Em hospital de referência, uma bíblia para quem procura aborto legal

Caso ocorreu no Hospital Pérola Byington, instituição mais reconhecida no país para a realização do procedimento e atendimento a vítimas de violência sexual

Imagem: Clarissa Monteiro/Minas Nerds
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Por Leila Salim

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Uma mulher sofre um estupro, dentro de um casamento abusivo, e engravida. Procura uma instituição pública, hospital de referência na área, para exercer seu direito ao aborto, garantido por lei para casos como o seu. Na fila para realizar o exame de ultrassom, em vez de tratamento adequado e acolhimento, recebe uma bíblia. O Estado é, oficialmente, laico. No entorno: mulheres uniformizadas seguem a distribuição do material religioso. São caixas cheias de bíblias, que vão sendo entregues a outras vítimas. Poderia ser o enredo de um romance distópico sobre a violação de direitos das mulheres, mas é o Brasil de Bolsonaro em 2021. 

O caso ocorreu no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, na última quarta. Foi denunciado pela mulher, que mantém o anonimato, ao projeto Milhas pela Vida das Mulheres, que oferece informações e suporte sobre abortamento legal no Brasil e no exterior. Fundadora do projeto, a roteirista Juliana Reis contou a’O Globo que a organização entrará com manifestação no Ministério Público quanto ao caso. 

Longe de ser um acontecimento isolado, a violação da semana é parte da escalada bolsonarista contra os direitos sexuais e reprodutivos. Faz apenas alguns dias que comentamos aqui que o ministro da Saúde tornou sem efeito uma resolução do Conselho Nacional de Saúde simplesmente porque ela defendia assegurar assistência integral e humanizada à mulher nos casos em que o aborto já é garantido pela lei brasileira (gravidez decorrente de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal). 

A saga obscurantista tem outros capítulos, como o PL 5435, que tramita no Senado e coloca em risco o aborto legal; a exigência, por planos de saúde, de autorização do marido para inserção do dispositivo intrauternino em mulheres, prática que agora será apurada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); o tenebroso caso em que uma menina de 10 anos vítima de estupro sofreu ameaças e precisou lutar contra a Justiça para assegurar a realização da interrupção da gravidez, no ano passado; e a exoneração de servidores do Ministério da Saúde que publicaram nota técnica orientando a realização de aborto legal e garantia de acesso a métodos contraceptivos durante a pandemia, na gestão de Eduardo Pazuello. E esses são apenas alguns dos retrocessos.  

O Pérola Byington, onde o mais recente ataque teve sítio, é um centro de referência em saúde da mulher e o mais reconhecido hospital do Brasil para a realização de aborto legal e atendimento a vítimas de violência sexual. Segundo a mulher que fez a denúncia, não foi possível identificar quem eram as mulheres distribuindo bíblias na fila de atendimentos. Mas, como destacou Debora Diniz, uma das principais pesquisadoras no tema do aborto no Brasil, “se é uma prática instituída pelo hospital como rotina, ou se é inventada pelas visitadoras da fé, a responsabilidade é igualmente devida aos diretores dos hospitais. É a eles que cabe que cada mulher tenha seu direito inalienável de ser cuidada sem ser importunada pelo proselitismo religioso de outros”. 

A pesquisadora reforça que a prática fere a laicidade do Estado e configura “abuso de poder e interferência indevida nas formas de cuidado de uma mulher muito vulnerável e em busca de socorro”. E diferencia: o que ocorreu no Pérola é o oposto da determinação legal que garante assistência religiosa ao paciente que assim desejar e solicitar, que se baseia justamente na proteção do usuário do serviço de saúde em todos os níveis.

Um ofício à direção do hospital foi protocolado pela deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL/SP), que pediu esclarecimentos sobre o caso. A Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo afirmou, em nota enviada à imprensa, que “lamenta” o ocorrido e “repudia qualquer atitude contrária à liberdade de consciência e de crença quanto o caráter laico de instituições públicas, previstos em Constituição”. 

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