Ministério da Saúde quer “integrar” planos de saúde e SUS

Proposta colocada em consulta pública no dia 30 de abril usa a pandemia como justificativa para a desregulação

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Há nem tanto tempo assim, uma das editoras da newsletter entrevistou uma figura-chave do setor privado de saúde e ouviu dela a seguinte frase: “A gente tem um corpo em busca de uma alma e uma alma em busca de um corpo”. Com essa metáfora, Francisco Balestrin – que, na época, estava à frente da Anahp, associação que reúne os hospitais particulares mais lucrativos do país – queria defender a incorporação da lógica empresarial ao SUS, reduzindo o maior sistema universal público de saúde do planeta à condição de zumbi, corpo sem alma. 

Em 2014, a Anahp tinha reunido pela primeira vez essas propostas em um documento, no jargão corporativo um “livro branco”, que saiu entregando para presidenciáveis, governadores e autoridades diversas. Desde então, mais iniciativas do gênero vieram, com propostas do tipo: o Estado deveria outorgar a um hospital particular a autoridade para coordenar a atenção primária do SUS em um determinado território.   

Todo esse nariz de cera serve para expor a lógica que guia a proposta de Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19, colocada em consulta pública pelo Ministério da Saúde desde o dia 30 de abril.O documento fala muito em “integração” entre SUS e, no caso, planos de saúde. Essa palavra exaustivamente usada pelos empresários, e definitivamente incorporada pelo governo Jair Bolsonaro, tenta esconder a tentativa de introjetar interesses privados no marco legal do SUS – “passar a boiada”, como sugeriu Ricardo Salles um ano atrás

Pesquisadores da UFRJ e da USP de grupos que estudam as empresas de planos de saúde caracterizam a proposta como “integração reversa”, na qual o SUS atuaria como rede prestadora das operadoras privadas – que, por sua vez, conseguiriam a flexibilização de certas exigências para vender planos cada vez mais baratos, com coberturas reduzidas. Mais uma vez, o SUS é visto como um “corpo” a ser explorado ou habitado. 

Na análise da proposta item a item, os pesquisadores explicam por que cada peça do texto é problemática. Pinçamos três exemplos. Um dos objetivos da tal política seria “garantir o atendimento à saúde em prazos razoáveis, condizentes às necessidades do paciente e aos contratos”. Parece bom, mas está longe das práticas das empresas.

“É mais do que sabido que os prazos hoje dependem do tipo de plano e da especialidade procurada. Nos planos ‘VIP’ os prazos são curtos, nos planos básicos há longa espera, que muitas vezes deságua no atendimento pelo SUS. Os contratos não mencionam prazos, pois adiar agendamentos é um mecanismo estruturante de um mercado que sempre impôs barreiras de acesso”, dizem os analistas.

E alertam ainda que o item da proposta visa remover o artigo 3º da resolução normativa 259, aprovada em 2011 pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que definiu prazos máximos para o atendimento – “hoje uma ‘pedra no sapato’ para a comercialização de planos com cobertura restrita, que é o objetivo da política em consulta”. 

A proposta também fala em “promoção de ambiente regulatório que fomente o aumento do acesso ao setor de saúde suplementar”, em uma clara reedição da campanha dos “planos populares” encabeçada pelo ex-ministro Ricardo Barros. 

Por fim, e não por acaso, o Ministério da Saúde resolveu subverter de uma vez os papéis das autoridades sanitárias. A pasta planeja que após a aprovação da política, os detalhes de como ela vai funcionar sejam elaborados pela ANS e apresentados pela agência reguladora ao Consu, o Conselho de Saúde Suplementar, do qual tivemos um belo exemplo de funcionamento na semana passada com as inconfidências de Paulo Guedes (Economia) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil).  

“A ANS é a instância executiva encarregada da regulação dos planos de saúde e o Consu, integrado por membros de ministérios e indicados do governo federal, é um órgão de natureza política. Não é atribuição do Consu encomendar para a ANS um plano para a expansão do setor privado. A existência da ANS só se justifica como agência reguladora e não enquanto órgão público pró-mercado”, apontam os pesquisadores. 

“As vias tortas têm sido as preferenciais para um grupo de empresários da saúde parasitas de recursos públicos, extremistas na defesa de seus interesses privados. Essa consulta pública é mais uma peça do acervo recente das tentativas de mudar as regras do jogo”, concluem.

A consulta pública fica aberta até o dia 18 de maio. Depois, mesmo que a participação seja contrária, é possível que o ministério dê prosseguimento ao plano mesmo assim. Mas terá, no mínimo, que submeter a política à deliberação da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) que reúne governo federal, estados e municípios. Esperamos que Conass e Conasems barrem mais esse ataque ao SUS que chega de supetão, de carona na crise sanitária.   

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