O enterro da Renda Brasil e seus desdobramentos

O futuro de Paulo Guedes e Waldery Rodrigues é incerto. A popularidade de Bolsonaro, idem

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Jair Bolsonaro enterrou, pelo menos por enquanto, a ideia de criar uma marca social para o seu governo. “Até 2022 está proibido falar a palavra Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família e ponto final”, anunciou nas redes sociais. No fim de agosto, o presidente já havia surpreendido, dizendo que não enviaria o programa ao Congresso Nacional. A razão para o recuo é a mesma nos dois episódios: a repercussão negativa das propostas da equipe econômica, antecipadas à imprensa aparentemente sem coordenação com o Planalto. Primeiro, Paulo Guedes apareceu na Folha dizendo que sem o fim das deduções em saúde e educação no Imposto de Renda da pessoa física não seria possível tirar o Renda Brasil do papel. Agora, foi a vez do secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, anunciar ao G1 a ideia de congelar por dois anos o valor dos benefícios previdenciários, como aposentadorias. Fontes do time de Guedes também vazaram à Folha o plano de expulsar beneficiários do BPC para fazer economia para o Renda Brasil.  

“Eu já disse, há poucas semanas, que eu jamais vou tirar dinheiro dos pobres para dar para os paupérrimos. Quem porventura vier propor para mim uma medida como essa, eu só posso dar um cartão vermelho. É gente que não tem o mínimo de coração, o mínimo de entendimento de como vivem os aposentados do Brasil”, disse Bolsonaro no vídeo. E continuou: “Quero dizer a todos vocês. De onde veio? Pode ser que alguém da equipe econômica tenha falado nesse assunto, pode ser, mas por parte do governo jamais vamos congelar salário de aposentados como jamais vamos fazer com que o auxílio para idosos e pessoas com deficiência seja reduzido para qualquer coisa que seja”.

A equipe econômica ficou sabendo da decisão do presidente na noite da segunda-feira, segundo a Reuters. Na manhã de ontem, Guedes e Waldery foram convocados ao Planalto. O secretário da Fazenda deu explicações e, no fim, Bolsonaro decidiu proibir as entrevistas da área econômica. Aquelas que já estavam marcadas foram canceladas. Foi depois dessa reunião que o presidente gravou o vídeo. Integrantes do governo se dividem em relação ao futuro de Waldery Rodrigues. De acordo com O Globo, sua saída é considerada. Já quem falou com o Valor acredita que ele deverá permanecer no cargo, apesar do desgaste.

Paulo Guedes buscou se distanciar da crise (como se isso fosse possível), dizendo que o cartão vermelho não foi para ele. O ministro da Economia elegeu a imprensa como bode expiatório: “Não é possível você abrir um jornal e todas as manchetes estarem assim: querem tirar dos pobres, querem assaltar os pobres para dar para os mais pobres ainda”, afirmou, completando: “Então a reação do presidente é uma reação política, correta. Se a mídia toda está dizendo que eu quero tirar dinheiro dos pobres e dar para os mais pobres eu vou dar minha resposta em alto e bom som”. Faltou lembrar que a expressão ‘tirar dos pobres para dar para os paupérrimos’ é da lavra do presidente, não de jornalistas. 

Na narrativa de Guedes, ao desistir do Renda Brasil, Bolsonaro teria sinalizado na direção do teto de gastos que impede que as despesas primárias da União cresçam de um ano para o outro acima da inflação, e é a grande trava de uma agenda social com as digitais do bolsonarismo. Mas também é provável que o presidente queira outra solução para o problema, que passe por um ministro da Economia disposto a defender a flexibilização do teto. O nome de Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) apareceu novamente ontem. De uma maneira ou de outra, o fato é que Guedes está na corda bamba. “O ministro vem sendo fritado e perdendo força no governo após ver suas ideias serem consideradas politicamente inviáveis”, resume a Folha.

