Enfermagem: a luta pelo piso em sua nova etapa

Manifestações em Brasília e greves por todo o país marcam semana decisiva para a conquista de salários dignos pelos enfermeiros. Na sexta, julgamento da Lei do Piso pelo STF se concluirá – e a categoria se mobiliza para arrancar uma vitória árdua

Créditos: Cofen.
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Às 10h da manhã de ontem (28/6), delegações de enfermeiros de diversos estados se concentraram na Esplanada dos Ministérios e Brasília presenciou uma manifestação toda de branco. Outras passeatas também foram convocadas nas capitais dos estados com a mesma pauta. Sua exigência: a efetivação do piso salarial da categoria, aprovado pela primeira vez no ano passado e cuja implementação não se concretizou até hoje, em decorrência de uma ação de sindicatos patronais que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). 

Nesta sexta (30/6), se concluirá o julgamento da constitucionalidade do piso no STF. Todos os ministros deverão votar até o fim desse prazo – e o cenário que se desenha é bastante complexo. 

Até o fechamento desta matéria, 2 magistrados – Edson Fachin e Rosa Weber – haviam votado pelo cumprimento integral da Lei 14.434/2022 para toda a categoria, e 5 outros (Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Luiz Fux) sugeriram flexibilizações no pagamento, por meio de duas diferentes propostas.

“Queremos virar o placar”, afirmou Ludmila Outtes, presidenta do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de Pernambuco (SEE-PE), ao Outra Saúde. Para isso, a categoria acelera as ações de pressão. Além das manifestações em todo o país, os trabalhadores da enfermagem empregarão a partir de hoje, quinta-feira, outra de suas armas: a greve. Enfermeiros de 14 estados realizarão paralisações de pelo menos um dia, sendo que “em 4 deles foram aprovadas greves de tempo indeterminado”, informou a sindicalista.

Prezando pelo diálogo com a corte, as  entidades que compõem o Fórum Nacional da Enfermagem também enviaram uma série de cartas ao STF. “Nós temos trabalhado no sentido de discutir com os ministros que ainda não se pronunciaram para que eles apresentem um voto favorável à enfermagem, que sigam o ministro Fachin em dizer que a lei existe, ela é constitucional e precisa ser cumprida”, adicionou Solange Caetano, presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE) e secretária-geral do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo (SEESP).

Nenhum dos ministros da corte votou pela revogação pura e simples do piso. A proposta, afinal, tem grande aceitação social e surgiu da iniciativa de uma categoria com quase 3 milhões de membros e muito mobilizada – além de ter sido aprovada quase unanimemente nas duas casas do Legislativo. 

Porém, há tentativas de descaracterizar a legislação. Barroso, relator da ação, propôs um modelo que divide a categoria em três: os enfermeiros da rede federal deverão receber o piso de forma integral; os das redes estaduais e municipais, apenas caso a União forneça os recursos; e, no setor privado, mediante uma negociação coletiva que “evite uma demissão em massa”, ameaça regularmente repetida pelos empresários da saúde privada. Gilmar Mendes votou junto ao relator.

Ainda mais perigoso é o voto do ministro Dias Toffoli, acompanhado por Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Ele prevê a regionalização do pagamento do piso e das negociações coletivas, o que pode levar à manutenção das desigualdades salariais entre os enfermeiros de diferentes estados. 

O voto desses cinco juízes, opinaram ambas as dirigentes sindicais, reflete um princípio introduzido pela reforma trabalhista aprovada por Michel Temer: a prevalência do negociado sobre o legislado. Em uma quadra histórica defensiva como a atual, as negociações “tendem sempre a prejudicar o trabalhador”, ratifica Ludmila, e certamente levarão a salários mais baixos que o piso de R$ 4.750, previsto em lei.

Outra casca de banana que se esconde no voto dos ministros Toffoli, Moraes e Fux é a orientação de que o piso seja calculado não a partir dos vencimentos – isto é, do salário básico recebido –, mas da remuneração, ou seja, dos vencimentos mais os benefícios. 

Nesse modelo, “as gratificações que os trabalhadores que estão no serviço público acabam ganhando poderiam compor uma soma para chegar ao valor do piso salarial”, o que deixou “os trabalhadores revoltados e as entidades também”, diz Solange.

Caso entrem em vigor, as alterações propostas nesses votos “seriam prejudiciais e distorceriam completamente a lei”, opinou Ludmila. “Na prática, seria anular uma lei votada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente para beneficiar um pequeno grupo de pessoas, os empresários, que já lucra muito”, completou. Só o que interessa à categoria é o piso para todos – e os sindicalistas também vêm cobrando maior celeridade do ministério da Saúde no repasse dos recursos do Fundo Nacional de Saúde aos governos estaduais e prefeituras, para que não surjam alegações de falta de dinheiro para pagar o piso aos enfermeiros do setor público.

Lei do Descanso Digno

Paralelamente, as entidades se mobilizam pelas demais exigências da categoria. “Aproveitamos as movimentações em Brasília desde o ano passado pelo piso para tentar destravar também outros projetos de lei que são antigos no Congresso Nacional e que tem repercussão direta para a enfermagem”, explica Ludmila.

Um deles, sancionado na semana passada pelo governo federal, é a Lei do Descanso Digno. O texto da nova legislação prevê que todas as instituições de saúde pública e privada garantam uma sala de descanso exclusiva para os profissionais da enfermagem, com a obrigação de que sejam “espaços arejados”, “dotados de conforto térmico e acústico” e “adequados à quantidade de profissionais que ali trabalham”.

Convenções coletivas e leis locais já previam o Descanso Digno em algumas cidades e municípios, mas eram constantemente contestadas pelo setor privado e nem sempre cobriam todos os profissionais. No estado de São Paulo, “a mesma CNSaúde que agora entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para derrubar a Lei do Piso havia entrado com ADI para derrubar uma lei estadual que previa o descanso”, nota Solange.

Outros projetos, como a jornada de trabalho de 30 horas para a enfermagem e a garantia do adicional de insalubridade em grau máximo para os profissionais que trabalharam na pandemia, ainda exigirão maiores esforços.

Adicional de insalubridade por trabalho na pandemia

Recentemente, uma enfermeira de Presidente Prudente (SP) conquistou na Justiça o direito de receber os 40% de adicional. Com o precedente aberto pela decisão, é possível que mais profissionais recebam esses valores, reservado a trabalhadores que se expuseram a agentes biológicos infecciosos. Mas a velocidade do reconhecimento do direito pode esbarrar no fato de que os pedidos “devem ser individualizados por local de trabalho”, explica Solange.

Mesmo assim, “os diversos sindicatos dos seus estados já estão ingressando com ações coletivas em nome da categoria. Nós, no estado de São Paulo, já ingressamos com mais de cinquenta ações e temos diversas outras para entrar pedindo o reconhecimento dessa insalubridade para todos os enfermeiros no estado que estão vinculados àquela instituição”, completa a diretora do sindicato paulista.

A despeito da multiplicidade de bandeiras levantadas pelos enfermeiros, que vivem um auge histórico de suas lutas reivindicatórias, o centro das atenções da semana seguirá sendo o resultado do julgamento do Piso na sexta-feira.

Caso se confirme essa vitória, uma luta em que os enfermeiros se defrontam com adversários que vão desde a Confederação Nacional dos Municípios até as entidades patronais, passando pela morosidade típica da Justiça quando os interesses dos super-ricos estão ameaçados, a categoria sairá altamente moralizada – e pronta para lutar por muito mais.

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