Covid: as regras frouxas que expõem Brasil às novas cepas

Primeiro caso suspeito da variante B.1.617 surge no país. Mas proibir voos da Índia é medida inócua sem testagem obrigatória em aeroportos e monitoramento do vírus. No Reino Unido, variante se alastra, e ameaça processo de reabertura

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PRIMEIRA SUSPEITA

Um navio foi posto em quarentena no Maranhão este sábado depois que um indiano de 54 anos, tripulante da embarcação, foi diagnosticado com covid-19. Ele começou a ter sintomas no dia 4 de maio e foi internado no dia 13. Ainda não se sabe se o caso está relacionado à variante B.1.617, identificada originalmente na Índia – a amostra coletada do paciente foi enviada para sequenciamento do genoma, mas não saiu o resultado. A Secretaria de Saúde do estado foi notificada pela Anvisa para isolar e testar o restante da tripulação. 

Na sexta-feira, dez dias após uma recomendação da agência reguladora, o governo brasileiro decidiu suspender a entrada de estrangeiros vindos da Índia, por avião. Antes, a norma só valia para o Reino Unido e à África do Sul. 

Resta saber o quanto barrar a entrada desses viajantes especificamente vai ser eficaz para evitar a nova cepa – isso se ela já não estiver circulando no Brasil. Segundo a OMS, a variante já foi detectada em pelo menos 44 países; entre eles estão EUA, Canadá, México, China, Austrália e quase toda a Europa. 

Na semana passada, houve a primeira notícia de sua chegada à América do Sul: a Argentina confirmou dois casos em crianças que entraram no país no dia 24 de abril. E as crianças argentinas não vieram da Índia, mas de Paris. Foram encaminhadas, com seus pais, para isolamento. O processo adotado na Argentina para monitorar as novas variantes e evitar seu espalhamento parece adequado: “Dentro do protocolo de procedimentos para entrada [no aeroporto de] Ezeiza do exterior, todas as pessoas são testadas para antígenos; os positivos são encaminhados a um hotel na cidade de Buenos Aires para fazer o isolamento, e também as amostras são enviadas para serem sequenciadas”, explica Analía Rearte, do Ministério da Saúde, ao La Nación

Já no Brasil, a regra é muito mais frouxa. Quem entra aqui precisa apenas apresentar um teste PCR, com resultado negativo, feito até três dias antes do embarque. Não há sequer a testagem obrigatória de quem chega no país – menos ainda o sequenciamento genômico dessas amostras e o isolamento dos casos positivos. Isso em se tratando do transporta aéreo. Para embarcações e plataformas, o protocolo da Anvisa incluem quarentena antes do embarque e, no caso de tripulante sintomático e seus contatos, após o desembarque também. Provavelmente, a amostra do paciente indiano só será sequenciada por conta de sua nacionalidade – o que é altamente questionável.

Em tempo: a mesma nota técnica da Anvisa que recomendou a restrição aos voos vindos da Índia pedia também a “implementação de quarentena para todos os viajantes estrangeiros ou brasileiros que ingressarem no Brasil, independentemente do país de procedência”, como mostra o G1. O governo federal optou por não acatar essa parte da nota, que poderia trazer resultados muito melhores do que o veto a determinados países de origem. 

EM ALERTA

No Reino Unido, a variante B.1.617 pode ameaçar o processo de reabertura, que até aqui tem sido exitoso. Ocorre que o número de casos dessa nova cepa identificados por lá dobrou em uma semana, passando de 520 para 1.313. O secretário de Saúde Matt Hancock disse ontem ser “bastante provável” que ela se torne a variante dominante no país, e que pode “se espalhar como um incêndio entre os grupos não vacinados”.

Há duas preocupações básicas, tanto no Reino Unido como no resto do mundo: saber o quanto essa cepa é mais transmissível e se as vacinas protegem contra ela. Na semana passada, quando a OMS a reconheceu como uma variante de preocupação, o organismo apontou que algumas evidências indicam a transmissibilidade acentuada. Mas ainda não se conseguiu mensurar isso. O Grupo de Aconselhamento Científico em Emergências do país (Sage) acredita que ela seja 50% mais transmissível do que a B.1.1.7 (a cepa identificada primeiro no Reino Unido e que acabou dominando o território em pouco tempo). 

