A dupla face de Mandetta na ONU

Ministro da Saúde elogia o SUS e pede vacinas para todos — dias depois de cortar recursos para imunização… Ele ainda incluiu Brasil em articulação ultraconservadora. Leia também: a parceria entre Armínio Fraga e a Folha para falar de saúde

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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NA ASSEMBLEIA, O COMPROMISSO

Ontem, os países da ONU aprovaram uma declaração política comprometendo-se a oferecer cobertura universal de saúde aos seus cidadãos até 2030. O foco, como havíamos adiantado, é fazer com que as pessoas não precisem empobrecer para acessar os serviços, e o documento gira em torno de priorizar a atenção primária. 

Nosso ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, esteve lá elogiando o SUS (“uma política social muito bem-sucedida que nós compartilhamos com vocês”) e propondo que se priorizem as ações de vacinação. “No Brasil intensificamos a vacinação e a vigilância em saúde nas fronteiras brasileiras, o que se estende por mais de 15 mil quilômetros. Mas, sozinhos não teremos êxito. Então talvez as ações de vacinação possam ser as primeiras atitudes referentes à cobertura universal de todos os países”, disse. Lendo assim, nem parece que o governo acaba de propor um corte nos recursos para imunizações no ano que vem. 

Para quem tem SUS, pensar em termos de cobertura universal de saúde é retrocesso: uma cesta de serviços cobertos pelos governos, não necessariamente prestados pelo setor público e não necessariamente gratuitos para todo mundo, é muito menos do que o sistema brasileiro sempre se propôs a fazer. Mas, pensando como a metade da população mundial que não tem serviços acessíveis, a coisa muda um pouco de figura. 

A matéria da Quartz lembra que a maior parte dessas pessoas está em países de média ou baixa renda… Ou nos EUA, único país rico que não oferece assistência universal. Embora o tema esteja fervendo nos debates eleitorais há um bom tempo, a declaração não se alinha de forma alguma com os planos do atual governo “É difícil não ver isso como um indicador de quão pouco o governo dos EUA se importa com os compromissos que faz com a comunidade internacional. Desde a criação da ONU, os EUA têm sido o principal ofensor quando se trata de não cumprir compromissos”, nota o texto.

Umas palavrinhas sobre filantrocapitalismo: Melinda Gates fez figura durante o encontro, dizendo que “é hora de começar o trabalho duro de transformar esses compromissos em resultados” e que “todos temos um papel a desempenhar”. Também na reunião, o professor Jeffrey Sachs, da Universidade da Columbia, disse que os bilionários precisam pagar mais para garantir que outras pessoas sobrevivam. Ele nomeou 15 dos mais ricos do mundo, incluindo Bill Gates, dizendo que eles poderiam facilmente acabar com a malária se quisessem. Mas, no Global Policy Watch, preocupações com a filantropia na saúde estão, entre outras coisas, nos problemas quanto a suas prioridades: “Embora grandes doadores venham cobrindo a lacuna no financiamento da OMS, eles também estão moldando os programas de saúde de acordo com as normas comerciais e marginalizando os programas de saúde pública”. Para quem quiser saber mais sobre a influência de Gates e outros super-ricos na saúde global, explicamos nesta reportagem.

DA VANGUARDA AO ATRASO

Acompanhado por representantes do, Iraque, Guatemala, Polônia e Hungria, o ministro Mandetta participou de um momento perigoso e constrangedor. Liderado pelo secretário de saúde dos EUA, Alex Azar, o grupo pressionou as Nações Unidas a não usar nos documentos políticos termos e expressões caracterizados como “ambíguos”, caso, vejam só, dos “direitos sexuais e reprodutivos”. “Não apoiamos referências a termos e expressões podem minar o papel crítico da família e promover práticas como o aborto em circunstâncias que não gozam de consenso internacional, o que pode ser mal interpretado pelas agências da ONU “, disse Azar em seu discurso, com Mandetta e os demais atrás. Ele prosseguiu: “Não há direito internacional ao aborto e esses termos não devem ser usados ​​para promover políticas e medidas pró-aborto (…). Além disso, apoiamos apenas a educação sexual que aprecia o papel protetor da família nessa educação e não tolera riscos sexuais prejudiciais para os jovens.”

