o controle da epidemia. Segundo a OMS, programas de sucesso de enfrentamento à Aids naquela época, como os do Brasil e da Tailândia, só foram possíveis devido à produção local de antirretrovirais não patenteados a baixos custos.

Frente à dificuldade global de acesso aos antirretrovirais, o mundo se mobilizou e respondeu, em 2001, com a Declaração de Doha, que reafirma o direito dos países de usar as chamadas flexibilidades dos TRIPS – medidas permitidas de não proteção de patentes para enfrentar crises de saúde pública.

Uma conhecida flexibilidade do acordo é a licença compulsória, que ficou conhecida como “quebra de patente”, apesar de contar com absoluto amparo legal. O Brasil optou por usar essa prerrogativa somente uma vez, em 2007, para produzir nacionalmente, na Fiocruz, o antirretroviral efavirenz.

No contexto da pandemia, a propriedade intelectual também foi, desde o princípio, apontada por diversos atores como uma barreira à resposta à crise sanitária.

Observando a inércia de empresas e países na flexibilização dos direitos sobre tecnologias essenciais, em outubro de 2020 Índia e África do Sul apresentaram uma proposta de suspensão temporária de algumas cláusulas do Acordo TRIPS para acelerar o enfrentamento da pandemia.

A proposta, que ficou conhecida como waiver, suspende especialmente patentes e direitos de segredo industrial, e é apoiada por aproximadamente cem países e pela própria OMS, mas enfrentou, até agora, a resistência de países ricos e… do Brasil. A mudança de posição histórica dos EUA traz um novo momento e uma nova força para a proposta.

Ainda assim, há um importante argumento contrário à flexibilização da propriedade intelectual: não adianta suspender as patentes se não houver transferência de tecnologia e capacidade tecnológica de produção nacional.

A questão, no entanto, merece mais atenção e uma análise detida pode revelar que ampliar a transferência de tecnologias e suspender patentes são estratégias que caminham juntas.

Transferência de tecnologia e o monopólio do conhecimento

Capacidade tecnológica de produção é algo que se constrói a partir de políticas públicas duradouras de inovação tecnológica e investimento estatal. Foi assim que chegamos aos laboratórios públicos que existem no Brasil. Ainda hoje, o investimento público segue sendo um motor fundamental da inovação farmacêutica no mundo todo.

A vacina de Oxford exemplifica o caso, tendo contado apenas com 3% de investimento do setor privado ao longo do seu processo de desenvolvimento.

Diante da urgência exigida pela pandemia, para se ampliar a produção de tecnologias, como as vacinas, o ideal é que haja alguma capacidade já existente no país e, ainda mais importante, é preciso haver a transferência de tecnologia.

No Brasil, foram justamente Butantan e Fiocruz que conseguiram firmar contratos que previam esse processo: receberam a capacitação tecnológica para que incorporassem algumas etapas de produção das vacinas em suas próprias unidades. Recentemente, foi finamente anunciada a transferência da tecnologia para a produção, inclusive, do insumo farmacêutico ativo pela Fiocruz.

Vacinas são produtos particularmente complexos. Diferentemente dos medicamentos genéricos, mesmo as novas vacinas de um produto já existente, mas desenvolvidas por um novo fabricante, devem realizar novos testes clínicos e comprovar altos padrões de segurança, qualidade e eficácia. 

Amit Sengupta, médico indiano que se tornou conhecido por ser um dos principais ativistas no campo da Saúde Global, já anunciava, em uma publicação de 2014, que a transferência de tecnologia seria uma das principais barreiras de acesso a medicamentos biotecnológicos e a vacinas, junto com patentes e caminhos regulatórios mais complexos.              

E passados 15 meses do início da pandemia, ainda nos resta a dúvida: o quão difícil seria replicar a produção de vacinas sem a transferência de tecnologias?

Em setembro de 2020, em um artigo publicado na consagrada revista Nature, dez plataformas tecnológicas de vacinas contra a covid-19 foram identificadas. Algumas delas são usadas há décadas, como vírus inativado e vírus atenuados, enquanto outras estão em teste pela primeira vez, como as de RNA mensageiro e de DNA. Ou seja, há diferentes possibilidades e complexidades.