Quanto à vacinação: até agora, dados da Universidade de Oxford apontam que os imunizantes de Oxford/AstraZeneca, Pfizer/BioNTech e Moderna funcionam bem. As autoridades confiam nisso para evitar novos bloqueios, e o plano agora é acelerar o plano de imunização. Como se sabe, o país havia decidido estender o intervalo entre a primeira e a segunda dose das vacinas; mas, diante desse novo cenário, decidiu que pessoas dos grupos prioritários devem receber a segunda dose antes do previsto

SEM RASTREIO

Uma reportagem da Science chama a atenção para o fato de que várias cepas preocupantes podem estar passando batidas em países que fazem pouco sequenciamento genético. O ponto de partida é este estudo (ainda sem revisão de pares) sobre uma delas, surgida em Camarões. Os autores viram que, de 152 países com dados disponíveis sobre isso, 100 fizeram o sequenciamento de menos de 1% de suas amostras. Entre eles, 51 grandes nações – como Brasil, Índia e Rússia – o fizeram para menos de 0,01% dos casos. As nações de alta renda foram responsáveis por 81% de todos os sequenciamentos do coronavírus já realizados. 

O mais grave é que alguns dos países com pior desempenho na identificação de novas variantes têm também pouco acesso a vacinas e apresentaram surtos recentes graves. Essa combinação é explosiva: são locais onde o surgimento de novas cepas é mais provável, e ao mesmo tempo onde elas terão menos chance de ser detectadas e controladas rapidamente.

Os desafios para aumentar esse rastreamento são tremendos. Além do custo dos sequenciadores (que chegam a US$ 335 mil) e da necessidade de profissionais qualificados para usá-los, há problemas logísticos para transportar as amostras. A matéria cita o Brasil ao falar da P.1, identificada em Manaus em dezembro do ano passado: faltou gelo seco para levar amostras do Acre até um laboratório no Rio. 

Os pesquisadores defendem que, globalmente, os recursos necessários ao sequenciamento sejam direcionados para esses prováveis focos de novos problemas. “Não é possível que continuemos sendo tão egoístas com a vigilância genômica e com as vacinas. Isso vai contra nossos próprios interesses”, diz Sebastien Calvignac-Spencer, biólogo evolucionista do Instituto Robert Koch, na Alemanha, referindo-se à ameaça geral que novas variantes podem representar.

E, no Valor, três especialistas que já passaram pelo Ministério da Saúde brasileiro falam do risco de algo ainda pior do que a P.1 aparecer por aqui: “Não temos como afirmar categoricamente que uma variante que resista a vacinas vá surgir no Brasil. Vírus mutam o tempo todo. Algumas dessas mutações podem nos ser favoráveis, outras não. Mas, em tese, a possibilidade existe, e precisamos trabalhar com diferentes cenários de risco”, diz o ex-ministro José Gomes Temporão.

MAIS UM APELO

Depois de os Estados Unidos anunciarem o começo da imunização de adolescentes a partir de 12 anos, o diretor-presidente da OMS Tedros Ghebreyesus tentou apelar mais uma vez para o bom senso das nações de alta renda: pediu que, por hora, elas desistam de vacinar suas crianças e doem parte de suas doses para os países mais pobres do mundo – aqueles que ainda não conseguiram ter o suficiente nem para os profissionais de saúde e, segundo uma análise recente, não devem chegar a 20% de cobertura vacinal antes de 2022. 

Segundo o Unicef, se os países do G7 e a União Europeia decidissem compartilhar 20% de suas reservas em junho, julho e agosto, isso representaria 150 milhões de doses para nações de baixa renda. 

Enquanto isso, a Janssen pressionou os países da Amérida Latina a aceitar vacinas já descongeladas, portanto com prazo de validade mais apertado. A ação foi revelada por Jarbas Bargosas, diretor-assistente da Opas – que, por sua vez, negocia a entrega de vacinas pela Covax Facility. Numa entrevista ao Financial Times republicada pelo Valor, ele sugeriu que a empresa estava tentando se livrar do produto: “Talvez eles tenham vacinas que já foram descongeladas e queiram entregá-las pelo Covax”.

