Como o lucro afeta a corrida contra o câncer

Na Europa, eficácia de metade dos remédios contra a doença pode ter sido exagerada. Interesses comerciais e lobbies das empresas farmacêuticas colocam vidas em risco. Leia também: a delicada relação entre filantropia e pesquisas

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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ENVIESADOS

Um estudo publicado ontem no British Medical Journal traz novas preocupações sobre o baixo padrão de evidências por trás da aprovação e registro de medicamentos. Ao examinar os testes clínicos que embasaram esse processo para remédios contra o câncer na Europa entre 2014 e 2016, pesquisadores  concluíram que metade deles tinha alto risco de viés devido a falhas metodológicas – o que indica que seus efeitos podem ter sido exagerados.

No período, a Agência Europeia de Medicamentos aprovou 32 tratamentos com base em 54 estudos. Destes, só 41 eram ensaios randomizados controlados (a melhor forma para avaliar resultados), mas foram encontrados problemas em 49% deles. No fim das contas, para 31% dos tratamentos aprovados, os ensaios apresentavam falhas como interrupção precoce e benefícios clínicos questionáveis. E essas preocupações raramente apareceram nos relatórios.

Em um editorial vinculado, pesquisadores australianos chamam a atenção para algo importante em países com sistemas públicos de saúde. Nesses casos, o acesso a medicamentos é feito a partir da avaliação e recomendações de determinados órgãos (como a nossa Conitec), e eles estão sempre “sob pressão para financiar rapidamente novos medicamentos contra câncer” – remédios, em geral, caríssimos. “A incerteza e o exagero das evidências que apóiam a aprovação de medicamentos contra o câncer causam dano direto se os pacientes arriscarem efeitos adversos graves ou fatais sem benefício provável, ou renunciarem a tratamentos mais eficazes e seguros. Evidências imprecisas também levam a danos intangíveis, encorajam falsas esperanças e causam uma distração dos cuidados paliativos necessários”, escrevem.

CIÊNCIA SUGAR DADDY

Falta de financiamento público para pesquisas é um problema maior em alguns países do que em outros, mas relativamente bem espalhado. O que acontece por conta disso é a dependência de apoiadores privados – o que, aliás, temos visto ser apresentado por aqui como bela solução pelo governo federal. Em artigo para The Atlantic, a cientista agrícola Sarah Taber fala sobre o quanto isso é perigoso com um exemplo de sua área. Recentemente, o MIT Media Lab anunciou o desenvolvimento de um computador que cultivaria alimentos fora da terra, a partir de quantidades específicas de água, nutrientes e luz em uma caixa de plástico. Nada funcionou como o prometido, mas a equipe tentou enganar os financiadores para mostrar sucesso. Um “ex-pesquisador” chegou a descrever que foram compradas plantas de uma loja de jardinagem, a sujeira das raízes foi retirada para parecer que elas haviam crescido sem terra e então elas foram colocadas na máquina para uma sessão de fotos – que foram enviadas à imprensa e colocadas no site do projeto. 

A questão de fundo aí é o que a autora chamou de ciência ‘sugar daddy‘, inspirada pela gíria que descreve homens mais velhos que gastam dinheiro para sair com jovens acompanhantes. “A filantropia privada – especialmente o tipo que passa grandes cheques em branco – é atraente. O problema é que cheques em branco nunca vêm sem amaras. Algo sempre é trocado: acesso, status, imagem”. E então “os laboratórios de pesquisa cultivam plutocratas e doadores corporativos que desejam se associar com ostentosos projetos. A ciência deixa de ser uma ferramenta para alcançar as coisas de que as pessoas precisam – água limpa, abrigo, comida, transporte, comunicação – e se torna um acessório de moda. Se os laboratórios são elegantes, se as demonstrações parecem legais, e se ambas refletem a imagem que o doador deseja passar, a missão está cumprida.”

OS CORTES POR AQUI

O secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Pacheco dos Guaranys, falou ontem na Câmara sobre o descontingenciamento na área de pesquisa. A homologação de um acordo no STF para usar R$ 250 milhões do fundo da Petrobras no Ministério da Ciência vai, de acordo com ele, dar “fôlego” para a gestão dos recursos, embora não vá contemplar diretamente as bolsas do CNPq. “Estamos tendo notícias boas de que isso [a liberação de recursos para o pagamento de bolsistas] está próximo de acontecer. Como vai acontecer são aspectos técnicos que vamos ter que terminar de elaborar”, disse. 

E o Fórum de Coordenadores de Pós-Graduação em Saúde Coletiva publicou nota sobre o recuo parcial do MEC, que decidiu retomar cerca de três mil bolsas dos cursos de melhor avaliação pela Capes. “Esse corte direcionado aos programas com menores notas (3 e 4), que não terão suas bolsas restituídas, irá provocar uma maior desigualdade no Sistema Nacional de Pós-Graduação – SNPG, pois afeta os cursos menores e localizados, majoritariamente, nas regiões Norte e Nordeste do país. Essa decisão contraria, portanto, o próprio Plano Nacional de Pós-Graduação brasileiro, que visa ao fortalecimento das instituições mais distantes do centro-sul, contribuindo para a fixação de doutores e para o desenvolvimento das regiões mais carentes”, diz o texto.

