Olhos alemães rondam a enfermagem do Brasil

Com questionáveis promessas de bons empregos, Alemanha acelera importação de enfermeiros brasileiros – com anuência até do ministro do Trabalho. Organizações alertam: prática predatória engana profissionais e fragiliza SUS

foto: Aurélio Alves/O POVO
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Publicado no People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda

Na próxima década, a Alemanha acredita que poderá ter um déficit de 200 a 300 mil enfermeiros em seu sistema de saúde. De alguns anos para cá, o principal método adotado pelas autoridades de saúde alemãs para combater essa escassez tem sido atrair milhares de enfermeiros de outros países, recorrendo por vezes a acordos bilaterais. Essas iniciativas apresentam o sistema de saúde alemão como um bom destino para os trabalhadores da enfermagem, em particular os do Leste Europeu e dos Bálcãs, e os que estão no início de suas carreiras.

Um relatório de 2022 da coalizão Pillars of Health mostrou que a Alemanha conta com o segundo maior número de enfermeiros estrangeiros da Europa, atrás apenas da Irlanda. A maioria desses migrantes vêm de países como Bósnia e Herzegovina, Croácia, Polônia, Romênia e Turquia. Porém, mais recentemente, o interesse do governo alemão se voltou para o recrutamento de enfermeiros do Sul Global – das Filipinas, da Índia e de partes da América Latina.

Dada a dependência alemã desse recrutamento internacional para enfrentar a crise de sua força de trabalho em saúde, não foi uma surpresa o anúncio de uma reunião sobre o tema entre Hubertus Heil, ministro do Trabalho e de Assuntos Sociais da Alemanha, e Luiz Marinho, do Ministério do Trabalho e Emprego, que aconteceu em junho. Por outro lado, esse encontro gerou preocupações em organizações de luta pelo direito à saúde, que alertam que a estratégia alemã não leva em consideração seu impacto nos sistemas de saúde dos países de origem dos trabalhadores.

Contrariamente à opinião das autoridades alemãs de que há um excedente de enfermeiros no Brasil, o país na verdade tem uma proporção profissional-paciente mais precária que a da Alemanha. A taxa brasileira se encontra hoje em 10,6 enfermeiros para cada mil habitantes, enquanto a Alemanha tem 12,5. Em algumas regiões do Brasil, o número é ainda mais baixo, aproximando-se de 7 profissionais para mil habitantes. Longe de serem um indicador de saturação do mercado de trabalho, os altos índices de desemprego na enfermagem – que supostamente sustentariam a ideia de que há um excedente de enfermeiros no Brasil – só confirmam a necessidade de maiores investimentos no sistema público de saúde, por meio da criação de mais empregos.

Uma visão mais ampla dos impactos da estratégia alemã

Pouco depois da reunião entre Heil e Marinho, a Associação de Médicos Democráticos (vdää, na sigla em alemão) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) publicaram uma nota destrinchando os principais problemas da narrativa que endossa o recrutamento ativo de enfermeiros. Karen Spannenkrebs, médica e ativista da vdää, explica que o contato de seu grupo com o Cebes surgiu da necessidade de apresentar uma posição conjunta, ao perceber que a cobertura midiática da reunião não apresentava uma perspectiva crítica.

O Cebes e a vdää* identificaram inúmeros pontos da discussão em torno dos processos de recrutamento que estão insuficientemente detalhados ou sendo apresentados de maneira excessivamente positiva. Um desses pontos é a diferença entre a formação em enfermagem no Brasil e na Alemanha, questão que costuma trazer desafios aos recém-chegados à Europa. Como explica Spannenkrebs, os enfermeiros alemães devem passar por um treinamento mais técnico, enquanto em outros países é mais comum que se busque um curso de graduação. As obrigações também são distintas: no país europeu, não costuma ser papel do enfermeiro fazer a coleta de sangue dos pacientes, por exemplo. 

Assim, o  diploma universitário exigido para exercer a enfermagem no Brasil não é reconhecido de forma automática na Alemanha. Até a revalidação de suas credenciais – processo que pode levar meses, ou mesmo anos –, os enfermeiros brasileiros acabam tendo que trabalhar como auxiliares de enfermagem, com salários menores e tarefas que não condizem com sua formação.

Esses fatores podem surpreender os enfermeiros migrantes mais incautos, já que suas expectativas costumam se alinhar com o que dizem as agências de recrutamento internacional. “Como o objetivo principal [dessas agências] é lucrar com o recrutamento, elas fazem promessas que não correspondem à realidade”, diz Spannenkrebs.

A falta de apoio aos migrantes 

Ainda que algumas agências realmente ofereçam apoio aos trabalhadores da saúde migrantes, nem todas são tão bem-intencionadas. Há uma tendência de minimizar o esforço necessário para aprender alemão – e de repassar o custo de cursos de línguas aos trabalhadores. Algumas até mesmo jogam a maior parte do risco financeiro sobre os enfermeiros, pressionando-os a assinar contratos que os obrigam a pagar milhares de euros caso se demitam de seus empregos antes de um período de tempo acordado.

O cotidiano da enfermagem já é bastante estressante para os trabalhadores locais, devido a fatores como a jornada de trabalho excessiva e a crescente orientação dos sistemas de saúde para o lucro. Mas Spannenkrebs ressalta que, em decorrência das questões levantadas pela nota do Cebes e da vdää, os enfermeiros migrantes podem se encontrar em uma posição ainda pior que eles.

“A maioria dos empregadores não oferece nenhum apoio no processo de integração do profissional, o que leva a frustrações e problemas nas equipes, além de reforçar a discriminação e os estereótipos. O alemão é uma língua difícil e isso pode se tornar um problema sério, já que a maior parte dos hospitais não disponibiliza cursos de idiomas. Além disso, esses trabalhadores também podem ter de enfrentar o racismo presente na sociedade alemã”, opina a ativista da vdää.

“As narrativas em torno da contratação de enfermeiros do Brasil também omitem certas informações que poderiam auxiliar na compreensão dos motivos que levam alguns profissionais a tomar a decisão de migrar”, lembra Spannenkrebs. O SUS tem sofrido com cortes de orçamento e uma política de subfinanciamento que levam à piora das condições de trabalho e à estagnação da renda de seus trabalhadores. Assim, quando a Alemanha contrata no Brasil, ela está tirando vantagem da precarização do SUS, como ressalta a nota conjunta das organizações.

“É preciso entender a crise da força de trabalho no contexto maior da atual situação dos sistemas de saúde”, aponta a médica alemã. “Uma crise global não pode ser resolvida com o recrutamento internacional de profissionais de saúde. Isso só a transfere de um país para outro, reforçando os desequilíbrios econômicos e de poder no mundo”, diz a ativista.

“Temos que lutar pelo fortalecimento dos sistemas de saúde, para que haja boas condições de trabalho para os profissionais da saúde em todos os lugares”, ela conclui.

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