Notícias recentes de que a empresa Moderna transformou, em alguns meses, uma fábrica de máquinas fotográficas Polaroid desativada em uma fábrica de vacinas também chamam a atenção para o fato de que, talvez, a tarefa seja mais simples do que parece. Em outros tempos, uma nova vacina levaria cerca de 15 anos para chegar ao mercado, mas o esforço global em torno da pandemia reduziu esse prazo para menos de um ano.

O debate sobre transferência de tecnologia também enfrentou oposição do setor privado. Em maio de 2020, a OMS, a partir de uma proposta costarriquenha, criou o C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool), um mecanismo global para compartilhamento de tecnologias, com a função de acelerar a esse fluxo para produtos associados à covid-19. Sua limitação, no entanto, é a adesão voluntária por parte de empresas, governos e instituições, que, até o momento, demonstraram pouco ou nenhum interesse na iniciativa.

Duas faces da mesma moeda

Patentes e falta de transferência de tecnologia são duas barreiras de acesso ao aumento da produção de vacinas e, portanto, à superação da pandemia. Ambas representam monopólios que devem ser igualmente questionados de modo a acelerar a entrada de novos imunizantes no mercado.

Recentemente, foi lançada uma nova iniciativa pela OMS de criação de um hub para transferência de tecnologia e capacitação direcionada a países de média e baixa renda. A chamada de apoio à iniciativa deixa claro como essas barreiras estão relacionadas: “é essencial que a tecnologia usada esteja livre de impedimentos relacionados à propriedade intelectual nesses países ou que tais direitos sejam disponibilizados”.

A suspensão das patentes significa a liberdade para produzir sem risco de bloqueios jurídicos e sanções econômicas, favorecendo que os setores públicos e privados de cada país busquem replicar a produção de tecnologias que já estão no mercado, aumentando a capacidade produtiva global. Significa, no mínimo, a chance de tentar – que, por si só, já contribui para a capacitação dos atores envolvidos.

Além disso, propostas como o waiver suspendem não apenas a proteção de patentes, mas também de segredos industriais, um direito de propriedade intelectual pouco debatido, mas com potencial de dificultar a transferência tecnológica.

Ao mesmo tempo, a transferência de tecnologia deve ser estimulada: se a receita é compartilhada, aprende-se mais rápido a fazer o bolo. 

Se mecanismos como o C-TAP fossem endossados pelas empresas, contribuiriam para a ampliação da capacidade produtiva global. Por isso mesmo, a defesa de mecanismos para a ampliação da transferência de tecnologia deve ser feita de forma coerente, com defesa da adesão obrigatória – sobretudo de atores que tiveram grandes somas de dinheiro público investido em suas tecnologias, como é o caso das vacinas já registradas contra a covid-19. Mais 70% do investimento nesses imunizantes veio de fundos públicos ou fundações filantrópicas.

Essa defesa, contudo, não deve ser distanciada de outras medidas também necessárias para a ampliação da produção global de tecnologias contra a covid-19.

O próprio debate em torno da suspensão das patentes é um motor global da discussão sobre a transferência de tecnologia. A força que o waiver ganhou mexeu, inevitavelmente, com os ânimos globais e forçou grandes instituições e empresas, até então persistentes em manter os negócios como sempre (“business as usual”), a oferecerem soluções.

O monopólio da capacidade tecnológica e o monopólio dos direitos de propriedade intelectual por parte das empresas e instituições concentradas em países ricos são duas faces da mesma moeda: um sistema de inovação global que trata a saúde como uma mercadoria, e não como um direito humano a ser alcançado por todas e todos.

Neste momento da história, defender a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas e outras tecnologias relacionadas à covid-19 é a postura mínima esperada de todas e todos que acreditam que o direito à saúde e à vida deve vir antes dos interesses financeiros.

Matheus Z. Falcão é advogado, doutorando em direito pela USP e pesquisador associado do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário (Cepedisa/USP).

Luciana M. N. Lopes é farmacêutica, doutoranda em Saúde Pública pela UFMG e diretora executiva da Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM) no Brasil e na América Latina.

Os autores também integram o Movimento pela Saúde dos Povos (People’s Health Movement — PHM).

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