TELHADO DE VIDRO

Ebola, gripe, SARS… Essas são algumas das doenças que correm um risco alto (ou mesmo inevitável) de se tornar pandêmicas, segundo o primeiro relatório do Conselho de Monitoramento para a Preparação Global. O grupo, que reúne especialistas e é resultado de uma parceria entre a OMS e o Banco Mundial, afirma que esses riscos tornam-se maiores na medida em que os conflitos armados duram mais tempo, a imigração forçada dispara e os Estados ficam mais frágeis. O relatório caracteriza os atuais esforços de governos e agências internacionais na tentativa de monitorar e se preparar para surtos como “grosseiramente insuficientes”. O problema – era de se imaginar – será maior nos países pobres, onde uma pressão muito grande por tratamentos pode colapsar os já frágeis sistemas nacionais de saúde. Durante o lançamento do relatório, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, instou governos a “consertar o telhado antes de a chuva chegar”. Com as políticas de austeridade fiscal em ascensão, a pergunta é como.

RENDA ZERO

Foi divulgado ontem um novo levantamento sobre o mercado de trabalho brasileiro e as notícias não são boas. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos cinco anos aumentou muito a proporção de domicílios sem renda proveniente do trabalho. Eram 19% em 2014, passaram para 22,4% este ano. Quase dois anos depois da reforma trabalhista entrar em vigor no país, o cenário é duvidoso. O Brasil bateu o recorde de trabalhadores informais: são mais de 38 milhões de pessoas nessa situação, o equivalente a 40% de toda a população ocupada. 

A PORTA GIROU

Quando secretário de saúde no estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri aprovou a concessão de uma parceria público-privada para a Fundação para o Remédio Popular (a Furp). Pois hoje ele é sócio do Grupo NC, que controla indiretamente o consórcio ganhador da licitação. “Isso não tem nada a ver com a época em que estive na secretaria, foi um fato recente, e é um grupo que faz investimentos no setor privado. É uma parceria que foi feita muito tempo depois que eu já tinha sido secretário”, argumenta. A PPP gerou um prejuízo de milhões de reais para o governo e, hoje, é alvo de investigação do Ministério Público e da Assembleia Legislativa de SP, como temos acompanhado aqui na news

ACUSADOS NO MARANHÃO

Ontem, o núcleo político da família Sarney sofreu um revés. Ricardo Murad, cunhado de Roseana Sarney e ex-secretário de saúde do Maranhão durante seu governo, foi acusado pelo Ministério Público Federal de liderar um esquema criminoso de desvio de verbas federais destinadas ao estado. O prejuízo ao Fundo Nacional de Saúde teria sido de R$ 2,9 milhões entre 2011 e 2013, segundo os procuradores à frente do caso. O dinheiro era administrado por uma Oscip chamada Bem Viver, que teria emitido cheques para empresas de fachada que, na verdade, beneficiariam oito pessoas, incluindo o deputado estadual Antonio Pereira Filho (DEM) e empresários. 

DIFERENTES

O maior estudo já realizado até o momento sobre bactérias intestinais em recém-nascidos descobriu que elas são bem diferentes segundo a via de nascimento – e que isso pode afetar o sistema imunológico. Os pesquisadores (do Instituto Wellcome Sanger, da University College London e da Universidade de Birmingham) viram que os bebês nascidos por parto normal têm mais bactérias associadas à boa saúde do que os nascidos por cesarianas: enquanto os primeiros recebem a maior parte de suas bactérias das mães, os últimos  recebem micróbios do ambiente hospitalar, potencialmente prejudiciais. As diferenças, porém, desaparecem após um ano. 

EXPLOSÃO

Foi divulgado ontem novo balanço do sarampo no estado de SP. Agora, são 4.299 casos confirmados da doença. Houve um crescimento de 19,7% em relação à semana passada, quando foram contabilizados 3.591 casos. Pouco mais da metade (55%) está concentrada na capital, que chegou a 2.397 registros.

MAL NA FITA

Um levantamento feito pela Folha comparou 325 agrotóxicos registrados no Brasil ao longo de 2019 com produtos analisados em várias partes do mundo. E a conclusão é mesmo que estamos consumindo por aqui veneno proibido no resto do planeta. Na União Europeia, 28 dos 96 ingredientes ativos liberados em terras tupiniquins são proibidos. A situação se repete na comparação com Austrália (36), Índia (30) e Canadá (18). Os EUA são o país que chega mais perto na nossa situação: eles aprovaram 93 desses 96 ingredientes que receberam sinal verde aqui.  

REFLEXOS

Depois da crise com cigarros eletrônicos nos EUA, agora é o Canadá que investiga seu primeiro caso de doença pulmonar possivelmente relacionada ao produto. A vítima era jovem, usava o vaporizador diariamente, não tinha outras questões de saúde,  teve problemas respiratórios severos e chegou a ser internada no início do ano, mas já passa bem. 

E a Índiaproibiu a venda, produção, importação e propaganda desses cigarros.

SHOW DO MILHÃO

Dizem nos bastidores de Brasília que o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) teve que exercer a medicina ontem, em pleno Congresso. Mas por um bom motivo: é que três dos 49 assessores da liderança do Partido dos Trabalhadores na Câmara tiveram picos de pressão após receber a notícia do sorteio da Mega-Sena. O bolão feito pelo grupo, que aposta há anos, levou sozinho o prêmio de R$ 120 milhões. 

AGENDA

Daqui a pouquinho, às 11h, o Canal Saúde exibe um programa especial sobre os 31 anos do SUS, com debate, entrevistas e muita análise. 

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