Turismo vacinal: os ricos dão um jeitinho

Mesmo antes de começar a vacinação, empresas de viagens já anunciavam pacotes para imunizar clientes VIP — que pagam quase R$ 19 mil por pessoa. Fura-filas são eleitores de Bolsonaro envergonhados… mas não chegam a se arrepender

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QUEM PODE, PODE

“Coloca um nickname aí pra mim porque não quero confusão para o meu lado, já tenho cinco stents no coração”, pediu um milionário à jornalista Mariana Sanches, da BBC. Na matéria, o empresário (que acabou sendo chamado de Roberto) conta como gastou quase meio milhão de reais para levar a família para se vacinar nos Estados Unidos em abril. “Seria o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac”, compara a reportagem.

O turismo da vacina começou a mostrar seus contornos mesmo antes de haver imunizantes aprovados pelas maiores agências reguladoras do mundo. Ainda em novembro, uma empresa de viagens indiana começou a cadastrar “clientes VIP” interessados em viajar a Nova Iorque tão logo a vacina da Pfizer tivesse seu uso autorizado nos EUA. Em fevereiro, o governo cubano anunciou seus planos de oferecer os imunizantes desenvolvidos lá a turistas – ainda não há nenhum aprovado, mas a Soberana 2 está avançada nos estudos clínicos.

Mais recentemente, o prefeito de Nova Iorque abriu as portas de vez para viajantes. “Queremos que todos estejam seguros e obviamente meu coração está com o povo do Brasil”, acenou ele, que decidiu colocar postos de vacinação na Times Square e outros pontos turísticos

BBC entrevistou Márcia Rosa, agente de viagens que anunciou recentemente pacotes para a cidade (incluindo uma quarentena obrigatória no México) por R$ 18,7 mil por pessoa. Em uma semana, diz, recebeu centenas de consultas e fechou 13 pacotes. Há inclusive pais de adolescentes interessados, já que os EUA liberaram vacina para maiores de 12 anos. O “serviço” está sendo oferecido por várias agências

Não surpreende que os viajantes que falaram à reportagem tenham votado em Jair Bolsonaro em 2018. Por conta da dificuldade em se vacinar no Brasil, parte deles se decepcionou com o governante que escolheu. Mas não necessariamente mudou de posição: “Esse outro (Lula) eu abomino. É tudo o que eu e minha família não queremos”, diz Roberto, o da viagem que custou 45 mil CoronaVacs. 

O CONTEXTO E AS DOAÇÕES

Como já dissemos por aqui, hoje sobram doses de vacina nos Estados Unidos, embora ainda seja preciso vacinar uma boa parcela da população. O governo Joe Biden tem lançado estratégias nacionais para lidar com a falta de interessados, como a disponibilização dos imunizantes em um rol mais amplo de estabelecimentos. Localmente, governadores e prefeitos oferecem cerveja, hambúrguer e até sorteiam dinheiro para quem se imunizar. 

Vacinar turistas, mesmo que de graça, não prejudica em nada o país. Pelo contrário: dá um gás na economia a partir das despesas dos viajantes endinheirados, ao mesmo tempo em que continua havendo doses garantidas para os residentes.

Mas foram precisos meses de seguidos apelos internacionais para os Estados Unidos decidirem doar parte de da sobra de seus imunizantes da Pfizer, da Moderna e da Janssen. Finalmente isso foi prometido ontem, e serão 20 milhões de doses até junho. Além destas, há as 60 milhões da vacina de Oxford/AstraZeneca que já haviam sido aventadas – e que realmente não fazem diferença nenhuma no país neste momento, já que a FDA (equivalente à Anvisa) ainda não aprovou seu uso. No Twitter, o presidente Biden anunciou ontem a soma das 80 milhões de doses dizendo que “os Estados Unidos nunca estarão completamente seguros enquanto esta pandemia se alastrar globalmente”. Ainda não se disse quais países vão receber as doações. 

Detalhe: um estudo da Duke University estima que os Estados Unidos terão 300 milhões de doses excedentes em julho.

Como discutimos aqui, a recente mudança de posição do país em relação à suspensão temporária de patentes foi histórica, mas não tem impacto imediato no aumento da produção mundial de imunizantes. 

Enquanto isso, a meta de entregas da Covax Facility está atrasada: segundo o jornalista do UOL Jamil Chade, foram repassadas 65 milhões de doses a 130 países, mas a meta para esta semana era de que a distribuição já tivesse atingido o dobro, ou 170 milhões. Com a crise na Índia (maior fornecedor do consórcio), a situação só tende a piorar – embora a aprovação da vacina da Sinopharm pela OMS possa trazer algum alívio.

NOVA PROJEÇÃO

O Brasil registrou ontem 1.039 novas mortes por covid-19 e a média móvel ficou em 1.918. Com isso, o país completa uma semana com esse número abaixo de dois mil. Porém, a média móvel voltou a aumentar após 15 dias diminuindo. Já a comparação com 14 dias atrás mostra uma redução de 19%, o que ainda configura tendência de queda. 

Especialistas continuam alertando para o risco de terceira onda, principalmente porque a vacinação avança a passos tão lentos. O Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington estima que, se o ritmo da imunização não aumentar, o Brasil ainda pode chegar a 751 mil mortes até o fim de agosto – isso se 95% da população usar máscaras.

