O ‘Dia do fogo’, um ano depois

Nenhum responsável foi preso ou indiciado. Quase todas as áreas queimadas já viraram pasto. E dados do Inpe mostram que incêndios em 2020 podem ser ainda piores

Foto: Agência Brasil
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Exatamente um ano atrás, focos de incêndio espalhados propositalmente à beira de uma rodovia no Pará ajudaram a agravar ainda mais o cenário das queimadas na Amazônia, que atingiram níveis recordes. O ‘Dia do Fogo’ – que levou o número de focos no sudoeste do estado a triplicar entre 10 e 11 de agosto de 2019 – foi combinado pelo WhatsApp por dezenas de pessoas, entre produtores rurais, comerciantes, grileiros e sindicalistas da cidade de Novo Progresso. Uma ‘vaquinha’ chegou a ser feita para comprar combustível e contratar motoqueiros para o serviço.

Mas até hoje nenhum responsávelfoi preso ou indiciado, como mostra a matéria de Daniel Camargo na Repórter Brasil. Na verdade, os únicos detidos foram trabalhadores rurais sem-terra contra os quais não havia evidência alguma, e que ficaram 50 dias na prisão.

O inquérito da Polícia Civil de Novo Progresso não aponta responsáveis: conclui que o fogo foi alastrado pelo tempo seco e que as queimadas acontecem todo ano. Já a Polícia Federal (PF) chegou a apreender documentos, celulares e computadores de empresários e fazendeiros, mas não concluiu a perícia (nem terminou o inquérito). A apuração de Camargo aponta entraves às investigações. Primeiro, os grandes proprietários da região têm boas relações com deputados e senadores do Pará, além de interlocução com o alto escalão do governo federal. Segundo, há um racha entre policiais civis e federais no estado – e por isso depoimentos tomados pela Polícia Civil de Tapajós sequer foram repassados à PF, por exemplo.

Além de não ter havido prisões e indiciamentos, as multas aplicadas a desmatadores também foram escassas. O Greenpeace identificou 478 propriedades onde ocorreram queimadas no Dia do Fogo. Entre elas, pelo menos 66 tinham algum tipo de embargo prévio por crime ambiental e 207 tiveram incêndios em áreas de floresta, mas só 5,7% foram autuadas. Mais: uma equipe da ONG sobrevoou a região e observou que quase todas as áreas que eram florestas e foram queimadas já viraram pasto. “Apenas um ponto não tinha pasto. Nos outros, já tinha pasto e gado sendo engordado”, afirma Rômulo Batista, do Greenpeace, na Folha

Não acabou

É claro que vem mais fogo por aí. Ainda de acordo com Batista, nos sobrevoos foi possível ver pilhas de árvores derrubadas, que estavam secando e aguardando para requeima. “É incontestável a relação entre as duas questões: a queimada é o passo seguinte da derrubada. Ainda há uma grande área desmatada na Amazônia no ano passado que não foi queimada, cerca de 4,5 mil quilômetros quadrados”, diz o relatório da ONG. 

Este ano, a temporada de fogo está só começando (o pico de registros costuma ser em setembro). Mas dados do Inpe divulgados no início do mês mostram que o número de focos de incêndio já aumentou 572% em todo país em 2020, comparando com agosto do ano passado. Novo Progresso está entre os dez municípios brasileiros com mais focos este ano. Lá, não há viaturas disponíveis do Ibama para combater as chamas. Procuradores do Ministério Público Federal explicam, na Deutsche Welle, por que tudo deve continuar piorando: “Com esse governo, a gente tem tido dificuldades enormes impostas por quem deveria ser parceiro, como Ibama, Funai, governo federal, Ministério do Meio Ambiente. Eles acabam se transformando em inimigos“, diz Igor Spíndola, procurador e integrante da força-tarefa Amazônia, que investiga crimes ambientais.

Os focos se multiplicam em outras regiões também. O Pantanal está há semanas com incêndios descontrolados (este ano, o mês de julho teve o maior número de queimadas já registrado por lá, com um aumento de 421% em relação ao ano passado). Já foram mais de um milhão de hectares queimados. “Quem põe fogo no Pantanal é o homem. O fogo natural acontece por causa de raios, sempre associado ao período de chuvas. Como não tem chovido, então é claro que o homem é o grande causador disso”, afirma, na BBC, o biólogo André Luiz Siqueira.

E na (muito mais úmida) região serrana do Rio, seis dias de incêndio destruíram 360 hectares do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Também lá, tudo indica que os focos foram criminosos. 

Para mostrar serviço

Por razões óbvias, o Brasil tem perdido protagonismo no debate internacional sobre a Amazônia. Com a pressão de investidores internacionais, o governo quer recuperá-lo, segundo a Folha: o vice-presidente Hamilton Mourão pretende dar um gás na OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), que reúne reúne Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela e busca articular atividades conjuntas na região. Ultimamente ela tem estado em segundo plano – e o Brasil acumulou mais de R$ 8 milhões em contribuições atrasadas. Mourão quer quitar a dívida. Além disso, nos próximos dias deve ser recriada (sob o guarda-chuva do general) a comissão nacional responsável por acompanhar a aplicação do tratado de cooperação, que havia sido extinta no ano passado. 

E o governo enviou ontem um pedido para realocar R$ 410 milhões do orçamento federal para o Ministério da Defesa. O dinheiro serviria para compensar as despesas das Forças Armadas na operação contra o desmatamento da Amazônia (a Brasil Verde 2), comandada pelo vice. Que, como já comentamos aqui, não parece estar dando os melhores resultados.