O desmatamento e seu papel na pandemia

Devastação pode trazer novos vírus desconhecidos. No Brasil, um festival de ocultação e manipulação de dados ambientais

Foto: Valter Campanato / Agência Brasil
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A pandemia tem monopolizado todas as atenções – e não poderia ser diferente. Testes, leitos, respiradores, possíveis vacinas e tratamentos são alguns dos assuntos que dominam o debate público. Mas há alguma coisa faltando, um assunto sobre o qual pouco se fala: as causas estruturais da pandemia. Melhor dizendo: as raízes profundas de recentes pandemias, epidemias e surtos de novas doenças que se sucedem um após o outro. Para muitos, o motor por trás desse processo tem a ver com um sistema de produção causador de desequilíbrio ambiental. 

A reportagem da NPRa rádio pública dos EUA, resgata um exemplo mais ou menos recente. Um relatório da Organização Mundial da Saúde produzido em 2015 concluiu que o surto de ebola que atingiu Guiné, Libéria e Serra Leoa entre 2013 e 2016 pode ter começado assim: um bebê de um ano e meio brincava perto de uma árvore no seu quintal. A árvore estava cheia de morcegos, animais que são conhecidos portadores de vários vírus – neste caso, o do ebola. O que os morcegos estavam fazendo naquele quintal? A OMS respondeu que provavelmente isso tinha a ver com o desmatamento na região. E com mineração e extração de madeira também. Outros pesquisadores da doença já traçaram 25 ligações entre surtos e perda florestal.

“Especialistas em saúde dizem que o novo coronavírus, que matou quase meio milhão de pessoas em todo o mundo, teve origem em um animal. Provavelmente, um morcego. E embora seja muito cedo para saber se o desmatamento ou a mudança no uso da terra teve algum papel no que se tornaria uma pandemia global, há preocupações de que a ruína econômica que está deixando para trás possa ajudar a preparar o cenário para futuras pandemias”, escreve Nathan Rott. 

Isso porque, apesar de o meio ambiente parecer estar ‘melhorando’ com o isolamento social, as florestas continuam sob ataque, e a situação preocupa principalmente no sudeste asiático, na África e… na América do Sul. As florestas tropicais têm mais biodiversidade, logo o desmatamento pode colocar face a face vírus desconhecidos e seres humanos.

Na Vox, uma reportagem aborda outro ângulo da questão, de olho na situação do Brasil e da Indonésia, dois países que ostentaram recordes de desmatamento no ano passado e, onde, em 2020, as motosserras continuam a todo vapor durante a pandemia.  “As chamas em 2019 foram provocadas em partes degradadas da floresta para limpar terras para mineração e agricultura e, em alguns casos, para expulsar os indígenas que vivem na área. Agora essa pressão está crescendo em meio à pandemia da covid-19, com muitas pessoas forçadas a deixar o trabalho. E os governos estão tendo mais dificuldade em impor regras contra o desmatamento ilegal e a queima, à medida que lidam com o vírus”, nota Umair Irfan.

Isso para não falar de quando os governos implodem suas regras, passando as boiadas na base do ‘parecer, caneta’. Temos aqui um caso fresquíssimo: o Ibama não está mais fornecendo informações sobre autuações, multas e apreensões feitas contra desmatadores na região da Amazônia Legal. O órgão perdeu (mais) essa autonomia, desta vez para a Vice-Presidência da República. 

Hamilton Mourão também está mentido em outra operação: desta vez não de ocultação de dados, mas de manipulação deles. Segundo o Estadão, ações de combate ao desmatamento realizadas pelo Ibama e por secretarias estaduais de meio ambiente tiveram seus dados incluídos no balanço da operação militar “Verde Brasil 2” – iniciada pelo Conselho da Amazônia presidido por Mourão. A operação foi deflagrada por decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em maio, emprega 3,8 mil militares e custa aos cofres públicos R$ 60 milhões. Só que, segundo a lei, nenhum militar pode aplicar multas por infrações ambientais – multas essas que aparecem no balanço da operação num total de R$ 95,6 milhões… 

Todas essas incongruências estão pegando muito mal: investidores ameaçam tirar dinheiro do país por conta do desmatamento e eurodeputados enviaram uma carta a parlamentares brasileiros pedindo ações para proteger a Amazônia. 

E uma dica: o biólogo evolucionista Rob Wallace defende que o aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à captura de terras e à produção de alimentos que sustentam um modelo que favorece poucos: basicamente as empresas multinacionais. “Qualquer pessoa que pretenda entender por que os vírus estão se tornando mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção pecuária”, sugeriu. Mas, de acordo com ele, há uma “recusa conveniente” em fazer isso. Assim, cada nova doença acaba sendo tratada como um incidente isolado. Suas ideias, já muito conhecidas lá fora, agora podem ser examinadas em português no livro “Pandemia e agronegócio”, editado pela Elefante. 

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