Como a Alemanha alicia a enfermagem no Sul Global

Para tapar buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca sistemas de saúde ao redor do mundo. Código de práticas da OMS que coíbe esvaziamento da saúde dos países mais pobres pode estar sendo ignorado, diz ativista

Foto: Philippine News Agency
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A matéria que se segue dá continuidade à reflexão iniciada na reportagem traduzida por Outra Saúde com o título Olhos alemães rondam a enfermagem do Brasil. Em ambos os textos, são expostas as práticas de um país rico para captar trabalhadores da enfermagem do Sul Global para seu sistema de saúde, fragilizando nações mais pobres. Boa leitura!

No People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda

Os esforços do governo da Alemanha para mitigar a falta de trabalhadores da enfermagem no país se voltam para a organização de campanhas de recrutamento na América Latina, no Leste Europeu e na Ásia. A Índia, um dos principais locais de origem dos enfermeiros que migram para países do Norte Global, e em particular o estado indiano de Kerala, se tornaram um dos alvos prioritários dessas campanhas. Dessa forma, a Alemanha está cada vez mais visada pelos que planejam sair da Índia, mesmo que ainda não tenha se tornado o destino mais comum desse segmento. Santosh Mahindrakar, militante e pesquisador do Movimento pela Saúde dos Povos (MSP), afirma que esses trabalhadores são atraídos ao país com promessas de uma sólida rede de bem-estar social, melhores salários e melhores condições de trabalho.

Em 2016, seis anos após a Organização Mundial da Saúde (OMS) introduzir o Código de Prática Global para o Recrutamento Internacional de Pessoal de Saúde – um instrumento de adesão voluntária que se propõe a coibir práticas de recrutamento que agridem os sistemas de saúde do Sul Global –, 3,2% dos enfermeiros de Kerala que trabalham no exterior moravam na Alemanha. O percentual é mais baixo que os dos Estados Unidos e das monarquias do Golfo, mas já indica o território alemão como um polo de atração bastante firme.

Mahindrakar, que também exerce a profissão, relata que os supostos benefícios de se mudar para a Alemanha parecem pesar menos para os enfermeiros indianos que as dificuldades encontradas na luta para ser um profissional registrado em um país estrangeiro. Esse quadro pode mudar com a ação de países como a Irlanda para reduzir as barreiras administrativas que barram a chegada de trabalhadores da saúde migrantes e atrair mais força de trabalho, mas a perspectiva de um emprego nos hospitais alemães continua sendo bem vista pelos enfermeiros de Kerala.

A verdade é que, assim como os profissionais formados em outros países do Sul Global, os enfermeiros da Índia que chegam à Alemanha enfrentam um longo período antes de conseguirem revalidação de seus diplomas. Durante esse tempo, trabalham como cuidadores ou auxiliares de enfermagem, sem estabilidade e com salários bem mais baixos do que os que deveriam receber. O aprendizado da língua local também traz dificuldades – muitas vezes, após os cursos iniciais de adaptação, não há mais nenhum apoio sistemático à familiarização mais profunda com o alemão.

Mesmo depois de aprenderem a língua local e revalidarem seus diplomas, os enfermeiros migrantes precisam partir da estaca zero. Independentemente de terem cursado especializações antes de ir à Alemanha, eles começam suas carreiras com o salário mais baixo, explica Mahindrakar. Além disso, quando ainda estão se introduzindo no sistema de saúde alemão, esses trabalhadores muitas vezes não se filiam de imediato aos sindicatos ou se envolvem em outras formas de organização.

“Os enfermeiros indianos ficam receosos de se tornar membros do sindicato porque não há sindicatos específicos de enfermeiros como, por exemplo, na Irlanda ou no Reino Unido. Os sindicatos são mais amplos aqui, e o imposto sindical gira em torno de 1% do salário bruto, uma quantidade de dinheiro que pesa para um migrante”, nota Mahindrakar.

O fluxo de enfermeiros de Kerala para a Alemanha costuma ser justificado pelo número alto de formandos que o estado indiano registra anualmente. Na região, existem 135 escolas de enfermeiros – 20 delas sendo instituições públicas – que oferecem cursos gerais de enfermagem e obstetrícia. Com isso, Kerala se tornou a principal fonte de enfermeiros do país. Essa proliferação de cursos de saúde no ensino superior privado da Índia é uma tendência que se expressa há algum tempo, de acordo com Mahindrakar.

Porém, essa onda de novos profissionais da enfermagem não encontrou prontamente empregos na própria Índia, em especial no setor público. Por um lado, empregos em hospitais privados ainda são mais fáceis de conseguir, mas também significam salários mais baixos e ausência de estabilidade. Tradicionalmente, essas vagas no setor privado são consideradas passos que antecedem a migração para as monarquias árabes do Golfo ou países anglófonos. Para muitos, ainda é essa sua serventia. Porém, com a estabilidade laboral sendo flexibilizada no setor público por meio de políticas neoliberais de privatização da saúde, cresce o temor de que a migração afete mais fortemente a saúde pública.

Estudos recentes mostram que, nos primeiros anos de graduação, pelo menos metade dos estudantes indianos de enfermagem já tem a pretensão de migrar. No terceiro ano, se torna uma maioria a expressar essa intenção, o que refletiria a vontade de ser reconhecido e bem-pago por seu trabalho, bem como a força das agências de recrutamento que trabalham para atender a demanda por trabalhadores da saúde no Norte Global. 

Isso permite que a Alemanha, assim como fazem outros países ricos, tenha acesso a uma força de trabalho extremamente bem-formada a uma fração do custo necessário para formar profissionais desse nível localmente.

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