Segundo Azar, eles estavam falando não apenas em nome de seus países mas de outros, como República Democrática do Congo, Egito, Haiti, Hungria, Líbia, Nigéria, Polônia, Rússia, Arábia Saudita, Sudão, Emirados Árabes e Iêmen. Aqui, a transcrição da fala inteira. 

Em julho, o governo Trump enviou uma carta ao Brasil e a outros países pedindo que estabelecessem uma ‘aliança’ para vetar resoluções positivas da Assembleia em relação a direitos sexuais e educação sexual. A informação é do jornalista Jamil Chade, no UOL, e foi confirmada pelo Itamaraty. 

EM SEGREDO?

Neste fim de semana a OMS emitiu um alerta dando uma chamada no governo da Tanzânia. Motivo: por vias não oficiais, a Organização soube de três casos de ebola por lá, perguntou sobre isso ao governo e demorou quatro dias para receber a resposta de que não havia caso algum. O país se negou a compartilhar mais detalhes. O ebola é uma “doença notificável”, o que significa que os governos devem relatar casos à OMS 24 horas após sua identificação e dar os detalhes das investigações. 

Há uma preocupação especial motivando a bronca, como mostra a Vox. Uma das principais razões pelas quais a epidemia de ebola que aconteceu entre 2014 e 2016 se tornou a maior da história é que, naquele período, o vírus apareceu em países onde nunca havia estado. Todo mundo foi pego de surpresa, as autoridades de saúde não estavam treinadas para lidar com isso. A Tanzânia nunca enfrentou o ebola – e é onde estão várias das maiores cidades da África. Se estiver ocultando casos, pode ser o início de outro surto violento.

COMITÊ INDEPENDENTE

Falando em ebola, a ONG Médicos Sem Fronteiras acusou ontem a Organização Mundial da Saúde de racionar vacinas durante a epidemia que se desenrola há mais de um ano na República Democrática do Congo. Em nota, a organização criticou a “opacidade” da OMS e propôs a criação de um comitê independente com várias entidades internacionais, com o objetivo de garantir transparência sobre a gestão dos estoques e distribuição dos imunizantes.

DEPOIS DA EDUCAÇÃO, A SAÚDE

Em 2018, enquanto um ex-presidente do Banco Central tentava ser eleito ao mais alto cargo da República (quem esquece do bordão ‘chama o Meirelles’?), outro ex-presidente do BC anunciou seu debut no universo da saúde pública. Ontem, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), fundado por Armínio Fraga, mostrou seu poder de fogo ao fazer uma parceria – que com certeza não saiu de graça – com a Folha de S. Paulo para a criação de um blog, o Saúde em Público, que fica hospedado junto das colunas de opinião do jornal.   

E a estreia teve direito a dobradinha, pois ao mesmo tempo em que subia a primeira postagem do blog – uma espécie de manifesto do que pretende ser o espaço – o jornal dedicou sua “entrevista da 2ª” a saber o que Arminio Fraga pensa. E para o fundador do IEPS (e também do fundo de investimentos Gávea, que até outro dia tinha participação majoritária, por exemplo, no grupo hospitalar São Francisco, comprado pela Qualicorp) se a educação despertou interesse do “terceiro setor” – Fundação Lemann, Itaú Social, etc. –, a saúde não. Mas… “Saúde é um assunto que tem muito potencial”, disse. E completou: “Na saúde, há uma base gigante de dados do SUS, que precisa ser complementada com a do setor privado. Não acredito que há solução só com o Estado, tampouco só com o setor privado, principalmente na saúde.” Detalhe: Fraga, Jorge Paulo Lemann e Maurício Ceshin (ex-Qualicorp) são sócios investidores de uma empresa de tecnologia em saúde que usa informações para oferecer telemedicina.