E o nível de isolamento dos brasileiros chegou ao ponto mais baixo desde o começo da pandemia, segundo o Datafolha, e caiu um bocado nos últimos dois meses. Em março deste ano, 8% dos adultos disseram não sair de casa em hipótese alguma, e agora são 2%. Os que só saíam quando inevitável caíram de 41% para 28%. 

Pois é… Ontem, Jair Bolsonaro chamou de “idiotas” as pessoas que ainda estão em casa para conter a transmissão do vírus. 

SOBRE A “INTEGRAÇÃO”

Termina hoje a consulta pública sobre a Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19. Como dissemos aqui, trata-se de uma proposta de “integração” entre o SUS e os planos de saúde que, apesar do nome, deve estender seus efeitos para muito depois da pandemia. Um dos principais pontos é a reedição da campanha pelos planos populares, defendida pelo ex-ministro da Saúde (e atual líder do governo na Câmara) Ricardo Barros. 

O Conselho Nacional de Saúde divulgou ontem uma nota pública pontuando suas críticas e lembrando que, durante a crise da covid-19, a melhor resposta não tem vindo do setor suplementar, mas do SUS. E isso desde o diagnóstico até a assistência: mesmo atendendo a um quarto da população, os planos só foram responsáveis por 7% dos testes; em relação ao atendimento hospitalar, o setor se opôs fortemente à proposta de estabelecer uma fila única de leitos, mesmo que estivessem morrendo pessoas na fila por vagas. Fora isso, houve reajuste retroativo este ano (com novos valores altíssimos), apesar de as operadoras terem tido menos gastos em 2020.

“A PNSS/Covid-19, nesse contexto, se utiliza da pandemia como justificativa para emplacar uma agenda de fortalecimento do mercado de saúde suplementar em detrimento do SUS. Além de um prazo irreal para uma discussão dessa envergadura, de apenas dez dias, estamos falando de uma proposta extremamente genérica e inócua, não só por chegar com mais de um ano de atraso e ignorar as principais demandas dos usuários de planos de saúde, sobretudo em relação a reajustes e atendimento, mas também por dar um cheque em branco para empresas que trabalham pelos próprios interesses desde o início da pandemia”, diz o Conselho.

EXPECTATIVAS

Na CPI da covid-19, daqui a pouco é a vez de o ex-chanceler Ernesto Araújo depor. Ele deve responder pelas consequências de sua atuação contra o governo chinês, além da mobilização do Ministério das Relações Exteriores em favor da cloroquina. 

Araújo passou por intenso treinamento e tem apoiado o governo, mas, segundo o Valor, o Planalto teme com uma “possível mágoa” de Araújo por conta de sua saída turbulenta da pasta. Os senadores do G7 pretendem usar o depoimento para mapear a atuação de Flavio Bolsonaro (PSL-SP) e do assessor internacional da Presidência Filipe Martins. Querem saber como esses dois atuaram na elaboração de uma política extrena ideológica que atrapalhou (e ainda atrapalha) as negociações com a China. 

O maior percalço ao governo federal, porém, deve ser o ex-ministro da Saúde Pazuello, que vai falar (e se calar) amanhã. Não se sabe como ele vai reagir às provocações de senadores experientes, como o relator Renan Calheiros (MDB-AL).

GELADEIRA COMUM

A agência reguladora da União Europeia, a EMA, alterou a recomendação sobre o tempo que a vacina da Pfizer/BioNTech pode ser armazenada em geladeira normal (com temperatura de 2°C a 8°C): antes eram cinco dias, agora serão até 31. A mudança vem depois de estudos atestarem a estabilidade do produto após retirado do ultracongelador. Como se sabe, a necessidade de manter o imunizante a -70°C foi desde sempre uma desvantagem e um empecilho à distribuição a determinadas regiões. 

No Brasil, essa é a razão pela qual as primeiras doses entregues foram enviadas apenas às capitais, que têm melhores condições de armazenamento em baixíssimas temperaturas. Agora, é possível que a Anvisa também venha a mudar as regras para cá. Segundo a Folha, a Pfizer vai protocolar em breve um pedido nesse sentido. 

CHEGADA DE INSUMOS

O Instituto Butantan e a Fiocruz devem receber nos próximos dias novas remessas de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a produção de vacinas. Ambos haviam anunciado que interromperiam o envase dos imunizantes pela falta de insumos. A Ficoruz vai receber no sábado IFA suficiente para produzir 18 milhões de doses; já o Butantan recebe, na quarta que vem, uma quantidade que vai render sete milhões de doses. 

E AGORA, UM CICLONE

O ciclone Tauktae, o mais poderoso em duas décadas, atingiu ontem a costa oeste da Índia, com ventos de até 210km/h. Mais de 200 mil pessoas precisaram sair de suas casas. As campanhas de vacinação tiveram que ser interrompidas ontem, e o transporte de oxigênio medicinal para os hospitais durante a tempestade tem sido uma grande preocupação. O problema ainda não acabou: o ciclone deve perder força ao longo do dia de hoje.

Isso tudo ocorre junto com a crise da covid-19. Que, no entanto, parece estar dando sinais de melhora por lá, ao menos em algumas regiões: o número de novos casos caiu 70% em Mumbai, por exemplo. Claro que é muito cedo para tirar conclusões. Os hospitais ainda estão cheios, e a redução pode ser reflexo do esgotamento da capacidade de testagem, como observa a matéria da AP. Além disso, teme-se que os casos estejam aumentando nas zonas rurais, cujos dados são mais atrasados. A ver. 

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