O fim do que não começou

No Brasil “lockdown” tem regras totalmente diferentes em cada lugar. Isolamentos ficam abaixo do necessário. E flexibilizações acontecem sem dados confiáveis

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Em comparação com outros países e regiões, vários estados brasileiros começaram a adotar medidas de restrição relativamente cedo, em meados e março, quando o país registrou a primeira morte em São Paulo. Ainda assim, as curvas de contágio e morte hoje parecem incontornáveis. Isso tem sido combustível para a ira bolsonarista em suas redes, onde tomou corpo o boato de que o isolamento não têm muita serventia.

Mas as restrições foram quase sempre insuficientes, e, conforme a situação piorava, elas demoraram a ser enrijecidas. Mesmo nos lugares onde se declarou o lockdown, o que seria o confinamento mais duro possível, não necessariamente as medidas são ou foram dignas desse nome. Uma reportagem da Piauí explica como cada estado e município usa uma estratégia diferente e a bagunça que isso gera.

No Maranhão, primeiro estado a determinar o lockdown (o que foi feito quando a ocupação das UTIs estaduais destinadas a pacientes com coronavírus na região metropolitana de São Luís, chegou a 100%), as aulas foram suspensas, o uso de máscaras se tornou obrigatório, os serviços não essenciais foram fechados. Porém, embora tenha sido vetada a aglomeração de pessoas em espaços públicos, a movimentação nas ruas não foi proibida, nem a circulação de carros particulares. Vale dizer que, ainda assim, o quadro melhorou. Mas as medidas foram interrompidas numa situação ainda muito pouco confortável, com mais de 80% das UTIs cheias. Com o mesmo nome – ‘lockdown‘ –, as restrições no Pará foram muito mais pesadas, abrangentes e duradouras. Na capital cearense, também.

O Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste recomendou ontem que mais governadores da região adotem o lockdown em algumas grandes cidades da Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Bahia, onde há curvas ascendentes de casos e mais de 80% de ocupação dos leitos hospitalares. Resta saber que ‘lockdown‘ será este, se for acatado. Em Pernambuco, mesmo com confinamento iniciado no sábado, a taxa de isolamento segue baixa: na quarta, ficou em 54% na capital e na casa dos 53% em Olinda.

“O nosso isolamento social é muito meia-boca. Estamos fazendo uma coisa pela metade. E o que é pior, a gente é como aquele paciente que toma metade do antibiótico, não cura da infecção, mas tem dor de cabeça, dor de estômago e todos os efeitos colaterais”, resumiu, na Piauí, o epidemiologista e professor da USP Paulo Lotufo. E completou: “Nós estamos aprendendo, ninguém sabe exatamente o que tem que ser feito. A questão é achar alguns marcadores. Defendo dois principais: ver se houve alteração no excesso de mortes e aumentar a capacidade hospitalar. Quando você reduzir as mortes e aumentar a sua capacidade de atendimento a quem precisa, tiver mais leitos e dando conta da situação, aí você pode pensar no afrouxamento da medida”.

Como bem sabemos, não é o que acontece. Nem poderia: mesmo onde as curvas diminuem, não dá para saber direito se é por redução nas contaminações ou pela falta de testes e atraso nos registros. Simplesmente não há dados para determinar reaberturas.

O estado do Rio, que tem 32 mil casos e 3,4 mil mortes, anunciou ontem seu protocolo de flexibilização. As decisões vão se basear justamente em dados falhos. Conforme as curvas da doença e as taxas de ocupação de leitos, haverá bandeiras verde, amarela e vermelha indicando a liberação ou fechamento das atividades. Só que se trata do estado com o mais baixo índice de processamento de exames de covid-19. Só 42% das amostras colhidas foram processadas – e isso sem contar os testes que sequer foram feitos.

Na capital fluminense, grande foco das contaminações e mortes do estado (18 mil casos e 2,3 mil mortes), o prefeito Marcelo Crivella almoçou com Bolsonaro ontem e logo em seguida anunciou já ter pronto um “plano completo” de reabertura do comeŕcio nos próximos dias. Segundo ele, a proposta vem num momento de achatamento da curva. Mas… há mais de 400 pessoas na fila por vagas em leitos de UTI na cidade. Duque de Caxias, segundo município com mais mortes (167, em 1,1 mil casos), já anunciou a abertura do comércio a partir de segunda-feira. Por lá, nunca houve restrições à circulação de pessoas. Em ambas as cidades, a taxa de mortes é altíssima, o que só comprova que há muitas, muitas infecções não registradas.

Já Niterói, com 1,9 mil casos e 65 mortes, começou ontem sua flexibilização do lockdown, após menos de duas semanas do bloqueio. O município tem sido cuidadoso no controle da crise, e o plano foi desenvolvido por técnicos da prefeitura, pesquisadores da UFF e da UFRJ (e também empresários). Algumas atividades não essenciais começam a ser realizadas, mas ainda com restrições.

O presidente Jair Bolsonaro falou a apoiadores sobre a retomada. Comemorou a conversa com Crivella, mas disse que a abertura das escolas vai precisar ser feita “com calma”. Não porque seja perigoso, mas porque as famílias ainda não se despiram do seu ‘pavor’: “A população tem que ir entendendo aos poucos o que é este vírus, que ele realmente é muito perigoso para quem tem certa idade, para quem tem alguma doença. Para a juventude não tem este perigo todo. Estamos analisando aí… Os pais [têm que] afastar aquela ideia de pavor que tinha no tocante ao vírus para a gente poder abrir”, disse.

Em tempo: Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, disse ontem que não planeja suspender atividades da economia de novo caso os Estados Unidos sejam atingidos por uma nova onda de covid-19 (não, a primeira não acabou). A verdade é que se houver testagem suficiente para localizar todos os focos e tecnologia para rastrear todos os contatos, talvez bloqueios abrangentes não sejam tão necessários, mas não se sabe o que vai acontecer. De qualquer forma, lá como aqui, não depende do presidente essa decisão. Um estudo da Universidade de Columbia calculou que, nessa primeira ‘leva’, 35 mil vidas poderiam ter sido salvas caso as medidas de distanciamento social no país tivessem sido adotadas apenas uma semana antes. 

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