Como anda a implementação do Piso da Enfermagem

No setor privado, patrões dificultam negociações coletivas previstas pelo STF. No público, posições dúbias do governo põem em dúvida a integralidade do pagamento. Liderança da categoria comenta novos embates pela remuneração digna

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Em decisão tomada no último dia 30 de junho sobre a constitucionalidade do Piso da Enfermagem, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por dividir a categoria dos enfermeiros em duas partes: os que já têm direito à remuneração digna, e os que não. Dessa forma, abriu-se uma nova etapa na luta desses trabalhadores pela implementação efetiva do direito que conquistaram no ano passado, com a sanção presidencial da Lei nº 14.434/2022.

Conforme a determinação do tribunal, os enfermeiros que são servidores da União devem receber, de forma imediata, vencimentos ajustados ao novo piso. Em situação similar estão os que trabalham para os estados, municípios e entidades que atendem pelo menos 60% de pacientes pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para o pagamento, há a condicionante de que recursos federais sejam repassados a todos esses entes, sob a justificativa de que, de outra forma, não haveria recursos. Apesar de alguns atrasos e da reclamação em nota conjunta do  Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) sobre a condução “sem pactuação” da distribuição desses valores pelo governo, a verba foi garantida pelo Ministério da Saúde em agosto.

Do outro lado, porém, ficaram os enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem que trabalham no setor privado, excluídos da obrigatoriedade imediata do pagamento do piso salarial. Ainda de acordo com o STF, estes deveriam realizar novas negociações coletivas com a patronal em um prazo de 60 dias. Como o texto oficial da decisão da corte foi publicado no dia 12 de julho, o calendário para essas tratativas estará em vigor até o início do mês de setembro. 

Solange Caetano, presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), conversou com Outra Saúde para trazer detalhes sobre o andamento dessas negociações ao redor do país – além de esclarecer algumas das outras disputas que seguem sendo travadas na Justiça em torno do piso.

Pode causar surpresa que o principal fato desse período de diálogo tenha sido a ausência de diálogo – principalmente por intransigência das empresas. “Na grande maioria dos estados não houve nenhum pedido efetivo de negociação pelos sindicatos patronais, mas em todos os que eles fizeram propostas, foi no sentido do parcelamento do piso até 2025, 2026. Em alguns, eles estão pedindo cinco anos para integralizar o pagamento”, explica Solange.

O Pará foi palco de uma dessas tentativas de impor um acordo rebaixado. No entanto, os enfermeiros do estado mais populoso do Norte prontamente rejeitaram a oferta dos empresários da saúde privada, que previa “o pagamento escalonado do piso salarial em até 4 anos, alegando dificuldades financeiras para o pagamento imediato do valor”, segundo o Sindicato dos Enfermeiros do Pará (SENPA). Em assembleia geral no dia 23 de agosto, foi unânime o “não” a essa proposta, com a presidenta do sindicato Antônia Trindade alertando para a possibilidade de greve caso a negociação seguisse nesse patamar.

Essa aparente falta de iniciativa do setor da saúde suplementar pode advir da confiança dos empresários em uma “carta na manga”. No dia 10 de setembro, se encerrará o prazo das negociações coletivas – isto é, 60 dias após a publicação da ata do julgamento da constitucionalidade do piso no STF. A partir daí, diz a corte, se não houver acordo, a iniciativa privada deverá pagar o piso salarial como previsto na lei. 

Porém, como o acórdão (em termos leigos, a manifestação mais completa do entendimento daquela instância do Judiciário) da decisão só foi publicado no último dia 25 de agosto, “a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) disse que, para ela, o período só contaria a partir dessa data”, denuncia a presidente do FNE. Nesse formato, as empresas teriam mais dois meses antes de desembolsar a nova remuneração de seus funcionários.

Frente a essa possibilidade, a perspectiva da enfermagem é não abrir mão de seus direitos. “Se eles vão querer pagar ou não, já são outros quinhentos, mas as entidades sindicais dos enfermeiros vão começar a cobrar o pagamento, inclusive o retroativo desde julho, a partir dessa data do 10 de setembro”, conclui Solange.

Outros percalços na conquista do piso

As manobras do setor privado não são o único adversário que os enfermeiros têm enfrentado no caminho até a efetivação da conquista do Piso. Também podem trazer ameaça à integralidade do salário prometido a esses trabalhadores algumas decisões do próprio governo federal – todas elas questionadas pelas entidades representativas, com a esperança de que não prosperem.

Uma delas é a posição da Advocacia-Geral da União (AGU) de que é possível vincular as gratificações recebidas pelos enfermeiros ao piso, e não só os vencimentos. Explica-se: assim, oferecendo “penduricalhos” como bonificações e prêmios, municípios, estados e a própria União poderiam dizer que estão cumprindo a lei sem se comprometer a aumentar o salário propriamente dito dos trabalhadores da enfermagem. 

“Nós tivemos uma reunião com a AGU, na figura da Isadora Cartaxo [Secretária Nacional de Contencioso da AGU], e debatemos sobre esse parecer, que no nosso entendimento é equivocado. Eles argumentam que, diferentemente da lei do piso do professores, a nossa deixou em aberto [o que compõe o piso]. Mas esse entendimento não é o que está no acórdão. Se essa posição do governo persistir, nós vamos ter que acioná-lo judicialmente para que o piso passe a valer independente de qualquer gratificação”, pondera Solange.  Ela alerta que, entre os enfermeiros servidores da União, uma parte expressiva não teria qualquer aumento, caso esse parecer prevaleça.

Um segundo entendimento do governo considerado equivocado é a orientação de que o piso seja pago de forma proporcional ao cumprimento de uma carga horária de 44 horas semanais pelos enfermeiros. “Essa jornada não é praticada pelos profissionais da enfermagem em quase nenhum lugar do Brasil, muito menos no serviço público. Um estudo que nós solicitamos aponta que ela gira entre 31 e 40, com a maioria sendo de 36 horas”, explica a enfermeira.

Por isso, os sindicatos pretendem resistir legalmente a esse parecer. “As entidades que são amicus curiae [no julgamento no STF] vão impor um embargo solicitando a reversão disso”. A enfermagem já conta com um aliado nesse embate: a advocacia do Senado, que também já interpôs um recurso na suprema corte que pede o pagamento integral do piso. O documento critica a “verdadeira atividade legislativa por parte do Poder Judiciário” ao fatiar de tantas formas a Lei 14.434/2022.

Com o encerramento do calendário de negociações no próximo domingo (10/9), há uma possibilidade de resolução de todas essas contendas, com uma boa chance de solução positiva para os enfermeiros. Mas a categoria não atrela seu barco ao entendimento institucional: independentemente do que resolverem governo, empresariado e STF, a enfermagem promete seguir em luta pela bandeira do Piso Salarial.

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