MANUAL DO KIT COVID

Em novembro do ano passado, o Ministério da Saúde encomendou à Opas (a Organização Pan-Americana de Saúde, braço da OMS no continente americano) a produção de um manual para o “tratamento precoce” da covid-19. O pedido foi acatado pelo organismo, assim como a indicação do médico Ricardo Zimerman para fazer o trabalho. A descoberta d’O Globo, baseada nos documentos de contratação, está narrada na reportagem de Leandro Prazeres.

Zimerman é figurinha conhecida no círculo dos defensores de cloroquina & cia e chegou a participar, em janeiro, da equipe enviada pelo governo federal a Manaus para propagandear esse tipo de droga. Para escrever o manual, ele recebeu R$ 30 mil. O produto destoa completamente de tudo o que a Opas e a OMS preconizam e, segundo a matéria, “a contratação do médico causou desconforto entre funcionários da entidade”. O texto final, com 87 páginas, recomenda abertamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina e também defende o uso da ivermectina e azitromicina. Em alguns casos, Zimerman indica uma mistura contendo sulfato de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, dutasterida e bromexina.

O manual nunca chegou a ser divulgado. 

A propósito: entre setembro de dezembro do ano passado, os estados devolveram 1,5 milhão de comprimidos de cloroquina que haviam sido enviados pelo Ministério da Saúde. Mesmo assim, a pasta enviou mais 1,3 milhão, sendo 80% para aliados. A informação é do mesmo jornal.

PROTOCOLO À VISTA

Um documento chamado  “Diretrizes Brasileiras para Tratamento Hospitalar do Paciente com Covid-19”, produzido pelo Ministério, começou a ser avaliado pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) e deve ser colocado em consulta pública nesta semana. O texto foi obtido pela Folha e não recomenda o uso das drogas sem eficácia comprovada, como a hidroxicloroquina; e indica o uso de corticoesteroides (como a dexametasona) e anticoagulantes em casos específicos.

Segundo a reportagem, o parecer foi escrito por um grupo técnico formado na gestão atual e coordenado pelo professor Carlos Carvalho, da USP. Depois que passar pela Conitec, pode se tornar o primeiro protocolo brasileiro para o tratamento. Até agora, o Ministério tem apenas um conjunto de “orientações” – que, como se sabe, apoiam o uso dos medicamentos.

Mas o texto em questão trata apenas do tratamento de pacientes hospitalizados, deixando em aberto o uso do kit covid para tratar infecções leves. 

SETE VEZES

Ainda na primeira onda da covid-19, o Ministério da Saúde recebeu sete alertas sobre a escassez de medicamentos do chamado “kit intubação” (sedativos, anestésicos e bloqueadores musculares). Em resposta, providenciou pequenas quantidades das drogas – menos de 6% do consumo médio mensal nos estados. Não foi formado nenhum estoque regulatório e, como já foi amplamente divulgado, uma compra internacional foi cancelada. 

Os sete ofícios foram enviados pelo Conass (Conselho que reúne os secretários estaduais de Saúde), diz a Folha. Além deles, o jornal obteve também documentos entregues ao MPF em que o Ministério admite ter se comprometido a assumir a regulação e centralização do fornecimento dos fármacos. 

BICO FECHADO

O ministro do STF Ricardo Lewandowski garantiu aEduardo Pazuello, o direito de ficar calado em seu depoimento à CPI, marcado para o dia 19. O silêncio, no entanto, só será permitido diante de perguntas que possam incriminá-lo. Ele ainda precisa comparecer à sessão e se manifestar sobre questões relativas a terceiros – como o presidente Bolsonaro. O ex-ministro da Saúde também ficará protegido contra “quaisquer constrangimentos físicos ou morais, em especial ameaças de prisão ou de processo”.

A moda pegou: a defesa de Mayra Pinheiro, a famosa Capitã Cloroquina, também apresentou um pedido de habeas corpus preventivo ao STF.

E Carlos Wizard, empresário e ex-conselheiro do Ministério, deve ser convocado para depor. Segundo o G1, há indícios de que ele fazia parte do gabinete paralelo da Saúde. 

SARAMPO NO AP

O governo do Amapá confirmou a morte de dois bebês, de quatro e sete meses de idade, por sarampo. Foram as primeiras mortes pela doença no estado em pelo menos duas décadas. O Brasil vem registrando novos casos da doença desde 2018; o governo do Amapá indica a baixa cobertura vacina e a incidência da covid-19 (que inibiu a ida dos pais aos postos de saúde para imunizar as crianças) como causas para o surto no estado.

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