Mas, com certeza, a parte mais interessante da entrevista tem a ver com a interpretação que Fraga faz do princípio da universalidade que rege o sistema público de saúde brasileiro. Ele reconhece que “houve uma decisão da sociedade de cuidar dos seus mais pobres, dos que têm mais dificuldade em se defender” e que, para isso, “financiamento é essencial”. Sobre filas e perda de qualidade, porém, ele primeiro afirma que “nos países mais avançados, há algum tipo de racionamento; certos tipos de doença não recebem tratamentos caríssimos e até experimentais”. Por aqui, a judicialização e o “desenho dos planos de saúde” são apontados como problemas para financiar a universalidade. 

Na sequência, perguntado sobre o assunto, ele defende uma ideia que circulava no Ministério da Economia há pouco tempo: o fim da dedução das despesas de saúde no Imposto de Renda das pessoas físicas. “O que chamamos de classe média, na verdade os 10% mais ricos, ou até 5% mais ricos, tem sofrido uma pressão sobre seu padrão de vida no mundo todo, e se ressente de qualquer discussão que possa atingi-la. Mas há pressão também dos que entram na fila do serviço público, não são atendidos, morrem no corredor. (…) se a dedutibilidade não existisse, possivelmente essas pessoas estariam muito mais interessadas no SUS e a discussão política tivesse avançado mais.” 

O IEPS, que tem um conselho consultivo bem eclético, com nomes que vão de Ligia Bahia, professora da UFRJ, ao ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, deve divulgar sua primeira pesquisa ainda este ano, sob coordenação de Rudi Rocha, professor da FGV São Paulo. 

VITÓRIA, POR ENQUANTO

Ontem, uma audiência pública conseguiu mudar a redação de um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa de Pernambuco. E, quem diria, ele trata da regulamentação das comunidades terapêuticas. Após embates travados em um auditório lotado de usuários e trabalhadores, parlamentares firmaram um acordo que retirou do texto a inclusão das CTs na Rede de Atenção Psicossocial do SUS. Detalhe: o PL tem um padrinho importante. Foi desarquivado pelo deputado estadual Pastor Cleiton Collins (PP), fundador de uma comunidade terapêutica bastante conhecida no estado, chamada Saravida. 

TUDO IGUAL (E RUIM)

Se desde o massacre de Carandiru o domínio das facções sobre o sistema prisional só cresceu, mudando a dinâmica nas prisões e fora delas, em termos de política de saúde, a população carcerária continua na mesma, desassistida. Essa é a análise de Drauzio Varella nesta entrevista ao jornal O Globo:

“Do ponto de vista da saúde, não houve muita diferença porque sempre foi muito difícil. O estado nunca conseguiu organizar o sistema de saúde. Primeiro, porque não é fácil, especialmente nessas cadeias superlotadas. Se já não é fácil organizar a saúde fora, de quem está em liberdade, imagina nessas condições, quando há celas que têm 20, 30 pessoas com problemas sérios de disseminação de doenças infecciosas. E não tem médicos, simplesmente porque eles não gostam de trabalhar em cadeia. Não querem ter esse tipo de trabalho. Nós temos vários CDPs (Centro de Detenção Provisória) aqui em São Paulo e não tem médico nenhum. É zero. Imagina pelo Brasil afora? Quando temos um caso agudo, de alguém passando muito mal ou correndo risco de morte, precisamos levar para um pronto-atendimento fora da cadeia. Como leva? Precisa de procedimento de escolta, pois por lei não pode levar um preso para fora da cadeia sem escolta. A gente leva muitas horas até conseguir uma escolta. É sempre precária. Sempre tivemos dificuldade em organizar o sistema de saúde dentro das cadeias. Primeiro pela falta de médicos, porque abre-se concurso e ninguém comparece. Segundo pela dificuldade mesmo de transporte dos doentes para hospitais especializados.”

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