O Estadão chama atenção para um fato importante: nenhuma das propostas vazadas ou anunciadas pela equipe econômica à imprensa eram desconhecidas por Bolsonaro, que no vídeo se disse “surpreendido”. O jornal apurou que “tabelas já circulavam há muitas semanas com a economia prevista e o alcance de cada medida”. Lembra que o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), falou sobre o assunto no domingo, e que as ideias para o chamado ‘DDD’ – desindexação (retirada de correções automáticas de gastos), desvinculação (retirada dos pisos da saúde e da educação) e desobrigação – seriam incluídas pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC) nessa semana no seu relatório da PEC do Pacto Federativo. Ainda não está claro o que entra nesse texto depois da desistência do Renda Brasil. 

A popularidade presidencial também tem futuro nebuloso. A leitura geral é de que, com o fim do pagamento do auxílio emergencial em 2021, os ventos que deram novo impulso ao bolsonarismo vão se transformar em uma tempestade para o governo, que além da insatisfação dos beneficiários, terá de lidar com os impactos econômicos. A retirada do auxílio dos trabalhadores informais pode provocar queda de 2,4% no PIB, segundo cálculo do economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. Por isso mesmo, Bolsonaro cogitou estender o pagamento do auxílio no valor atual, de R$ 300, até março. Segundo a Folhaessa hipótese foi descartada porque seria necessário prorrogar o estado de calamidade que dá margem aos gastos de combate à pandemia.

Por enquanto, parece ter prevalecido a ideia de reforçar ainda mais o Bolsa Família. Na proposta de orçamento enviada ao Congresso, o programa já tinha recebido um acréscimo que, nos cálculos da equipe econômica, seria suficiente para ampliar o número de beneficiários dos atuais 14,2 milhões para 15,2 milhões. O valor médio do benefício continuaria o mesmo: R$ 192 mensais por família. Isso, é claro, não resolve o problema. 

Nesse sentido, a própria área econômica já espera que o Congresso tome a dianteira, num debate que envolve ao mesmo tempo as próximas parcelas do auxílio emergencial, a expansão do Bolsa Família e até mesmo outras fontes de financiamento que possibilitem um novo programa de transferência de renda. O líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), recomendou a tributação de lucros e dividendos e a elevação da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) como forma de custear o Renda Brasil. Lembramos que o aumento das receitas não adianta, já que a regra do teto não permite que o orçamento cresça acima da inflação.

A presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, Simone Tebet (MDB-MS), foi em direção parecida ao colega de partido: “Há uma grande diferença entre a teoria da equipe econômica e a realidade. Não tem lógica a equipe econômica imaginar que, num país com tanta desigualdade, tanta miséria, tantos super-ricos, você precisa melhorar o Bolsa Família, melhorar as condições dos miseráveis taxando ou mexendo na classe D ou na classe média, quando você tem alternativas de mexer com a classe A e B”, disse, arrematando: ” A equipe econômica está querendo nos vencer pelo cansaço e quem está ficando cansado somos nós”.

Já a oposição recebeu com alívio a notícia do sepultamento do Renda Brasil. Segundo a coluna de Mônica Bergamo, parlamentares avaliam que Bolsonaro ainda não sofreu o impacto da alta de preço dos alimentos e só terá más notícias para dar à população em 2021.

O abandono do Renda Brasil também não pegou bem no mercado, com aumento das incertezas sobre a agenda governamental e a permanência de Guedes. A Bolsa fechou em queda e o dólar em alta. “Há um impacto para toda a sociedade, para a população, para os investidores de capital nacional e estrangeiro, para todos os atores, pois você fica sem saber o que vai acontecer amanhã. Você tem a sensação que ao acordar e ler os jornais vai ter um rumo completamente diferente. Como você consegue investir em um país onde não se discute o futuro da população e a redução das desigualdades, pois você não sabe qual a medida que sairá no Diário Oficial amanhã? Também não adianta ter só o planejamento se você não executa, as ações precisam vir de mãos dadas: planejamento e execução, com uma visão clara de nossa direção. Essa falta de visão gera uma falta de crença na economia e nas instituições, e isso vira um círculo vicioso, onde você fica parado, regredindo. Quem vai apostar em um país sem que você saiba qual é o seu norte?”, questiona André Marques, coordenador-executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, em entrevista a ‘O Globo.

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